
Apaixonei-me. Algum dia teria de acontecer. Depois de tantas velas acesas ao Santo António, tantas meditações de 21 dias para atrair o amor e muitos euros gastos em terapia energética, ele lá apareceu. Sorrateiro. O suposto amor da minha vida. E não foi o sexo oral sobre a bancada da cozinha - embora só essa manhã seja suficiente para fazer qualquer mulher se render. Foi o acaso, como naquele filme, Brief Encounter, de 1945, onde dois completos estranhos se apaixonam sem querer - há uma cena em que se olham e, puf!, o cupido acertou-lhes. A vida nunca mais será a mesma. Às vezes, o amor surge assim, quando não estamos à espera. O pior de tudo é que, geralmente, é pelo feinho que nos embeiçamos. Por isso é que não estávamos à espera! Aliás, como se diz na gíria popular: "Toma lá que é para aprenderes!".
Conheci o Tomás n’A Brasileira, enquanto pedia um café inflacionado que pago com gosto porque existem rituais que nos enriquecem. Prefiro beber um café n’A Brasileira a beber dois indiferenciados por aí. Para mim, a vida só tem sentido assim, vivida intensamente, como se cada ato fosse um ritual e tivesse uma intenção. Se for preciso, não como nada de jeito durante dias para depois poder ir ao Galeto ou ao Gambrinus empanturrar-me. Isso é que me sacia, porque não me tira só a fome de comida, retira-me a fome de viver também. Quanto ao Tomás, depois de uma série de encontros ocasionais n’A Brasileira lá meteu conversa comigo. Eu levava o livro "Uma Paixão Simples", de Annie Ernaux, debaixo do braço. Pousei-o no balcão enquanto pedia uma bica. Ele perguntou-me se valia a pena. Não percebi. Valeria a pena o livro ou valeria a pena viver uma paixão simples? Olhei-o nos olhos e disse com convicção: "Não sei, ainda!". Provoquei-o. Funcionou. Rapidamente começámos a falar durante horas, sobre tudo e sobre nada. E do anseio da mente passámos para o do corpo. O sexo tornou-se tão intenso quanto a partilha de ideias. Não era somente uma paixão simples, era um amor em construção.
Certo domingo, o Tomás perguntou-me se estava na Igreja. Não que seja ultrarreligiosa ou me possa considerar católica devota. Na verdade, nem sei bem porque lá vou. Acho que funciona como uma espécie de meditação, embora seja um facto que tenha fé. Quando saí esperava-me. Fiquei contente, o meu amor esperava-me à porta da Igreja. Dei uma de menina decente, sorri discretamente, beijei-o ao de leve. "O que fazes aqui?", perguntei. "Vieste à missa com esse vestido?". Era um vestido de linho muito simples com alças, curto, acima do joelho. "O padre deve ter ficado feliz por te ver", brincou. Não admitia, mas troçava da minha ida à Igreja. Algo no meu ato domingueiro de apreciação divina lhe mexia com os nervos.
Nessa tarde, a conversa resvalou para a temática do casamento. Sempre achei bonito duas pessoas assumirem um compromisso perante Deus - ou perante qualquer outra entidade. A beleza, para mim, reside em ditar os votos perante a graça de algo que consideramos ser superior a nós. "Não me vou casar, Maria, se me quisesse casar já o teria feito. E há outra coisa, se calhar já te devia ter dito antes, mas tenho quase 40 anos, não faço intenções de ser pai. Adoro a minha vida como está". Ponto final. Sem discussão. Sem meio-termo. Nada. Não foi um "Puf!". Foi um "Bang!". O cupido não me acertou, aniquilara-me. Num breve momento, num breve instante, tudo mudou. Depois de seis meses juntos, o Tomás queria-me, amava-me até, porém, as minhas ilusões estavam desfeitas. Poderia continuar a viver no engano de alcançar o todo - um dia, eventualmente, quem sabe. Não sei se conseguiria continuar com a realidade de saber que o todo estava, de repente, bastante limitado – e eu nem sei o que é o todo, quando falo de todo e se quero o todo sequer. Quererei?

Sentia-o olhar-me, sabia que ansiava pelo momento em que os nossos corpos se tocassem, que se roçassem ligeiramente, sem querer, mas querendo por inteiro. Como poderia eu saber disto? Talvez porque o queria também. Quando chegámos à Song 2, e ambos começámos a saltar histericamente, senti-me plena. Afinal, foi para isso que comprei o bilhete, para viver a experiência de ouvir e sentir a energia daquela música ao vivo. E ali estava eu, depois de cinco cervejas, aos saltos com um completo desconhecido quando o que tinha desejado era partilhar aquele momento especial com o Tomás. Tinha planeado ir embora assim que o concerto terminasse, mas ele despertou algo em mim. Uma vontade de ficar, de me divertir. Acima de tudo, uma vontade de viver. Teria esgotado as minhas possibilidades de existir com o Tomás? Não sabia, mas este desconhecido pedia-me que ficasse e assistisse ao próximo concerto com ele - e assim fiz.
Passei uma noite deliciosa com este estranho. Quando circulámos por entre a multidão as nossas mãos procuraram-se e, no encontro, os dedos passaram suavemente pelas palmas antes de se entrelaçarem. Estremeci. Desejei-o. Ele olhava para trás enquanto me encaminhava pela multidão e eu sentia-nos como um. Queria beijá-lo, trancar-me nele, usá-lo como uma droga misturada com a cerveja que já bebera. Entrar num transe. Deixar de pensar, sentir, apenas viver. Às tantas, disse-lhe que precisava de ir à casa de banho, mas que voltava. "Voltas?", temia nunca mais tornar a ver-me. "Volto". Beijámo-nos, e quando finalmente nos beijámos, e os nossos lábios se tocaram suavemente soube que cometia o erro certo. O Tomás escolhera não estar, como escolhera fechar-nos a porta a um futuro repleto de possibilidades. Por isso, entreguei-me ao desconhecido. Entreguei-me às possibilidades infinitas da vida, com apenas uma questão em mente: como pode um homem enredar uma mulher sabendo que terá menos do que o mundo inteiro para lhe oferecer?
Na altura de ir embora tinha plena consciência de que não queria voltar a vê-lo. Por isso, entrei no Uber e expliquei que tinha uma situação por resolver. Pedi desculpa, mas estava convicta. "E só me dizes agora?". Pareceu desiludido, mas assumi que lamentava sobretudo o dinheiro gasto em cerveja comigo, ao preço a que está a inflação não o julguei. Na verdade, lamentava a possibilidade de nunca mais voltar a ver-me. Sei-o porque pousou a mão sobre o meu ombro durante toda a viagem e apertou-o, acariciou-o várias vezes. Esperava que mudasse de ideias, que seguisse com ele. Mas quando chegou o momento pedi ao motorista para parar e sai. Olhei-o no banco traseiro ao lado dos amigos, suspirava. Nunca mais se esqueceria de mim, a estranha paixão simples que viveu durante um concerto de Blur marcá-lo-ia para sempre? Imaginei-o a explicar a situação aos amigos, a questionar se existi de facto ou se terei sido somente um fantasma. Nessa noite, Damon Albarn recordou-nos de que era 31 de agosto, o verão estava a acabar. Era o terminar de uma temporada. Enquanto caminhava para casa, sozinha atravessando a escuridão, não consegui parar de pensar que algo sempre tem de terminar para que outra coisa qualquer possa começar. A paixão está por todo o lado, mas por onde anda o amor, afinal?

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