Histórias de Amor Moderno: “Aquela pessoa que ali está é uma versão desligada da Gabriela que eu tanto amei”
“Possívelmente, já lhe fugia a memória há mais tempo do que isso, mas, inteligente e hábil nas palavras como era, foi contornando o problema e disfarçando.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Os dicionários são unânimes na forma categórica como definem infidelidade: que é uma traição, uma falta ao compromisso e, quanto a mim ainda mais grave, uma deslealdade. Infiel é uma categoria onde não cabem as pessoas honestas. A infidelidade é uma qualidade somente ao alcance dos que enganam. Só que os dicionários, certeiros e autoritários na maneira como determinam o que é ou não é, falham a definição sensível da consumação da infidelidade. Sim, é verdade que lhes compete - aos dicionários - compreender, esmiuçar e transmitir a essência que a palavra carrega. Mas o que nos dizem fica curto e sabe a pouco quando saímos do mundo ideal das palavras compiladas, ordenadas alfabeticamente, e damos por nós na vida real, num mundo onde as pessoas e as situações são muito mais complexas do que simplesmente serem isto ou aquilo, como o preto e o branco, sem nuances nem reservas.
Conheci a Gabriela, a minha querida e amada e belíssima Gabriela, há muito, muito tempo. Éramos miúdos, estudávamos na universidade, em Coimbra. Nenhum de nós era de Coimbra, ela vinha do Minho e eu do Sul. Encontrámo-nos ali, dois desterrados cheios de sonhos e de paixões que partilhávamos em boa parte dos casos. Entre essas paixões, a maior de todas: os livros. Ambos de letras, tínhamos nos livros não apenas o refúgio possível - o País nessa altura era outro, um Portugal de pequenitos -, mas o destino de sonho. A par da paixão pelas letras cresceu o nosso amor. Fomos namorados, namoradinhos daqueles muito românticos e apegados. Fazíamos tudo em conjunto, um dueto inseparável e criativo, tentando pintar a vida de forma colorida.

Quando o regime finalmente mudou em Portugal, ainda estudávamos e vivíamos em Coimbra. O otimismo que resultou da mudança deu-nos o empurrão definitivo para que realizássemos aquilo que idealizávamos. Em vez de aceitarmos o que o destino nos tinha traçado, e que devia resumir-se a dar aulas num qualquer liceu de província, elaborámos um plano com uma certa ambição. Passaríamos os primeiros anos a trabalhar como professores e iríamos poupar. Os filhos viriam só numa fase posterior. Primeiro havia que preparar terreno para o princípio de todo o futuro: fundar uma livraria. E conseguimo-lo com assinalável rapidez. Ao fim de uns poucos anos, apenas, tínhamos o nosso próprio estabelecimento.
A estabilidade financeira e o relativo sucesso da nossa aventura entre os livros permitiu-nos crescer como família. Primeiro, tivemos o Miguel; dois anos mais tarde, nasceu a Mariana. Os nossos sonhos iam-se concretizando a bom ritmo. Certamente terá havido solavancos pelo caminho. Contudo, no geral, as coisas acabavam por acontecer tal como as planeávamos e esperávamos que acontecessem. No fundo, sempre formámos uma excelente equipa, eu e a Gabriela. O nosso amor, que sempre se compôs mais de atração serena do que de paixão eufórica, aos poucos transformara-se num laço muito forte, numa ligação que ia muito para lá do gostar ou não gostar, desejar ou não desejar. Eu e a Gabriela éramos verdadeiramente família, uma equipa a toda a prova, construída sobre alicerces de amizade, respeito e compromisso.
Haverá quem olhasse para nós e nos achasse demasiado pragmáticos. E éramos, de facto, pessoas muito objetivas. Mas só nos poderia reduzir a tais adjetivos quem não nos conhecesse na vida privada e familiar. Impúnhamos a nós mesmos a obrigação de sermos práticos precisamente por sermos um duo de sonhadores românticos. O que acontecia é que contrariávamos a nossa natureza nos campos mais materiais e objetivos da vida, de maneira a que pudéssemos desfrutar do lado romântico e sonhador que o que íamos construindo nos permitia viver. Essa nossa construção atingiu o seu zenite quando fundámos a editora. Embora modesta em dimensão, orgulhávamo-nos da escolha criteriosa dos livros e autores que decidíamos publicar, quer fossem jovens portugueses emergentes e pouco conhecidos ou estrangeiros inéditos e sem expressão por cá. Sentíamos que estávamos a mudar coisas, sentíamos que a nossa missão fazia diferença.

Porque é que eu conto tudo isto? Porque preciso que se perceba, para lá de qualquer dúvida, que aquilo que tenho - ou tive - em conjunto com a Gabriela não é apenas um casamento. O nosso compromisso extravasava largamente os limites que definem, por norma, esse contrato de união. Amar e respeitar na saúde e na doença, por aí fora, era tão absolutamente óbvio para nós que se torna embaraçoso exprimi-lo. Juntos, construíamos a nossa vida, uma só, e ajudávamo-nos mutuamente na edificação contínua de cada um. E não existíamos um sem o outro, porque isso não faria sentido, de tal modo éramos interdependentes e tão profundamente parte um do outro. E é por isso que agora me encontro neste estado de solidão dilacerante, de desorientação, confusão e dúvida.
A Gabriela começou a esquecer-se de coisas há cerca de uma década. Possívelmente, já lhe fugia a memória há mais tempo do que isso, mas, inteligente e hábil nas palavras como era, foi contornando o problema e disfarçando. Só quando as ocorrências começaram a ser frequentes é que começámos a falar sobre o assunto. Certa noite, ao jantar, dei conta de que a Gabriela estava com muita dificuldade em comer. Refiro-me ao ato de levar a comida à boca. Em vez de falar com ela e de lhe perguntar se estava bem, se precisava de ajuda, detive-me a observá-la. Era-lhe muito difícil utilizar os talheres, como se não soubesse fazê-lo. Depois, percebi que tinha trocado de mão o garfo e a faca. A imagem é aterradora porque mostra que, para a Gabriela, aqueles objetos com que tinha comido durante uma vida inteira eram agora ferramentas absolutamente desconhecidas. Liguei de imediato para os meus filhos, "temos de levar a mãe ao médico urgentemente".
Os nossos netos já não chegaram a conhecer a avó. Visitam-na, fazem-lhe companhia, dão-lhe dois beijos quando chegam à visita e outros dois quando se despedem dela. Só que ela é uma senhora que já não é a avó que os deveria ter acolhido neste mundo e de os ter mimado, e brincado com eles, e apaparicado com lanches especiais e guloseimas proibidas pelos pais. Esta senhora muito envelhecida e silenciosa, de olhar perdido no vazio, é uma projeção maldosa da Gabriela jovem num futuro distópico. Não sabe quem é. Não sabe quem eu sou. Não reconhece os filhos, tão pouco. E, para grande tristeza minha, nunca conheceu os netos, pois quando os pequenos vieram ao mundo já a sua mente tinha partido para outra qualquer dimensão inacessível.

E eu? Quem é que eu sou agora, o que é feito de mim? No princípio da grande desgraça, dediquei-me de todas as maneiras a tentar recuperar a Gabriela, o meu amor, mesmo contrariando as declarações impiedosas dos médicos. "É irreversível, ela não voltará, só irá piorar e cada vez mais rapidamente", diziam-me. Os menos pessimistas afirmavam que, com muito esforço e as chaves certas, "talvez" conseguíssemos atrasar o agravamento da doença. "Talvez", enfatizavam. Mas não conseguimos. Não consegui. Seguiu-se a fase em que me restava tentar dar-lhe conforto, o último reduto da expressão do amor. E o olhar dela ia-se apagando de dia para dia, cada vez mais vazio, cada vez mais desorientado, confuso, perdido, à procura de nada. À espera de nada.
Enquanto todo este processo horrendo decorria, com a lentidão cruel de uma caminhada inexorável em direção ao abismo da ausência, fui cuidando como pude daquilo que ambos construímos: a livraria, a editora e a família. Só que a família já era só eu, o vazio deixado pela Gabriela e um filho e uma filha distantes, cada um com a sua própria vida atarefada e sem tempo para um pai velho e solitário.
A existência começa a perder o sentido quando deixamos de ver lógica na vida e o mundo já não nos apaixona. O fardo começa a tornar-se insuportável, o seu peso aumenta de dia para dia. Vamos sendo esmagados. À entrada na velhice, sem direito a a mais uma oportunidade, começamos a sentir saudades da vida, mesmo que ainda estejamos vivos. É tortuoso. Só que eu, otimista, acredito que ainda há uma pequena esperança de encontrar motivo para continuar por cá durante mais algum tempo. Talvez eu possa encontrar um novo amor.

Conversei abertamente sobre o assunto com os meus filhos. Fi-lo ao telefone, pois não os vejo há já seis meses. O Miguel mostrou um pouco mais de compreensão e paciência. A Mariana mandou-me secamente "ganhar juízo" e desligou a chamada. O meu filho disse-me que achava errado que eu sequer pusesse essa ideia, estando a mãe ainda viva. Tentei explicar-lhe que a mãe que ele conheceu já não existe, que aquela pessoa que ali está é uma versão desligada da Gabriela que eu tanto amei. Não aceitou, diz que "só pensar nisso será sempre uma infidelidade". Terminou a conversa com uma sentença que eu sei bem o que significa, "tu é que sabes da tua vida, faz o que a tua consciência ditar ou permitir".
Estou sozinho. A vida que me resta, e que já não será para durar muitos anos, contém pouquíssimo tempo reservado aos prazeres, ao deslumbramento e à paixão. E sinto que me estão a privar desses escassos momentos, dessas últimas reservas de aventura que o universo nos concede.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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