
Muito já se escreveu sobre o assédio sexual no trabalho, em Portugal, desde a denúncia de três investigadoras do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de avanços impróprios por parte do professor Boaventura de Sousa Santos, e um seu assistente, entre os anos 2000 e 2019. Depois delas, mais pesquisadoras tiveram coragem de avançar e escreveram uma carta à universidade de Coimbra, sob o título "Não é difamação, nem é vigança, foi assédio" e acusam o emérito professor de assédio sexual, moral e extrativismo intelectual, porque também foram apropriadas algumas das suas ideias, sem o devido reconhecimento ou remuneração.
Na carta, lê-se que "as práticas abusivas atingiam homens e mulheres, mas estas eram desproporcionalmente impactadas com a sobrecarga de trabalho, excesso de demandas, e com a frequência com que o seu trabalho era depreciado. Pedidos domésticos eram dirigidos às pesquisadoras, como pedir que lhe seja servido um café ou que assegurem que ele tem bananas e água enquanto estava hospedado em viagens para alguma atividade".
Lembram-se de, no ano passado, serem reveladas várias queixas anónimas de assédio contra professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa? É sempre assim: fala-se um pouco no assunto, a sociedade escandaliza-se um pouco, mas fica tudo na mesma. Na verdade, não existem mecanismos que previnam, assinalem, combatam e denunciem estes fenómenos de uma grande e insidiosa subtileza, o que os tem alimentado, há gerações. A Faculdade de Direito, por exemplo, abriu um canal para receber denúncias e nada. Existem mensagens, e-mails e diferentes documentos que estão a ser recolhidos por um coletivo de mulheres (em querocontarminhahistoriaem23@gmail.com) e a Universidade de Coimbra disse estar a criar uma comissão independente para seguir o caso e fazer dele justiça, assim como os professores já foram suspensos das suas funções. Mas desde 2018 que já se liam nos muros da universidade: "Fora Boaventura. Todas sabemos".
Todas sempre soubemos e continuamos a saber. Mas habituámo-nos a encolher ombros condescendentes num "deixa lá", como um piropo despropositado, uma infidelidade reiterada, ou a eterna preguiça nos assuntos do lar. O assédio não tem a desculpa das emoções nem da proximidade, mas é tratado como mais uma fatalidade a que nos habituamos. Até porque continuamos a ser poucas a trazer o assunto ao debate com medo de ser mal vistas – a imagem, enganosa, das feministas que queimam soutiens teve o seu efeito de medo. Quantas vezes já ouviram a frase tonta: sou feminina, mas não sou feminista?

A professora Anália Torres, diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, diz isso mesmo numa entrevista ao Expresso: "Ainda há a sensação de que não vale a pena denunciar". O que é verdade para quase tudo o que diga respeito ao patriarcado vigente desde o princípio dos tempos. Mas se não forem elas a lutar por respeito, quem será? Se eu não gostar de mim primeiro, quem gostará? Daniel Oliveira comentava no programa Eixo do Mal: "Tenho esperança que o #metoo acabe com a opressão mais antiga de todas, a dos homens em relação às mulheres. Será a maior revolução de costumes das últimas décadas".
O termo assédio sexual tornou-se conhecido apenas nos anos 70 do século XX, quando o movimento feminista começou a dar nas vistas, é estudado a partir dos anos 80 e, por cá, só em 1989 nos debruçámos sobre o tema academicamente. O referido Centro de Estudos de Género dedicou-se ao estudo mais recente, de 2015, Assédio Sexual e Moral no local de trabalho em Portugal onde se lê: "(...) um fenómeno social ainda com pouca visibilidade em Portugal, mas de grandes consequências negativas para a saúde física e psíquica das vítimas". Foram inquiridas 1243 mulheres e 558 homens (a sobrerrepresentação feminina é opção metodológica), entre os 18 e os 90 anos, numa média de 40 anos, a maioria trabalhadores de serviços em pequenas empresas.
Entre estes dois estudos há uma grande diferença: se dantes o assédio sexual vinha de colegas (57%), agora a maioria vem de superiores hierárquicos ou chefias diretas (44,7% e 33,3% no caso das vítimas homens, que são uma novidade), e no caso do assédio moral estes valores ultrapassam os 80%. Curiosamente, 25% dos casos de assédio a mulheres provêm de clientes, fornecedores ou utentes. As situações mais frequentes do assédio sexual, no geral, são a atenção sexual não desejada e as insinuações sexuais; no assédio moral são a intimidação e a perseguição profissional – o que, aliás, também já sentimos vindos de outras mulheres, uma competição velada, muitas vezes mascarada de outras razões muito pouco pessoais: a baixa auto-estima é o alimento da inveja.
E se é fácil definir o assédio sexual, o moral é sempre mais nebuloso. Eis a definição do estudo de 2015: "O assédio moral é um conjunto de comportamentos indesejados percecionados como abusivos que tem como objetivo diminuir a autoestima da/s pessoa/s alvo e, em última instância pôr em causa a sua ligação ao local de trabalho. As vítimas são envolvidas em situações perante as quais têm em geral dificuldade em defender-se." Esta inclui isolamento social, perseguição profissional , intimidação e, em alguns casos, humilhação.

Boas notícias? Para além da óbvia importância que as mulheres ganharam no mundo do trabalho neste 25 anos, e a crescente noção dos seus direitos, inéditos na História, entre um e outro estudo, os números baixam consideravelmente: "a proporção de mulheres que refere situações de assédio no local de trabalho diminuiu de 34% para cerca de 14%". Por outro lado, hoje há uma "maior clareza na identificação de situações de assédio sexual por parte das mulheres e maior capacidade de reação", 52% mostra imediatamente desagrado, enquanto, em 1989, lá está: "Fazer de conta que não se notou a situação era a reação mais frequente (em 49% das mulheres)". Metade dos homens faz o mesmo hoje quando é assediado (50%) - o que é muito curioso.
Más notícias: no estudo de 2015, "os números que se atingem em Portugal, tanto do assédio sexual como moral, são muito expressivos e superiores aos que se verificam na média dos países europeus", isto é, 12,6% no primeiro caso (quando a média dos países europeus era 2%, em 2010), e 16,5% no segundo (4,1% é a média europeia). "A transposição para o interior do mundo do trabalho de uma ordem de género e de uma ideologia de género que reproduz desigualdades entre homens e mulheres é um fator fundamental para a promoção das situações de assédio, porque permitem a desvalorização simbólica e objetiva do lugar ocupado pelas mulheres." Anália Torres, que dirigiu este estudo, sublinha o terreno pantanoso, mas sem nada de turvo, "Se a pessoa disser que não, é não": "A sedução é algo que, culturalmente, os homens têm incorporado como fazendo parte da sua masculinidade. (...) No fundo, esta cultura da dominação masculina afeta homens e mulheres."
Consta que apenas um em cada cinco casos de assédio chega à justiça em Portugal, hoje. Ainda aguardamos que o #metoo chegue cá um destes dias, com pelo menos metade da velocidade com que chegam as novidades tecnológicas e as suas cansativas e permanentes atualizações.

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