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Dating em Lisboa. “Não se ama alguém que não tem o mesmo fetiche”

Foto: IMDB/ Wolf of Wall Street
12 de dezembro de 2023 às 07:00 Maria Pestana

Faço tudo errado. Deverá ser por isso que tenho sempre a vida, a amorosa e a geral, do avesso. Tendo a começar pelo fim, mas é que sinto tantas borboletas no estômago como no pipi e sempre ouvi dizer que não existe lógica para o amor. "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Porém, as relações têm tanto lógica como razão de ser. E ando eu a folhear revistas do fim para o princípio. A saltar páginas, a ler só o que me interessa e só depois prestar atenção às miudezas. No amor sou igual. Primeiro entrego-me – geralmente de pernas abertas (ou fechadas, depende da posição) -, e só depois me dou a conhecer e quando dou sou demasiado. Já não importa quem sou, pois nesse ponto quem sou já está escrito. Sou a boa de cama, a boa de conviver, a boa de estar, mas não a boa de amar. Não importam as miudezas, não importa se gosto de beber Martini com duas pedras de gelo e uma raspa de limão, se tenho a capacidade de chorar e rir ao mesmo tempo, se apanho o cabelo num só nó sem elástico e deixo as madeixas caídas sobre os olhos ou se ando sempre de livro debaixo do braço.

Mas foi por causa dos livros e das miudezas, dessas coisas pequenas que compõem as pessoas num todo, que conheci o Fernando, empregado numa dessas livrarias de renome onde passo a vida à procura de promoções e a namorar a próxima obra que irei ler. Ao início, o Fernando era só mais um colaborador, de óculos tartaruga, ar pacato. Simpático, mas tímido. Eu dava uma volta à loja, passava os dedos pelos livros que esperavam por mim nas prateleiras, lia os resumos dos novos lançamentos e uma a duas vezes por mês lá pegava nuns quantos e me dirigia contente à caixa. Era assim que passava muitas das minhas horas de almoço, perdida entre os livros, entre palavras e as vidas dos outros. O Fernando chamou-me à atenção devido à regularidade e às sugestões que me começou a fazer. Notei que prestava atenção aos livros que folheava e às compras que fazia e, certo dia, perguntou-me se já tinha lido Aline Bei. "Se gostaste deste vais gostar de Pequena Coreografia do Adeus". E estava certo, gostei mesmo - embora não goste de pessoas desconhecidas que se atrevem a tramar-me por tu.

Passaram-se meses, a familiaridade foi aumentando, e o atrevimento de se dirigir a mim como quem comigo convive intimamente desvaneceu para se tornar amizade. O Fernando tornou-se o meu amigo dos livros. Sempre com boas dicas e dois dedos de conversa. Dei por mim a dirigir-me à loja automaticamente, mas o automatismo agora dirigia-se tanto aos livros como à expectativa de encontrar o Fernando. "Porque o Fernando diz que leu e era bom!", "Porque o Fernando recomendou", "Porque o Fernando disse que devia ler". Comecei a fazer tantas referências inusitadas ao Fernando quanto à minha psicóloga – nas miudezas também sou uma daquelas pessoas que diz "porque a minha psicóloga acha que…". E passados tantos porquês lá chegámos ao como: numa quinta-feira banal o Fernando perguntou-me se, no sábado, gostaria de ir com ele a um alfarrabista que conhecia nos Restauradores. Aceitei, embora nas miudezas achasse que tinha aceitado um date com um mero empregado de livraria. É que, nas miudezas, também consigo ser fútil.

No sábado, como combinado, estava à porta do alfarrabista. Cheguei mais cedo, mas fui dar uma volta para fazer tempo e o deixar chegar antes, não queria tirar-lhe o prazer da pontualidade. Fiz-me de atrasada depois, porque, nas miudezas, consigo ser delicada. Entrámos na loja, dei uma volta, folheei uns livros. Ele mostrou-me uma secção e passado um pouco a minha alergia aos ácaros deu de si. Comecei a ficar com comichão no nariz, na garganta, nos olhos e a falta de ar instalou-se. Acabámos na rua, comigo sentada na soleira de uma porta pintada de verde a apanhar ar. Quando me recompus, rimos da peripécia. "Já diz o ditado: mulher doente, mulher para sempre", brincou o Fernando. Depois, fomos até um quiosque e bebemos uns copos. O Fernando começou a revelar como chamei a sua atenção desde o primeiro dia que me viu. "Calçavas umas sandálias só de enfiar, em ganga, com um saltinho pequeno e tinhas as unhas pintadas de um laranja-escuro que se fundia com a tua pele bronzeada". "Era terracota", respondi, sem sequer pensar por que raio ele sabia qual a cor do verniz que uso nas unhas dos pés. No meu cérebro um red alert que decidi ignorar apitou. Jantámos numa tasca lá perto, bebemos mais um pouco. Nas miudezas, eu sabia o que se seguia e pensava que, desta vez, nem começava assim tão pelo fim. Talvez pelo meio. Afinal, conhecia o Fernando há meses.

Fomos para minha casa. Eu usava um vestido preto com umas botas castanhas de cano alto. Deitei-me na cama e estiquei a perna para que o Fernando me pudesse descalçar. Ele fê-lo e a seguir tirou-me os collants devagar, como nos filmes. Beijou-me a coxa, depois a canela da perna e, por fim, o pé. E demorou-se no pé. Olhou-o. Cheirou-o. Beijou-o, uma e outra vez. "Tenho de confessar uma coisa, sou louco pelos teus pés" e eis senão quando me olha fixamente e, olhos nos olhos, começa por colocar o meu dedo grande do pé na boca. Eu sabia o que se seguia, não iria conseguir controlar-me. Um arrepio subiu-me a espinha, um nojo alastrou-se por todo o meu corpo. Uma sensação de esgar apoderou-se de mim. Puxei a perna o mais depressa que consegui para junto do meu corpo e fitei-o em pânico.

Não houve espanto no rosto do Fernando. Desilusão, talvez. Sentou-se ao meu lado na cama, suspirou. "Desculpa, sou daqueles tipos estranhos que têm um fetiche por pés. Vá-se lá entender". No meu âmago, desejei ser capaz. Afinal, qual era o problema? Nas miudezas, o Fernando gostava de lamber pés. No todo, era um homem apaixonado por literatura com quem eu adorava conversar. Virei-me para si, voltei a esticar a perna convicta de que poderíamos contornar a situação. Mas assim que senti os lábios húmidos do Fernando aproximarem-se dos meus dedos gritei: "Não consigo!". Não se ama alguém que não ouve a mesma canção – no nosso caso, alguém que não lê o mesmo livro -, da mesma forma que não se ama alguém que não tem o mesmo fetiche, concluí. As miudezas são mais do que miudezas. São o todo. E, no meu todo, não há espaço para a podolatria. Vi-me obrigada a mudar de livraria e agora passo as horas de almoço a fazer crochet. Nem quero imaginar que fetiche isso poderá suscitar…

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