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Gisela João: “Pensei que podia morrer. O que é que eu deixava, se isso acontecesse?"

A fadista celebra dez anos de carreira com duas festas muito especiais. A primeira é já amanhã, sábado, no recém-inaugurado 8Marvila, em Lisboa, e dia 27 no Museu do Carro Eléctrico, no Porto. Um percurso passado em revista numa entrevista, como sempre, sem papas na língua, mas com muito coração.

Foto: Estelle Valente
19 de janeiro de 2024 às 07:00 Miguel Judas

Já cantava Paulo de Carvalho que "dez anos é muito tempo, muitos dias, muitos a cantar" e no caso de Gisela João parece não uma, mas muitas vidas. Desde que chegou a Lisboa, para cantar "por uns tempos" na casa de Fados Senhor Vinho, a convite de Maria da Fé, até hoje, "a miúda que apareceu a cantar fado de sapatilhas", como a própria se apresenta, fez-se mulher e tornou-se numa das grandes damas da música portuguesa. E se o seu disco de estreia homónimo trouxe, há dez anos, novos públicos para o fado, agora é Gisela João que através dele do fado descobre novos caminhos para este género, como se provou no tema Canção do Coração, incluído no último álbum Aurora, que marca a estreia da fadista também como compositora. Um trajeto agora celebrado em duas festas muito especiais, em Lisboa e no Porto, que Gisela João quer encher com as pessoas que a acompanharam neste percurso, dos artistas que com ela tocaram, a quem a vestiu ou fotografou, até, claro, aos fãs que sempre lhe encheram os espetáculos. E no final do concerto, promete, vai dançar com todos ao som de Xinobi, o dj convidado para prolongar a celebração noite dentro.

Foto: Estelle Valente

Quando hoje olha para trás, para aquele primeiro momento em que começou a cantar, ainda em Barcelos, o que vê?

Parece a história da Cinderela, juro que parece mesmo. Quando olho para trás o que vejo é um conto de fadas, porque o que se esperava de mim era muito pouco. Venho de uma família muito grande, de classe baixa, que vivia com dificuldades, de uma cidade bastante longe dos grandes centros. Caramba, há vinte anos Lisboa era um sítio muito distante, ainda hoje me acontece quando vou a Barcelos, as pessoas falarem de Lisboa como um lugar quase mítico, como se fosse outro mundo. Por isso digo que a minha vida é um conto de fadas, com muitas vitórias pelo caminho.

Disse que talvez esperassem pouco de si, mas o que é que a Gisela esperava de si própria?

Em relação à música não posso dizer que tivesse grandes expetativas, porque estaria a mentir. Quando me mudei para Lisboa em 2010 nem sequer deixei a minha casa no Porto, onde morava na altura. Vim a convite da Maria da Fé, para cantar no Senhor Vinho, mas sempre achei que um dia ia voltar. Só deixei a casa no Porto quando percebi que ia tendo sempre trabalho, mas mesmo quando gravo o primeiro disco, em 2013, pensava que o ia vender nas casas de fado e pouco mais, como acontece à maioria dos fadistas. O que aconteceu a seguir - as portas que esse disco abriu - foi algo de impensável. É por isso que também quero tanto homenagear esse disco neste espetáculo dos dez anos, porque foi algo que mudou a minha vida a todos os níveis. Caramba, teve mesmo um impacto muito grande, tanto na minha vida como na da minha família. Agora se me pergunta o que esperava de mim enquanto pessoa, isso sempre esperei muito. Às vezes até sou demasiado severa comigo, mas sou uma pessoa que gosta de sonhar. Nunca tive muitos brinquedos, mas sempre tive os meus sonhos, onde podia ser tudo aquilo que eu quisesse. E sinto que represento isso para muitas crianças e jovens que vêm de onde eu venho, não geograficamente, mas desse lugar onde a sociedade quase lhes diz que estão proibidos de sonhar. Sinto que ao longo dos anos tenho sido uma representante dessas pessoas e que lhes tenho provado que é possível sonhar. E isso é talvez o que mais me inspira a continuar em frente neste caminho.

Foto: Estelle Valente

E quais são os seus sonhos, hoje?

Sonho em ter tempo para os meus. Se calhar tem a ver com a idade, porque há uma altura da vida que uma pessoa está sempre com o pé no acelerador, sempre a abrir, e, de repente, apercebes-te que tens amigos já com cabelos brancos e com filhos que nem conheces, que a tua sobrinha tem quatro anos e estiveste tão pouco tempo com ela, que a tua própria vida vai ficando muito vazia porque passas o tempo fora, a viver para os outros. Portanto é com isso com eu sonho, hoje - com ter tempo.

Foram então dez anos muito acelerados…

Mesmo muito. Em 2017 tive um problema de saúde muito grave, fui para o hospital e tive de ser operada de urgência. Ia mesmo indo desta para melhor e tornou-se muito claro para mim que desde a saída do meu primeiro disco até esse momento era a vida que me estava a viver a mim e não o contrário. Isto pode parecer meio tonto, mas não é. E só o percebi porque pensei que podia morrer. O que é que eu deixava, se isso acontecesse? E a conclusão a que cheguei é que não deixava muita coisa, porque só trabalhava, trabalhava, trabalhava. Ok, ficava a música, mas não é só isso que quero deixar no mundo. Não é mesmo. E é também por isso que esta festa dos dez anos é tão importante para mim. Aliás, mesmo que não fizesse dez anos ia à mesma fazer uma festa. Depois da pandemia começámos todos a dar concertos como se nada tivesse acontecido, esquecendo que o corpo e a cabeça estiveram parados durante dois anos. E 2022 foi um ano mesmo muito difícil para mim, tão difícil que cheguei mesmo a equacionar deixar a música de vez.

Foto: Estelle Valente

A sério?

Sim, hoje foi a primeira vez que falei disto, porque não gosto muito de falar da minha vida pessoal, mas acho que faz sentido. E esta festa surge dessa necessidade de estar com as pessoas de quem gosto. Ando para aqui a correr de um lado para o outro para quê? Eu quero ter tempo para as pessoas que me ajudaram ao longo destes dez anos, não quero só um beijinho, uma foto ou um autógrafo no final do espetáculo. Quero pelo menos uma vez poder cantar e a seguir estar com as pessoas, dançar com elas, conversar cara a cara. Preciso mesmo dessa celebração devido a essa difícil relação com o tempo de que falei há pouco. E como também sou muito vaidosa (risos), quero ter uns vestidos bonitos para receber bem as pessoas. Peço desculpa, levei a conversa para outro lado, mas de repente lembrei-me do vestido lindíssimo que vou usar na festa (risos)!

Já está preparada, a indumentária?

Está sempre preparada! Ontem à noite estava a pensar que já não ia ter tempo de ir para a máquina de costura, porque tinha muitos compromissos esta semana e queria ser eu a fazer o vestido, mas falei entretanto com uma amiga minha que tem uma marca muito gira, a Buzina. E ela disse-me que me arranjava um vestido, que é lindo.

Foto: Estelle Valente

Costuma confecionar os fatos com que se apresenta em palco?

Muitos deles, sim. Quando comecei usava peças da Alexandra Moura, que volta e meia ainda uso. Eu gosto muito de moda, sempre quis ser designer de moda, era esse o meu plano. Nunca cheguei a tirar o curso, mas sou autodidata, aprendi com a minha mãe. Nunca viajo para lado nenhum sem levar um pedaço de tecido, agulhas, uma tesoura e linhas. Gosto muito de brincar com as roupas, sempre gostei. Cresci rodeada de papel de molde, que a minha mãe trazia da fábrica onde trabalhava. Fazia desfiles de moda com os trapos que a minha mãe trazia, fazia roupa para as bonecas e também para nós. Lembro-me da minha mãe ficar desesperada comigo, porque cortava tudo, até as calças do meu pai e os vestidos dela. Sempre considerei a roupa muito importante, pela forma como traduz o nosso estado de espírito e até quem somos. E para mim, que tenho um trabalho de exposição pública, a roupa é muito importante para dar mais sentido à história que quero contar. E depois há outra coisa, que é o respeito pelo público. Para mim, e isto é uma opinião muito pessoal, se alguém gasta o seu tempo e dinheiro para me ir ver, eu tenho de me vestir e arranjar para essa pessoa. Eu gosto mesmo de me vestir para ir para o palco. Sempre ouvi dizer que os minhotos são vaidosos e são, é verdade.

Como vão ser estes espetáculos dos dez anos?

Vão ser muito especiais, porque sou eu que convido as pessoas a virem ao mundo da Gisela João. Vai haver uma espécie de exposição, na qual as pessoas vão caminhar por entre estes dez anos. Fotografias, vídeos, elementos de cenografia, vestidos e muitas outras coisas, que vão estar espalhadas pelo espaço, para fazer as pessoas sentirem-se mesmo em minha casa. O Xinobi vai encerrar a festa e eu quero ir dançar para o meio das pessoas. Como se diz na minha terra, quero mesmo que seja uma festa rija.

Foto: Estelle Valente

Quais foram os pontos mais altos ou os momentos mais memoráveis destes dez anos?

Ui, estou bem, lixada! (pausa). Já sei, há um momento que nunca vou esquecer, de tão especial que foi, quando na Festa do Avante cantei Os Vampiros, do Zeca Afonso, com as pessoas todas a cantarem ao mesmo tempo que eu. Também nunca mais me vou esquecer da primeira vez que cantei no CCB, na Casa da Música, nos Coliseus; quando entrei numa loja de discos muito conhecida e ver lá a minha cara num disco; ou daquela vez na fila do supermercado, quando comecei a cantarolar e uma senhora me disse que gostava muito da minha voz. Foi logo depois do primeiro disco e acabei a cantar para aquela gente toda.

Esse primeiro disco acabou por ser mesmo um escancarar de portas, certo?

Qual quê? Foi é um verdadeiro pontapé na porta, foi assim que apareci. Mas eu é que levei esse pontapé na porta. Era o meu primeiro disco e criou logo muita expetativa sobre mim. O fator surpresa acontece uma vez na vida e é muito importante, mas também muito pesado. Eu já tinha 30 anos quando saiu o meu primeiro disco, é muito tarde. Eu pensava que ia continuar a minha vida nas casas de fado e de repente tudo mudou.

Foto: Estelle Valente

Foi um disco que trouxe um novo público para o fado mais tradicional, concorda?

Tenho a certeza disso e uma das coisas das quais mais me orgulho. Era algo muito claro nos meus espetáculos. Lembro-me de estar em palco e ver senhoras velhotas com o cabelo arranjado ao lado de miúdas com tatuagens e piercings. Essa é talvez a grande vitória da minha vida artística. Essa subversão é algo que me motiva desde miúda, provar que esta música é para toda a gente e perceber que consegui esse objetivo ao misturar essas pessoas todas foi uma grande vitória. O fado é muito democrático e nada elitista, porque é um estilo que vem da rua, feito de histórias reais do povo.

Neste último disco, Aurora, inclui já alguns elementos que se afastam do fado tradicional que sempre a caracterizou.

Não, porque, para mim, esses elementos também fazem parte do fado. Um dos desafios mais complexos que tenho na minha vida é fazer as pessoas entenderem que cresci a ouvir fado, mas também cresci a ouvir música eletrónica. Para mim é possível haver fado sem guitarra portuguesa. O fado está muito para além da imagética que nos é apresentada. A música tem de estar em primeiro lugar, sempre, mas o fado tem uma densidade que não se explica, não há uma fórmula. Ou é ou não é. E não é só por se ter uma guitarra portuguesa que se torna fado. Pelo menos para mim, não é.

Foi também o disco em que pela primeira vez se aventurou a compor, que novos caminhos se poderão abrir para a Gisela João a partir de agora?

Estou a descobrir tanta coisa nova, é tão divertido de repente perceber que se abrem todos esses novos caminhos.

Foto: Estelle Valente

É, portanto, algo para continuar?

Claro que sim, até porque se quisesse continuar no mesmo lugar seguro, depois do meu primeiro disco, era muito fácil. A fórmula era aquela e funcionava, bastava continuar a pegar naqueles fados tradicionais e até nem desafino muito a cantar (risos). Agora a sério, ter descoberto que conseguia compor e escrever foi algo delicioso. Julgo que isso acontecerá a todas as pessoas, seja a área que for, quando se descobre que conseguimos fazer algo novo, que nunca tínhamos tentado antes. É incrível, porque nos apaixonamos outra vez por aquilo que fazemos. Foi mesmo isso que me aconteceu, apaixonei-me loucamente, de novo, pela música.

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