Viver com personalidade borderline. Um testemunho na primeira pessoa
Carolina, 22 anos, descobriu da forma mais dolorosa que tinha um transtorno que a leva a lutar constantemente contra pensamentos nocivos dentro da sua cabeça, viver dias de absoluta angústia, e até perder amigos. Na primeira pessoa, e à Máxima, conta como foi passar da notícia ao processo de aceitação, e como vive na esperança que o diagnóstico seja socialmente aceite e normalizado.

Escrevo e apago de forma repetida. Não sei quantas vezes já o fiz, mas a verdade é que escrever sobre como é viver com transtorno de personalidade borderline é deveras um desafio. Há quem o descreva como andar numa montanha russa para a qual nem comprámos bilhete, onde todos aqueles que nela estão connosco sentados acreditam que somos nós que a controlamos, quando, na verdade, não sabemos sequer quanto tempo vai a viagem demorar. Vivi sem um diagnóstico até aos meus 21 anos, o que posso dizer que, em relação à média, tive sorte em obtê-lo tão "cedo". Um amigo muito próximo ouviu o médico psiquiatra João Carlos Melo, num programa de rádio, a "Prova Oral", a falar sobre o seu mais recente livro Reféns das Próprias Emoções, um retrato íntimo das pessoas com personalidade Borderline. Insistiu que eu ouvisse, porque me revia em cada sintoma e talvez fosse a resposta para parte das minhas questões, que ele tanto sabia que me faziam sofrer. Depois de ouvir e ler o livro de João Melo poucas dúvidas me restavam. Marquei consulta, falámos umas quantas vezes e juntos percebemos que sofria realmente de personalidade borderline. Hoje, com 22 anos, sou ainda acompanhada por este médico e faço psicoterapia, que juntamente com a medicação fazem uma diferença abismal na minha vida. Ainda tenho crises e ainda há inconstantes, mas o controlo de todos os sintomas está cada vez mais a melhorar, e sinto que sou, hoje, uma pessoa com capacidade para me focar numa rotina de trabalho e estudos - ainda que nada disso seja fácil, eu consigo.
Até chegar aqui foi (e ainda é) uma luta diária. Uma luta que incluiu a passagem por vários psicólogos e psiquiatras, por diagnósticos como esquizofrenia e bipolaridade, por pensamentos dolorosos, cicatrizes, internamentos por enxaquecas persistentes e uma Carolina perdida. Não sei com precisão em que momento comecei a sentir os sintomas deste distúrbio, mas lembro-me quando tudo começou a piorar: na adolescência. Entre as atitudes impulsivas, o choro constante - e, muitas vezes, compulsivo -, a raiva que sentia dentro de mim sem saber exatamente porquê, o sofrimento exacerbado sobre tudo e todos, principalmente a revisão em loop da maneira como as pessoas agiam comigo… tudo isto começou a fazer-me sentir que precisava de ganhar significado, um nome. Comecei a ter crises durante as quais a necessidade de me magoar para aliviar todo o furacão de emoções que sentia era obrigatória. Foi então que, sem pensar na situação, a automutilação tornou-se um hábito, bater em mim própria também fazia parte, murros numa parede até o sangue nas costas da mão começar a aparecer – tudo isto eram gestos físicos que ajudavam no alívio mental. O que não ajudava era toda a vergonha que vinha depois dessas crises, em que tinha de "puxar" pela cabeça para conseguir inventar desculpas minimamente plausíveis para as mãos magoadas, as nódoas negras e os cortes tortos que por vezes eram visíveis, porque afinal eu não fazia ideia do porquê de ter feito tudo aquilo.

Viver com personalidade borderline é viver na instabilidade, no inconstante. Ao longo da minha vida fui ouvindo várias vezes palavras que de nada sentia que me serviam: "demasiado mimada", "estás a chorar, mas nem tens razões para isso", "tens é falta de força de vontade", e muitas outras frases que faziam sentido para quem me rodeava. O que essas pessoas não sabem é que, mantermo-nos vivos enquanto lidamos com um distúrbio desta proporção, "falta de vontade" não faz parte da história. É preciso muita vontade, porque o mais fácil é desistir, e desistir também eu o tentei fazer. Sendo direta, aos quinze anos tentei suicidar-me. Acreditava piamente que não conseguia viver mais tempo dentro do furacão que é a borderline e acreditava ainda mais que todos estariam melhor sem a minha presença. Porquê? Porque apesar de todo o nosso sofrimento, sabemos que não somos os únicos a sofrer. Perdemos amigos, as relações amorosas não resultam, temos receio da proximidade e de magoar o outro, medo de ficarmos sozinhos, porque todos têm o direito de se afastar de nós se assim o desejarem. Porque não somos assim tão egoístas e más pessoas como os sintomas nos fazem parecer ser. Com isto, tinha, portanto, caído em depressão. Acabei por deixar a escola nesse ano e a minha vida social (ou o que restava dela) ficou em pausa.

Foram cerca de seis meses de cama, seis meses durante os quais todas as noites o choro compulsivo surgia ao ponto de só parar quando posta debaixo de um chuveiro de água fria. Depois a dor começou levemente a acalmar, a medicação que tomava diariamente passou a ser reduzida e sentia-me pronta para voltar a tentar viver. Comecei por estar com duas amigas que me iam visitando, depois acompanhei o trabalho da minha mãe como forma de distração e aos poucos fui começando a ganhar forças. No ano seguinte, voltei a estudar, voltei à vida, meio atordoada, mas voltei. Ainda não tinha o diagnóstico, pelo que os sintomas continuaram e a vida, que por momentos pareceu leve, voltou a ser pesada. Mas, desta vez, mesmo a mente insistindo no assunto, não desisti. Somos hipersensíveis, desconfiados, a dor física é importante para o alívio das crises. Somos impulsivos e atuamos muitas vezes mal com quem nos quer bem, sempre longe dessa intenção, mas atuamos. Vivemos num ritmo caótico, onde dúvidas sobre a nossa identidade surgem muitas e muitas vezes. Num momento estamos felizes e, numa questão de segundos, o mundo cai-nos em cima, sem qualquer explicação. As oscilações de humor são persistentes e o primeiro passo para sair da cama de manhã é assustador.

Para mim, fazer planos ainda exige alguma preparação mental para manter a calma e recarregar baterias, de forma a conseguir estar plena com tudo o que pode acontecer à minha volta e com tudo o que o que me podem dizer, para tentar não me deixar atingir por qualquer palavra. Palavras essas que nunca sei exatamente quais são, mas que existem.
Preciso, no meu quotidiano, de fazer um esforço, que admito muitas vezes não ter sucesso, para não recapitular constantemente o que me dizem e a forma como me dizem certas coisas. Preciso de um esforço extra para não me culpabilizar por tudo o que acontece à minha volta, pelo que aconteceu no meu passado. Preciso de fazer um esforço para manter o furacão dentro de mim. Esse esforço exige muita força de vontade, força essa que tenho ganho cada vez mais. Força essa que me dá mais esperança para um futuro melhor, seja ele como for. Falei apenas a uma pessoa sobre este testemunho antes de o escrever. Alertou-me para o facto de eu correr riscos na minha futura vida profissional. Sei que aos 22 anos, ainda em estudos e a estagiar, expor parte da minha vida desta forma pode não ser o melhor para o mundo contemporâneo. Mas de uma coisa eu tenho a certeza, não há nada mais importante do que a saúde mental. Este distúrbio nada de útil me traz para vida a não ser uma coisa: poder usar a minha voz para dar forças aos que se encontram a sofrer, seja com o mesmo problema que eu ou não, e também para explicar que não é um distúrbio de personalidade que nos define. Quem sofre de personalidade borderline, com o acompanhamento certo, consegue ter um empenho profissional aos olhos dos outros como se de nenhum transtorno sofresse, porque isso é apenas uma parte de nós, não quem somos. Eu não sou a Carolina com personalidade borderline. Eu sou a Carolina Raposo.

Saúde, Educação, Saúde Mental, Personalidade Borderline, Suicídio, Testemunho
Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. Testemunho de uma mãe
"Meu filho está crescendo e ainda não me sinto pronta para ser sua mãe. Não sei se um dia eu me sentirei. Tento me inspirar em cada gesto, cada diferença, seja na ausência da fala, seja na sua hiperatividade, mas, principalmente, na coragem de ele ser quem ele é." Mona Camargo conta como é ser mãe de Salvador, menino autista.
“A saúde mental pode medir-se, tal como pode medir-se a dor”
Quando é que a ansiedade que sentimos deixa de ser normal para passar a ser patológica? Em que momento os sintomas silenciados se tornam preocupantes? Na recém-inaugurada Clínica de Neurociências e Saúde Mental do Hospital da Cruz Vermelha, avaliação e diagnóstico cruzam-se num método inovador que traz às ciências mentais uma nova (e necessária) objetividade.
Inês Gaya: "Portugal é dos países da Europa com maior prevalência de perturbações mentais"
Especialista em cura emocional e mentora de autoconhecimento, Inês dedica a sua vida a ajudar pessoas no seu processo daquilo a que chama "despertar de consciência".