Dia Mundial do Cancro

Testemunho: depois do deserto, o cancro pode ter um final feliz

Liliana Teófilo viu-se com um tumor feroz aos 34 anos e conta-nos, num vale do Douro, como foi atravessar este deserto que a levou a uma fase nova – e a um amor para a vida.

Foto: D.R.
26 de outubro de 2021 Patrícia Duarte

Chegou aos 18 anos a Lisboa para estudar Psicologia, interessava-lhe a área criminal e estagiou no Instituto de Reinserção Social com toxicodependentes e portadores de VIH, mas a falta de vagas na sua área obrigaram-na a desistir. Entre vários trabalhos, foi gerir o cabeleireiro de um amigo na Avenida da Liberdade, mas sentiu que "não crescia mais", o mercado de trabalho cada vez mais difícil e ela "perdida, sozinha, sempre irritada e instável. Não dormia bem e sentia que o meu corpo não estava bem."

Ao passar um creme no peito descobriu um caroço, dez dias depois estava no médico, parecia apenas um gânglio inflamado, mas fez uma ecografia. "Claro que viram qualquer coisa e pediram logo uma biópsia, achei estranho e fiquei aflita, fartei-me de chorar no dia em que a fui fazer." Um amigo médico levou-a a S. José para mostrar o resultado, quando o viu ficou "tão atarantado" que desviou a conversa, travou a fundo à chegada e passou-a à frente na consulta: "Eu estava tão a não querer acreditar, o teu inconsciente trabalha tão bem estas coisas, que nem consegui perceber." O médico "foi direto, curto e grosso, disse: é um temor maligno, muito mau e temos de agir já". "Preparei-me para tudo, tirei a tarde de trabalho e fui com as minhas amigas para uma esplanada beber copos e fumar cigarros" (risos). Tiraram-lhe gânglios para perceber "se estavam positivos ou negativos, neste último caso teria de ir para a mastectomia." Adorou o cirurgião, o Dr. Carlos Vitorino, "das pessoas mais incríveis e humanas", mas o pós-operatório "foi a pior dor que tive na vida".

Começou a maratona de exames e tratamentos que atravessaram o verão. Explicaram-lhe que havia uma possibilidade de não vir a ter filhos e "foi a primeira coisa que me fez mesmo chorar, tinha 34 anos." Propuseram conservar os ovócitos e fazer uma estimulação hormonal. "Foi uma decisão difícil, fui com as minhas amigas para o bar do Guincho – as amigas foram um apoio incondicional, foram comigo aos tratamentos, deram-me amor, ajudaram-me na minha reconstrução emocional." Decidiu não conservar os ovócitos, o que surpreendeu o médico, "não me ia encher de hormonas e criar ainda mais desatinos emocionais, nem pensar!"

Cortou o cabelo na véspera de começar o primeiro tratamento. "Tinha o cabelo abaixo do peito e cortei-o curtinho, não queria ver peladas, é pior. Assumir é uma questão de bom senso, mas há muitas mulheres que não percebem isto. Aconselho a cortar o cabelo com um ar saudável." Foi almoçar, beber um copo de vinho e fumou o último cigarro e no dia seguinte iniciou a quimio, que fez de 15 em 15 dias, de agosto a janeiro. "Os primeiros quatro tratamentos provocaram imensos enjoos, dói-te o corpo, os ossos… É um cocktail administrado numa sala onde nem sempre podes ter alguém ao teu lado, onde ficas umas horas, depende. Quando entra no teu corpo sentes um frio, uma sensação estranhíssima". Viu pessoas que faziam quimio e iam trabalhar, outras que estavam "oito horas no hospital sozinhas, pessoas mais velhas, com pouco dinheiro… Temos de sair da nossa bolha e olhar à volta, claro que foi horrível, estava irritada com os tratamentos, gritava com toda a gente, houve um período um bocado intragável, mas não posso dizer que sofri muito comparado com o que vi."

Liliana Teófilo na época em que tinha o cabelo curto
Liliana Teófilo na época em que tinha o cabelo curto Foto: D.R.

A determinada altura o seu sistema imunitário caiu a pique e teve de ficar uma semana em repouso absoluto e levar injeções na barriga para estimular a imunidade. Paralelamente, foi a naturopatas, fez reiki e acupuntura e mudou "logo e drasticamente" a alimentação, passou a comprar só biológico e aboliu o açúcar, "era a única coisa que controlava. E entrei em paranóia, não queria ver ninguém, fugia até de uma pessoa constipada. Tive momentos obsessivos que também me salvaram, às vezes precisas mesmo de te enclausurar, porque estás tão frágil."

Depois dos tratamentos, ficou "sem um pelinho e queria assumi-lo, muito honestamente, mas chegas a um ponto em que tens um ar doente, tens de levar cortisona para aguentar o tratamento e é muito agressiva, começas a inchar e o cheiro do teu corpo é horrível, parece podre… Careca até estava engraçada, usei lenços e uma peruca." Conta-nos como, num domingo, foi contrariada jantar com uma a amiga que a arrancou de casa: "Quando cheguei ao restaurante estavam todos à minha espera, tinham-me comprado uma peruca. Fui super abençoada." 

Seguiram-se outras quatro sessões de quimio, de um tratamento mais agressivo: "Tive tantas dores que achei que ia morrer, parecia que um trator estava a passar-me por cima, estive num sofrimento agudo durando 48 horas. O pior foi a parte psicológica, tinha de me enfiar no banho para controlar picos de ansiedade, faltava-me o ar, uma crise associada aos medicamentos, ouvia meditações para acalmar." Liliana não respondeu 100 % ao tratamento e os vestígios do tumor foram retirados em cirurgia. "A equipa médica foi incrível. Lembro-me de estar a adormecer e eles fazerem-me festinhas. Acordei super bem disposta e cheia de fome, tive uma recuperação fantástica, fui para casa com um dreno e levei miminhos da família. A recuperação dói, mas talvez pela minha costela africana (o pai é moçambicano), a pele cicatrizou maravilhosamente, mal se dá pela cicatriz". Ainda fez radioterapia, "uma seca, tens de ir todos os dias levar uma queimadela, são 30 sessões." Também teve uma menopausa induzida, entretanto ultrapassada, que a fez passar outro "mau bocado", mas considera-se sortuda, a natureza do seu tumor era muito agressiva, mas não se espalhou.

Liliana apaixonou-se e vive agora no Douro vinhateiro
Liliana apaixonou-se e vive agora no Douro vinhateiro Foto: D.R.

Acabou os tratamentos em maio, um ano inteiro tinha passado. "Estás tão frágil fechada no teu casulo durante aquele tempo, quando vens cá para fora tudo te faz confusão". Voltou ao trabalho, mas percebeu que nada seria como dantes: "Já não queria nada daquilo, mas não estava com forças." Começou à procura de emprego no Alentejo, queria deixar a cidade. Conheceu o Fernando três meses depois num bar de vinhos de um amigo. Quando entrou reparou num "grisalho giraço ao balcão. O meu amigo disse: ‘Sabes quem é que está cá? O Fernando do Miura’, um vinho de que gostei anos antes. ‘Ah ok’, já conhecia alguns enólogos e estava à espera de uma pessoa séria ou super beta ou super boring ou muito gorda". (risos) Era o grisalho. Na altura, Liliana tinha meio centímetro de cabelo, começavam a despontar pestanas e sobrancelhas, "que tinha de pintar, e ainda estava inchada. Claro que lhe achei logo piada e ficámos à conversa. Sabia que ele era mais velho e vivia com a família no Douro, mas julgava que era casado (já não era). Deixou-me o número de telefone - mas não lhe iria telefonar, para quê?" Encontraram-se nas redes sociais, depois na Arrifana, onde ele estava a passar férias, e passado um mês convidou-a para o seu aniversário no Douro. "Fui cheia de medo: ‘Oh meu deus, eu gosto desta pessoa, mas estou tão frágil e sensível… Foi aí que tudo começou."

O casamento de Liliana e Fernando na Índia
O casamento de Liliana e Fernando na Índia Foto: D.R.

Passou a voar para o Douro todos os fins de semana, "apanhava o meu aviãozinho no aeródromo de Cascais e descia em Vila Real" e em janeiro de 2017 casaram na Índia, uns amigos que vivem em Havelock, nas ilhas Andamã, organizaram "uma cerimónia linda na praia, com um sacerdote que falou em sânscrito. Fizemos uma cerimónia Bengali, vestidos a rigor e com todos os rituais indianos. Casámos a dia 29, foi tudo lindo e especial, estávamos só os dois e os locais."

Mudou-se para a Quinta de Tourais, com mais de 200 anos, herança de família de Fernando, onde se produz vinho, fazem provas e visitas aos lagares. "Vim cair numa família unida, criámos uma ligação fantástica". E tem amor por estes vales, agora cobertos de tons laranja. "Sempre tive uma ligação à terra, lembro-me de ir de férias para casa dos meus avós e andar descalça por entre as vinhas. Durante muitos anos só queria cidade, depois percebi que não preciso de ter uma carreira, tenho as minhas coisas boas e importantes, quero é viver feliz e tranquila, sem andar atrás de um prejuízo que nem sabes bem qual é. A vida é muito curta."

O que mudou? "Ligo menos a coisas pequenas, que são completamente estúpidas, aprendi a dar o braço a torcer, o ego é importante? O orgulho? Perceber o que vale a pena. Ainda tenho projetos a longo prazo, como solidificar a família, mas depois de passar por isto não quero ter filhos, só de pensar na ideia, ganhei uma angústia, um medo da morte das pessoas que amo. Vivo mais o dia a dia, não me importo nada de ser dona de casa e não me canso da paisagem, gosto da vida que tenho, acho que não vamos sair daqui."

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