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Histórias de Amor Moderno: “Dois meses depois de o meu filho morrer, reformei-me. O João tinha 24 anos”

“No que toca ao romance, fomos uma tempestade perfeita, fartos em loucura e parcos em medos e complicações, atirámo-nos de cabeça para os braços um do outro.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Após a morte do filho, Urbano e Marlene enfrentam dor e decisões difíceis no seu relacionamento
Após a morte do filho, Urbano e Marlene enfrentam dor e decisões difíceis no seu relacionamento Foto: "21 Gramas"
23 de agosto de 2025 às 08:00 Maria Olívia Sebastião

Houve um tempo em que eu vendia flores. As senhoras aproximavam-se da minha banca e contemplavam, deslumbradas, aquela exibição notável e colorida. Perguntavam-me “que flor é aquela, tão linda?”, e eu, quando não sabia, respondia “é a flor da felicidade, minha senhora”; “ai é? Olhe que giro”, respondiam, e eu “é a flor da felicidade porque a faz sorrir, a si”, dizia eu, com a minha graça, “e se a senhora a comprar, também me faz feliz a mim”. Foi um tempo bonito.

A vida é uma sucessão de fatalidades, entrecortada por momentos bons, aqueles a que chamamos felizes - como os que descrevi, do tempo em que vendia flores, fazendo sorrir as freguesas com graças inocentes e singelas. Espalhava o meu sorriso pelos outros e fazia-os também sorrir. As flores davam-me alento, davam-me vida. Mas depois, quando se meteu mais uma fatalidade - a maior de todas - no meu caminho, perdi a alegria. Nunca mais vendi flores da felicidade, porque nenhuma flor no mundo poderia devolver-me a alegria de viver, e então deixei de ser florista. Se não era capaz de pôr um sorriso no rosto dos meus clientes, não fazia sentido continuar, arrastar o sofrimento, fingindo que alguma coisa fazia sentido. Dois meses depois de o meu filho morrer, reformei-me.

O João tinha 24 anos e 11 meses quando o carro que ele próprio conduzia saiu, a voar, de uma curva de uma via rápida. Logicamente, a queda foi violenta, o embate cheio de brutalidade. O Peugeot 308 ficou irreconhecível. O meu filho também. E sei do que falo porque fui eu quem lhe confirmou a identidade quando o destaparam - ossos desfeitos, rosto contorcido, inchado, cortes, milhares de cortes, um olho seis ou sete vezes maior do que o outro, ao ponto de nem fechar - na morgue.

Chamaram “a mãe ou os pais”, mas falei com o responsável, “como é que ele está?” - hesitou, encolheu-se, “muito desfigurado”. Lembrei-me de Marlon Brando n’O Padrinho, “não quero que a mãe o veja neste estado”, e disse à Marlene “fica aqui, querida, eu vou”. E fui. Sei que fiz bem, mas não sei como consegui aguentar-me de pé depois daquela visão. Não foi choque aquilo que senti, nem perda, nem tristeza: foi pena, uma pena imensa, profunda, infinita, imaginava-o a pedir ajuda, uma pena que me apertou o coração até ele quase explodir, uma pena impotente, imaginava-o a chamar “pai, pai, socorro” e a ir-se, a apagar-se, uma pena incapaz, fraca, miserável, meu pobre filho, meu pobre filho, era tudo o que conseguia dizer. Como foi aquilo acontecer-lhe? Quanta violência, quanta aflição, quanto sofrimento. Quanto horror.

Quando saí da sala frigorífica deparei-me com a Marlene desfeita em lágrimas - lágrimas de medo, o medo de que fosse mesmo ele, e lágrimas de esperança, a esperança de que afinal não fosse ele, de que fosse engano, de que fosse outra pessoa, um amigo, talvez, a quem ele tivesse emprestado o carro. Mas o meu rosto desfeito e o meu corpo contorcido em dores de compaixão não deixava dúvidas, era mesmo ele, o nosso João, o nosso pequeno, nosso rico filho, o mais valioso que eu tinha na vida, minha maior razão de viver, meu pequeno orgulho diário, meu deleite de olhar e pensar “que bem que ele cresceu”. Meu rico filho. Meu pobre filho.

Eu e a Marlene conhecemo-nos tarde na vida. Ela é mais velha do que eu, três anos. Eu tinha entrado nos trinta, ela ia mais adiante, claro. Cada um tinha a sua história quando o destino fez com que nos encontrássemos, embora a minha fosse muito mais simples do que a dela. Desde cedo fui independente, trabalhei, ganhei dinheiro. Eu, filho único e a viver com os pais, coisa rara na minha geração, tinha acesso a praticamente tudo, mesmo sem ser rico. Com aquilo que ganhava a trabalhar, tinha muito mais do que precisava para a única coisa que fazia na vida: divertir-me. Nunca tive namoradas sérias, preferia investir em amizades e extravagâncias, viagens e caprichos. Ocasionalmente, conhecia alguma mulher com quem me envolvia, mas nunca chegava a ser assunto sério.

A Marlene fez um trajeto diferente, muito diferente. Ainda nova, com pouco mais de vinte anos, engravidou de um namorado também não muito sério que acabou por deixá-la ainda antes de o bebé nascer. Mas ela teve-o, chama-se Rui, e criou-o bem. Quando eu a conheci, o Rui já tinha quase quinze anos.

Eu e a Marlene apaixonámo-nos com muita força. No que toca ao romance, fomos uma tempestade perfeita, fartos em loucura e parcos em medos e complicações, atirámo-nos de cabeça para os braços um do outro. E foi bom. E fomos felizes. Não ter medo do amor devia ser uma regra fundamental, um ensinamento que nos dessem à nascença. Um amor não pode ser vivido com medo. Que sentido faz temermos a única coisa que verdadeiramente importa na vida? O único sentimento que nos faz levitar até à dimensão das divindades, sentindo o indescritível, misturando o físico e o etéreo, a realidade concreta de todas as curvas e da maciez da pele fundida na sensação onírica de te engolir com os olhos, Marlene, de te deglutir, de me saciar com a cabeça deitada no teu peito, os dois todos nus, com a janela aberta a dar para a praia.

Terá sido numa dessas noites de amor extravagante que concebemos o João. Nunca tínhamos falado em ter filhos. Já existia o Rui, nós éramos somente namoradinhos loucos, apesar de, na altura, já termos idade para viver com juízo e contenção. Mas para quê juízo e contenção, se podemos ter uma vida divertida, cheia de voltas e surpresas, de deslumbramento, sensações e emoções, de prazeres e outros sentimentos?

Ela disse “acho que estou grávida”, o período estava atrasado. “Seis semanas”, disse ela, e eu ergui os sobrolhos como quem diz “bom, então em princípio é isso”. Ficámos um bocadinho em silêncio. Ela não sabia o que eu achava, eu não sabia o que ela queria. “Então, devíamos casar, não queremos que a criança nasça bastarda.” Foi o melhor que consegui dizer e talvez tenha sido a melhor coisa que eu podia ter dito. Rimo-nos, abraçámo-nos, celebrámos. À vida! À vida nova!

Casámos mesmo e, meses mais tarde, nasceu o João, um bebé lindo, grande e robusto, tinha quase 4 quilos e uns olhos amendoados, muito bonitos, muito espertos, muito atentos. Formámos, meio sem querer, meio por acaso, uma família feliz, daquelas em que as pessoas estão realmente alegres. Eu e a Marlene fomos uma espécie de bênção um do outro, de bálsamo para as vidas que levávamos e que nos iam deixando feridas esquisitas e ardentes.

O Rui, praticamente adulto, saiu de casa para estudar na faculdade pouco tempo depois. Ficámos os três e fomos vendo crescer o nosso bebé, fazer-se criança, depois um rapaz, a seguir um adolescente. Sempre de bem com a vida, raramente nos deu problemas - e os que dava eram daqueles saudáveis, que são somente sinal de que está a crescer bem, com curiosidade, com vontade de viver e com gosto por explorar o mundo. E eu e a Marlene a envelhecer devagarinho, lado a lado, agora mais companheiros do que amantes loucos, mas sempre muito apaixonados, sempre muito enamorados.

Chegámos a uma altura em que decidimos deixar os nossos empregos. Estávamos cansados e fartos, precisávamos de alguma coisa nova, leve, que nos alegrasse os dias. Sempre cultivámos a joie de vivre, não podíamos, logo agora à entrada para a velhice, deixar-nos abater pela acomodação triste de um trabalho, como quem perde a imaginação e a garra. Foi nessa altura que criámos o negócio das flores: íamos de terra em terra, de banca em banca, três ou quatro dias por semana, vendendo as flores, que ora comprávamos a fornecedores, ora criávamos nós mesmos nas estufas que construímos de raiz, na Margem Sul.

Quando o telefone tocou, naquela madrugada, eu tinha acabado de me levantar, íamos vender para os lados de Santarém. “Estou?” Do outro lado, silêncio e depois uma respiração de alguém que toma balanço, “senhor Urbano Parreira? Daqui fala o agente Soares, da PSP do Barreiro”. Parei de respirar, tolhido de medo. “Precisamos que venha ao hospital.”

Quando a Marlene me disse “Urbano, eu não aguento mais, tenho de me ir embora”, já tinha as malas prontas e arrumadas na bagageira do táxi, que aguardava lá fora, junto ao portão. Não fiz perguntas. Ela, no entanto, fez questão de me dar uma explicação. “Estás a deixar-te afundar cada dia mais e eu começo a sentir-me ir ao fundo contigo - não consigo ajudar-te e eu própria começo a perder as forças, a energia, o ânimo, que já não é muito, como deves imaginar.”

Fiz-lhe que sim com a cabeça. Senti-me, de certo modo, agradecido - pela consideração que demonstrava, por tudo o que me permitiu viver a seu lado, pelo filho maravilhoso que me dera (e que Deus nos tirara daquela maneira hedionda) e que fez valer tudo o que passei na vida, do ter nascido até ao estar ali, de cabeça enfiada num copo de whisky às nove da manhã, a matar mágoas e a olhar para fotografias, a recordar infâncias e o adulto que ele podia ter sido. Todos os dias. Todos os dias era isto e só isto que eu fazia.

Claro que, naquele momento, eu não consegui dizer nada disto à Marlene, não verbalizei o quanto lhe estava grato, não lhe disse o quanto ainda a amava, o quanto precisava dela, o quanto a vida era, apesar da nossa tragédia comum, muito mais suportável com ela por perto. Também não lhe disse que, apesar de a nossa tragédia ser comum, havia algumas diferenças: eu perdera tudo o que tinha, o meu único filho. Ela, não. Seria incapaz de lho dizer, na verdade. Nunca lho diria, nem pensar. Mas a verdade é esta. Ela tinha e tem o Rui, seu primeiro filho. Eu fiquei sem ninguém. E se me aguento até hoje, é porque aprendi, com muito esforço, a contemplar as fotografias e as memórias sem ter um copo diante de mim. Um dia de cada vez, cá vamos andando, mesmo sem flores nem alegria.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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