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"Não tinha privacidade numa casa com sete quartos onde era a única mulher". Testemunho de alguém que perdeu tudo

Numas águas-furtadas no centro de Lisboa, a máquina de lavar roupa produz a banda sonora para uma conversa de vida. A vida de Alexandra Peralta. A casa é pequenina, mas grande o suficiente para os sonhos que um dia a vida, que tem sido uma luta de altos e baixos, lhe roubou.

Foto: Bruno Colaço
05 de janeiro de 2024 às 11:49 Maria João Veloso

De voz grave, ela é um exemplo de força. A prova de que a resiste, firme, está no olhar da filha. O projeto "É uma Casa – Housing First" da Associação Crescer, dá também uma grande ajuda no seu renascimento como cidadã.

Na primeira pessoa

Nasci em Lisboa e vivi em Alfama até aos 17 anos. O meu pai abandonou a minha mãe quando eu tinha 2. Consumi drogas na adolescência. Por volta dos 20 fui para Palmela viver em comunidade. Quando perdi a minha mãe fiquei sem o chão que me segurava. Para não seguir maus caminhos decidi juntar-me à Erguer – Associação de Toxicodependentes. Estive lá dois anos, até que fugi com um rapaz que também lá andava. Estive 10 anos limpa.

Passado

Fomos viver para uma aldeia nos arredores de Lisboa. Inicialmente correu tudo bem, mas depois ele teve uma recaída. Eu estava cheia de força, não tocava em nada e tentei ajudá-lo. Até tirei a carta de condução. Trabalhava de manhã à noite. De dia numa instituição de beneficência, à noite dormia em casa com uma idosa. Ganhava dois ordenados. Chegava a casa e via aquele homem "a fazer buracos" no sofá por estar tanto tempo sentado. Dizia-lhe: não tenho filhos, não vou sustentar os filhos dos outros. Larguei-o. Juntei-me com um amigo dele que tinha chegado da Suíça. A nossa relação foi maravilhosa até que perdemos um filho no fim da gestação. Sempre desejei ser mãe e fiz um descolamento da placenta ao evitar que uma velhota caísse. Fui à maternidade e disseram-me que estava tudo bem. Quando fui fazer a ecografia o coração dele já não batia. Não sei como consegui levar o carro de volta a casa. Ao perder um filho tão desejado, voltei a consumir. Fui mesmo ao fundo. Estive em tratamento, mas havia poucos autocarros entre o lugar onde eu morava e o tratamento. Uns meses depois engravidei da minha filha. Nessa altura estava a começar um processo de desintoxicação com metadona. Vim para Lisboa, tentei ir para casa do meu pai, mas ele fechou-me a porta. Dava-me guarida a mim, mas não ao meu companheiro. Eu, claro, não o quis largar. Deixei a minha filha entregue à minha sogra e regressei a Lisboa para tentar a sorte. Não consegui casa. Comprámos uma tenda e montámo-la debaixo da ponte em Santa Apolónia. Vivemos lá durante cerca de um ano. O ano mais longo da minha vida. À chuva, ao frio e ao vento. Trabalhava na Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL). Andava sempre com os pertences todos atrás: documentos, telemóvel e carregador. Pagava 1 euro por cada duche nos balneários públicos. Manter os níveis mínimos de higiene era complicado. De dia ia às casas de banho dos cafés, à noite lavava-me com garrafas de água, toalhas, rasgava panos e deitava fora. Para lavar roupa também era uma dificuldade, por isso íamos usando o que nos davam até cheirar mal. A minha filha nasceu em 2017 e isto passou-se em 2018. Em Lisboa há mais possibilidade de arranjar metadona, mas às vezes nem dinheiro tínhamos para beber um café. Foi na tenda que comecei a deixar os consumos. Estava a viver em condições desumanas. Felizmente tinha o pai da minha filha comigo. Não sei como há mulheres sozinhas a viver daquela forma, podem ser violadas durante a noite que ninguém lhes acode. Nas horas vagas andávamos quilómetros atrás de um cigarro ou de uma moeda para um café. A minha filha foi a força motriz para tudo isto. Para batalhar por uma casa e ir a tribunal dizer que já estava em condições para poder viver com ela. Quando terminou o trabalho da APCL conheci a Associação Crescer através do projeto "É um restaurante", cujo serviço é assegurado por pessoas que estão ou estiveram sem-abrigo. Fiz um estágio na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e depois fui trabalhar para o restaurante. Mas de que me valia trabalhar se não tinha onde viver? Através da Associação Crescer vi a luz ao fundo do túnel. A minha luta foi grande, porque não tinha os anos necessários como sem-abrigo para ter direito a uma casa. Falei com o Américo Nave – um dos fundadores do projeto – e perguntei-lhe: "Quando é que terei a minha filha comigo? Preciso de voltar para a rua? Não consigo trabalhar sem habitação fixa." Ele prometeu ajudar-me. Estive numa reunião com a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, e participei num congresso sobre habitação no CCB onde conheci a Fátima Lopes. Ali expliquei que não me bastava só trabalhar; que precisava de ter o meu espaço para concretizar os meus sonhos. Quando se vive na rua até se pode ganhar dinheiro, mas depois não há vontade de comprar um quadro para pendurar na parede. Quem quer comprar um vestido para ficar num canto da tenda, sujo e amarrotado? Depois do restaurante, fui estagiar para o Café Jeronymo. Estive lá até à pandemia. Vivi em vários quartos. Mas não era de quartos que precisava. Escusado será dizer que não tinha privacidade numa casa com sete quartos onde era a única mulher. Ia calçada para a banheira.

Foto: Bruno Colaçõ

Presente

Vivi num hostel em Santa Apolónia, num quarto na Graça e, finalmente, em setembro de 2021, vim para esta casa. Atualmente estou desempregada. Em março do ano passado apanhei Covid-19. Não quis ficar internada e assinei um termo de responsabilidade e continuei a trabalhar. A doença foi-se agravando. Estava com uma pneumonia bacteriana. Emagreci 10 quilos. Passei o Natal com a minha filha e fui internada quase no fim do ano. Só tive alta a 21 de janeiro. Tenho estado de baixa porque, além da pneumonia, tenho um enfisema pulmonar. O último trabalho que tive foi na Unidade de Acompanhamento e Vigilância Terapêutica da Santa Casa da Misericórdia. A Santa Casa é o amor da minha vida, adoro trabalhar ali. Estou à espera que me chamem para voltar num horário compatível com os horários da minha filha. Quero voltar a trabalhar com toxicodependentes. Apesar de não saberem os meus antecedentes, confiavam em mim e eu conseguia convencê-los a irem às consultas. Até fiz uma formação sobre saúde mental e drogas, mas já sabia aquilo de cor e salteado. Tive como colegas o psicólogo da carrinha da metadona e o médico do centro das Taipas. Eu sabia tudo sobre consumos. Fumei heroína e consumi cocaína. A minha droga de eleição era a cocaína. Só que ao consumir heroína fiquei dependente. Comecei a consumir para tirar as dores do corpo e para me acalmar da cocaína. A coca é uma droga explosiva. Um excitante. E a heroína é uma droga que depois abranda, só que ao abrandar causa danos no corpo. Não é como o haxixe, quando não há, não há problema. A cocaína dá dependência física. Tinha muitos espasmos e não conseguia dormir: ia para a cama com a ansiedade de consumir. A heroína é a droga dos pobres. Fumam-se 5 euros, tira a ressaca e a gente anda bem. Depois a cabeça começa a trabalhar para a cocaína. Mas isso são águas passadas.

Foto: Bruno Colaço

Futuro

Desde que tenho a minha filha comigo o que mais gosto de fazer é passear com ela. No domingo fomos a Belém. Visitámos o Museu dos Coches e o da Marinha, e fomos ao Mosteiro dos Jerónimos. Com 5 euros comemos as duas na McDonald’s. Recebo o subsídio de desemprego, que não chega para as minhas despesas, mas a família ajuda­-me. Não compro roupa há um ano, exceto este vestido que levei à procissão. A prioridade é a minha filha que já está na escola. A roupa do ano passado já não lhe serve e da escola estão sempre a pedir material. Os sonhos passam por voltar a trabalhar e ter casa própria em Lisboa. Não gosto da mentalidade das pessoas da zona rural. Lá, um homem de cabelo comprido é drogado, mas se aparecer na televisão já é famoso. Gostava de viajar, mas não tenho possibilidades. Gostava de ir à Grécia. Visitar Santorini, por causa das praias lindas e daquele casario todo branco. Já a minha filha gostava de ir à Disneyland Paris. Mas para mim, Paris – dizem que é a cidade do amor – é mesmo Lisboa.  

*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.

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