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Histórias de Amor Moderno: “O facto de ser mais novo do que eu dava-me uma certa vantagem”

“Os rapazes muito novinhos podem ser autênticos touros, mas muitas vezes falta-lhes aquela sensibilidade, aquela consciência do que é o prazer, o deleite, o tempo, o ritmo, o toque.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / TMDB
17 de fevereiro de 2024 às 14:30 Máxima

Deixei o meu anterior companheiro porque eu precisava de sexo, de mais sexo. Talvez as pessoas não estejam muito habituadas a ouvir isto, especialmente se for dito por uma mulher. Mas também talvez as pessoas omitam demasiado as suas vontades, tanto na hora de falar como no momento de ouvir. Eu gosto de sexo. Se parecer demasiado frívolo ou até desavergonhado, posso reformular: gosto de fazer amor. Deem-lhe o nome que quiserem, mais romântico ou mais brejeiro, mais carnal ou mais apaixonado, mais respeitoso ou mais depravado. Seja qual for a palavra que encontrem, pois é disso mesmo que eu gosto, e é disso mesmo que eu preciso.

O Tiago era um rapaz giro. E além de giro era sete anos mais novo do que eu. Isto, dito no vazio, pode ser interpretado de muitas maneiras e pode até nem significar coisa nenhuma, mas se acrescentar que eu tinha 35 anos e ele 28 parece que se desenha automaticamente um esquema de equilíbrio: ele na flor da idade, no pico do vigor e no princípio da maturidade - os rapazes muito novinhos podem ser autênticos touros, mas muitas vezes falta-lhes aquela sensibilidade, aquela consciência do que é o prazer, o deleite, o tempo, o ritmo, o toque -, eu uma mulher a entrar em plena velocidade de cruzeiro. Acredito que os trintas sejam a idade do esplendor feminino, quando a juventude e a beleza se fundem com a experiência e a clarividência de quem já viveu um pedaço; quando os desejos do corpo já estão sintonizados com os conhecimentos da mente; quando o que nos acontece já não é só um fruto das circunstâncias e do acaso, mas também o resultado das nossas vontades; quando o ardor carnal, em vez de nos fazer vulneráveis, como acontece à entrada dos vintes, nos transforma em snipers calculistas e precisas que não disparam ao acaso.

O Tiago era um projeto pessoal meu. Um rapaz giro, sim, e um homem por quem viria a apaixonar-me, sem dúvida. Mas, no momento em que olhei para ele pela primeira vez, não foi no sagrado matrimónio que eu pensei, nem na constituição de uma família feliz, arrumadinha e tradicional, nem no lançamento dos alicerces metafóricos e robustos que a construção de uma consistente vida a dois exige. Quando olhei para ele pensei "fazia-te já". E quando meti conversa não fiz muita questão de manter ocultas as minhas intenções, as primeiras e as segundas, até porque ambas consistiam no mesmo. Correu bem.

Os nossos primeiros tempos juntos foram praticamente tudo aquilo que eu sempre tinha imaginado como "uma vida feliz". O facto de ser mais novo do que eu dava-me uma certa vantagem - talvez "vantagem" não seja a palavra ideal. Posicionava-me em relação a ele de um modo diferente de tudo o que me tinha acontecido anteriormente, sempre com namorados mais velhos ou da minha idade. Os homens têm, no geral, uma propensão para liderar nas mais ínfimas matérias, principalmente quando estas não implicam decisões amadurecidas, planos complexos e processos metódicos (nesses, em princípio esperam que alguém tome conta do assunto, e esse alguém é, por norma, a mulher que está com eles - deve ser daí que vem aquela tremenda e irritante falácia do "por trás de um grande homem…" - vejam bem, "por trás", nunca "ao lado", enfim). Com o Tiago, isso não sucedia. Como um cachorro que aguarda por instruções e se torna obediente em troca de alimento e abrigo, o Tiago nunca se adiantava a mim no que toca a decisões. Como não tenho exatamente sede de poder nem me abala a confiança ter ou não ter a última palavra, gerou-se entre nós uma relação de grande abertura em que íamos respeitando os gostos e preferências um do outro, assim como as prioridades da vida de cada um. Pelo meio, fazíamos sexo. 

Foram tempos muito divertidos. Uma vida sem constrangimentos nem ambições tem destes benefícios: passeávamos, viajávamos, saíamos, conhecíamos gente e lugares, era como se cumpríssemos os sonhos de um aspirante a influencer de Instagram, só que connosco aquilo era mesmo a vida real, feita de pequenas coisas. E foram as pequenas coisas que se acumularam ao longo dos tempos que acabaram por preencher o espaço que por norma as pessoas reservam para as grandes coisas. Um grande projeto era, para nós, fazer a viagem a Nova Iorque em junho, ou a escapadela às Canárias no fim do verão do ano seguinte. Era assim que fazíamos planos, considerando o que pretendemos fazer nos seis meses seguintes como os adultos convencionais se organizam em relação ao longo prazo.

Numa altura em que tentámos ser mais estáveis, mais concentrados e ponderados, construir qualquer coisa para o futuro, planeámos ter um cão. E adotámos um. Durante os primeiros meses, e apesar de todo o frenesim e toda a bagunça que um animal adolescente e frenético é capaz de produzir num lar, não correu nada mal. O problema foi quando quisemos planear as férias seguintes no Sudeste Asiático, com voos e mais voos, transbordos e viagens de barco. Tornaram-se incompatíveis, o nosso modo de vida e o Zeus, um Weimaraner cinzento que nunca hei de esquecer. Demo-lo a uma prima do Tiago que tem uma quinta perto de Santarém. Soubemos, meses depois, que tinha fugido. Não acredito que tenha ido longe, não era propriamente expedito.

Por essa altura, a nossa relação já não era o paraíso que fora nos primeiros meses, ou até anos - talvez os primeiros dois anos. Estávamos juntos, mas os interesses em comum resumiam-se praticamente a vaguear pela vida, a andar pelo mundo, ou pela cidade, ou pela praia, sem nenhum outro sentido ou objetivo maior do que simplesmente andar para ali. Nenhum de nós falava do assunto, mas as coisas tornaram-se muito mais automatizadas e muito menos febris do que eram no início. E, a par desse apagar do deslumbramento, apagou-se também o fogo sexual. A cadência com que fazíamos reduziu-se gradualmente. Quando fizemos a tal viagem à Ásia, depois do Zeus, deparámo-nos com vários vazios.

Essa viagem aconteceu há já alguns anos. E eu não acabei com o Tiago logo a seguir. Quem me dera que o tivesse feito, mas não é assim que as coisas funcionam. Primeiro, tentei resolver comigo o que estivesse errado. Procurei em mim, procurei, procurei, até que percebi que comigo estava tudo certo. Depois falei com ele, perguntei-lhe pela libido, pelo desejo, pela fome esganada que tínhamos tido um pelo outro. Encolheu os ombros, respondeu que com ele não havia problemas, que estava tudo bem, que me achava linda como sempre, etcetera, etcetera, que me amava e que isto era mesmo assim. Muito bem, aceitei a resposta.

O que acontece quando aceitamos respostas é que nem sempre isso significa que o nosso corpo as aceite da mesma maneira. O meu decididamente não aceitou. O meu desejo, a minha libido, querem lá saber se "isto é mesmo assim". Eu não ando nesta vida para deixar escapar o tempo. Não vivemos assim tantos anos de saúde e bom aspeto físico para que os possamos atirar fora. O meu corpo precisa de ser tocado, mexido, agarrado. De várias maneiras. De preferência, de todas as maneiras. 

Eu pensava isto, mas só naquela camada que fica por baixo dos pensamentos claros, uma espécie de derme para a epiderme que são os pensamentos que podemos verbalizar, como se fossem palavras embaciadas que não conseguimos ver distintamente lá dentro, por trás da testa, e que então nunca se transformaram em ideias completamente formadas. Eram só esboços de pensamentos. 

O Tiago percebeu que estávamos tremidos, que a relação estava abalada. Começou a falar em crianças, em ter filhos. Eu não quero ter filhos. Eu quero uma vida à superfície das coisas, uma vida que deslize daqui até ao fim, sem solavancos. Não lhe disse nunca que não íamos ter crianças, mas dei-lhe a entender que, para haver bebés, era preciso haver sexo. "Não sei se conseguimos, Tiago", disse-lhe uma vez. "Sabes que isso não acontece por osmose nem por milagre, é preciso uns quantos procedimentos - que até sabem bem ao corpo, por sinal." Como sempre, encolheu os ombros.

Fiz quarenta anos no fim do ano passado. Quarenta anos, por Deus, se alguma vez eu me imaginei com uma idade destas. Os quarenta são uma barreira psicológica que intimida. Um sinal do universo a dizer "já não te falta muito, criatura". Certa manhã, quando levava algumas caixas de cartão para o ecoponto, cruzei-me com um rapaz. Não sei se é vizinho, mas deve ser, já o vi mais que uma vez. Mas desta vez percebi que olhou para mim, embora discretamente. Só que olhou com uma espécie de desejo que me fez baixar os olhos - não por vergonha, antes por excesso de sintonia. E dei por mim a pensar "eu já senti isto". Quando voltei para casa, chamei o Tiago, disse-lhe que se sentasse. "Tiago, precisamos de conversar."

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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