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Rocío de la Villa, investigadora: “O movimento feminista é plural e tem evoluído e enriquecido com as polémicas"

A professora e investigadora Rocío de la Villa conduz-nos numa visita guiada por Maestras, uma exposição assumidamente feminista, para visitar no Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, em Madrid.

Foto: DR
31 de outubro de 2023 Rita Lúcio Martins

Pensada a partir de uma perspetiva feminista, Maestras é a exposição que junta mais de cem obras, entre pinturas, esculturas, desenhos e têxteis, produzidas desde o final do século XVI até ao início do século XX. Trabalhos assinados por nomes como Artemisia Gentileschi, Angelica Kauffman, Clara Peeters, Rosa Bonheur e outras, muitas outras. Mulheres de talento reconhecido, mas repetidamente afastadas da História da Arte. A exposição patente no museu Thyssen até 4 de fevereiro marca uma posição: se, por um lado, é uma tentativa de repor verdade nas narrativas oficiais, por outro, pretende ser um incentivo à criação artística no feminino. "Nas últimas décadas, as mulheres ultrapassaram os homens na formação artística, representando atualmente mais de 70% dos licenciados em Belas Artes. No entanto, como vários Relatórios da [Associação] Mujeres en las Artes Visuales, têm demonstrado, elas começam a ser afastadas no período de profissionalização, de tal forma que apenas um terço se integra plenamente no sistema artístico; consequentemente, só pelo facto de serem homens, gozam de três vezes mais oportunidades", avança Rocío de la Villa, adiantando que as percentagens destes relatórios referentes à situação em Espanha não diferem substancialmente de outros países. "Dado que a falta de conhecimento da outra metade da história da arte parece apoiar esta inclusão ainda precária das mulheres no sistema artístico, uma exposição como Maestras também pretende ser uma cunha a favor das mulheres artistas vivas".

Twilight Confidences, 1888 de Cecilia Beaux
Twilight Confidences, 1888 de Cecilia Beaux Foto: DR

A exposição reúne mais de 100 obras, como foi feita a seleção?

O projeto curatorial de Maestras baseia-se numa combinação da História das ideias e da História da Arte para contar a História da emancipação das mulheres no Ocidente durante a Modernidade, desde o século XVII até às primeiras décadas do século XX, quando o sufrágio universal foi gradualmente alcançado nos diferentes países e, por conseguinte, o reconhecimento das mulheres como cidadãs. Para criar esta História e torná-la diretamente acessível ao público, foi essencial especificar iconografias muito específicas, que condicionaram a seleção de imagens. Entre estas diferentes iconografias, foram privilegiadas as composições em que se junta um grupo de duas ou mais mulheres. Outro critério importante foi o de isolar locais e momentos históricos propícios à aprendizagem e ao sucesso das artistas, bem como as ligações entre elas e colecionadoras ou galeristas.

Quanto tempo foi necessário para preparar um trabalho desta envergadura, que reúne artistas e obras tão diversas, ao longo de mais de três séculos?

Apesar de Maestras condensar décadas de investigação em História e Teoria da Arte Feminista, demorei três anos, desde a aprovação do projeto até à sua inauguração. É uma exposição muito ambiciosa, com apenas três obras pertencentes ao museu, o que significou que quase uma centena de pinturas, esculturas, gravuras e têxteis tivessem de ser encomendadas a museus e coleções privadas. Hoje em dia, os museus consideram as obras [de mulheres artistas] que tinham nas suas arrecadações como um bem importante para a sua ligação com o público e, ao mesmo tempo, recebem muitos pedidos de projetos de exposições monográficas, por períodos ou estilos... tudo isto complica muito a obtenção de empréstimos.

The Shoe Shop, ca.,1911 de Elizabeth Sparhawk-Jones
The Shoe Shop, ca.,1911 de Elizabeth Sparhawk-Jones Foto: DR

A exposição está organizada em oito secções diferentes. Qual é o percurso que os visitantes da exposição podem fazer?

No caminho para a emancipação das mulheres, começamos com a iconografia das pintoras italianas que, nas suas composições de pintura histórica, traduziram em imagens as queixas das escritoras de La causa delle donne (conhecida como Querelle na história europeia): esta foi, sem dúvida, a primeira geração consciente do poder do discurso patriarcal, da sua exclusão das mulheres e da imposição do seu silêncio. O facto de Fede Galizia, Lavinia Fontana, Artemisia Gentileschi e Elisabetta Sirani apresentarem versões muito diferentes das histórias das heroínas bíblicas, distorcidas e erotizadas nas versões dos seus colegas homens, marca a diferença de uma história da arte feminina que aborda de forma inovadora outros temas como a relação das mulheres com a natureza após a revolução científica, a descoberta da complexidade da identidade no ambiente teatral dos salonnières, a sua posição em relação ao género popular do orientalismo e a representação do trabalho, da maternidade e da amizade entre mulheres. 

Laura Lombardía
Laura Lombardía Foto: DR

Como é que chegou a estes grandes grupos temáticos e o que é que eles dizem sobre a grande História das Mulheres?

O meu interesse em mostrar ao grande público a importância e a qualidade das obras das mulheres artistas exigia uma articulação, uma vez que, após a investigação de legiões de historiadoras de arte feministas, conhecemos hoje obras de milhares de artistas deste período, e não apenas de artistas ocidentais. Assim, não era possível tentar reproduzir uma História da Arte das Mulheres, por mais sintética que se tentasse fazê-la. A solução foi falar de marcos nas conquistas das mulheres no seu caminho para a emancipação, representados por mulheres artistas. Assim, por exemplo, centrarmo-nos no seu acesso ao mundo do trabalho e da cidade, e depois na sua rejeição da propaganda patriarcal do "anjo do lar" que procurava encerrá-las na esfera doméstica no século XIX, muito misógino, com as suas representações inovadoras da maternidade, são questões que podem ser bem contadas com iconografias concretas e facilmente acessíveis ao público atual.

The North African Fellah, 1827 de Henriette Browne
The North African Fellah, 1827 de Henriette Browne Foto: DR

O que significa "uma exposição comissariada a partir de uma perspetiva feminista", do ponto de vista artístico?

A exposição destaca o valor das mulheres artistas como nossas antecessoras. Representa a recuperação de um passado que até há pouco tempo estava escondido, esquecido e apagado. Esta recuperação é uma fonte de empowerment para as mulheres do século XXI e oferece uma reconsideração da necessidade de uma sociedade igualitária a partir do plano simbólico da tradição artística. Por outro lado, face aos ensaios e exposições feministas que salientaram todos os obstáculos opressivos do patriarcado, na sequência de uma viragem na investigação feminista que teve lugar em meados dos anos 1990, quando as redes de mulheres começaram a ser exploradas em profundidade, entre mecenas, colecionadores e, mais tarde, galeristas e as próprias artistas, em Maestras preferimos escolher certas janelas, lugares e momentos feminizados, favoráveis às criações de artistas que se tornaram académicas e obtiveram grande reconhecimento entre teóricos, historiadores e colecionadores, mesmo no valor económico das suas obras.

Como observa a evolução do movimento feminista, com todas as fragmentações que também o caracterizam?

O movimento feminista é plural desde as suas origens e tem evoluído e enriquecido com as polémicas. Nesse sentido, o momento atual não é muito diferente, mesmo que trate de outros conceitos. O importante é o seu objetivo, alcançar o "feminismo por vir" de que fala [a professora, especialista em estudos feministas e artes visuais] Griselda Pollock.

(Still Life with Flowers, a Silver-gilt Goblet, Almonds, Dried Fruit, Sweetmeats, Bread sticks, Wine and a Pewter Pitcher, 1611 de Clara Peeters
(Still Life with Flowers, a Silver-gilt Goblet, Almonds, Dried Fruit, Sweetmeats, Bread sticks, Wine and a Pewter Pitcher, 1611 de Clara Peeters Foto: DR

Porque é que o conceito de irmandade é importante para explicar a exposição?

Simone de Beauvoir afirmou um dia que não era feminista até se ter juntado às jovens do Movimento de Libertação das Mulheres, anos depois de ter publicado O Segundo Sexo. A sororidade é indispensável ao feminismo e é uma noção central em Maestras. Como se pode ver nesta exposição, as artistas têm consciência de que, na cultura patriarcal, as mulheres eram representadas sozinhas, isoladas, ou como um grupo sem forma e indiferenciado, no fundo das composições históricas. Em vez disso, elas retratam as mulheres em conjunto, realizando várias atividades, criando assim uma nova iconografia: a representação da amizade entre mulheres, em oposição à suposta rivalidade entre mulheres incutida pelo patriarcado. 

Qual a importância de exposições como esta para dar alguma amplitude à História, sem descurar também o impacto que podem ter nas gerações mais novas?

Como argumentam Griselda Pollock e Rozsika Parker, é precisamente quando os museus de arte moderna começam a ser criados e o sistema de arte se expande e consolida que as mulheres artistas são apagadas da história da arte, mesmo as artistas que chegaram ao topo: académicas, referenciadas na literatura de arte e procuradas por mecenas e colecionadores. Precisamente quando, finalmente, as mulheres são reconhecidas como cidadãs, com direitos iguais (no papel) à educação, ao trabalho, ... com o apoio de instituições e universidades durante o século XX, por incrível que pareça, foi perpetrado um grande engano na sociedade, escondendo as contribuições das mulheres.

Uma exposição como Maestras tem como objetivo repor a verdade histórica na sociedade do século XXI. A grande qualidade das obras desta exposição demonstra a gravidade deste apagamento. Esperamos que, depois de Maestras, o público exija ver mais artistas. Neste sentido, esta exposição pode funcionar como um programa piloto inspirador para projetos que abordem e aprofundem períodos, movimentos ou noções de carácter monográfico.

Judith and her Maidservant, 1618-19 de Artemisia Gentileschi
Judith and her Maidservant, 1618-19 de Artemisia Gentileschi Foto: DR
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