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A vida secreta de Balenciaga finalmente desvendada em nova série

Foi o mais secreto dos mestres da época áurea da Alta Costura parisiense. Cristóbal Balenciaga, nascido no País Basco, em 1895, vestiu princesas e estrelas de Hollywood, mas manteve sempre em segredo a sua vida privada. A partir de 19 de janeiro, vê-lo-emos evocado na primeira produção espanhola da Disney+.

Foto: Disney+
19 de janeiro de 2024 às 12:50 Maria João Martins

Encarava o trabalho com um rigor de monge copista e envolvia-se, como homem, numa discrição de esfinge como o histriónico mundo da Moda não voltou a conhecer. Cristóbal Balenciaga, nascido em Getaria (País Basco), a 21 de janeiro de 1895, tornou-se quer pela excelência das suas criações, quer por essa clausura quase monacal, um dos maiores mitos da Alta Costura de meados do século XX, invejado mas venerado por alguns dos seus pares e rivais como Coco Chanel, Christian Dior ou Hubert de Givenchy.

Foto: Disney+

Depois de dois livros recentes, publicados em Espanha (El enigma Balenciaga, de María Fernández-Miranda e Un verano en París, de José Luis Diez Garde, jornalista espanhol especializado em Moda e presidente da Associação de Amigos do Museu do Traje de Madrid) terem procurado decifrar o enigma, ou parte dele, cabe agora a uma série de televisão, com estreia marcada para 19 de janeiro, na Disney+, prosseguir na mesma senda. Verdadeira superprodução (a primeira de bandeira espanhola da Disney), rodada no País Basco, Madrid, Barcelona e Paris, Cristóbal Balenciaga tem o ator madrileno Alberto San Juan (vencedor de dois prémios Goya de interpretação) no papel titular e três realizadores, vencedores de vários Goya (os Oscars da Academia espanhola): Aitor Arregi, Jon Garaño e José Mari Goenaga. Ao longo de seis episódios, de 50 minutos cada, vemos como o pequeno Cristóbal aprende os segredos do modesto atelier de costura de sua mãe, Martina Eizaguirre, que tinha como clientes as senhoras da alta sociedade, residentes ou que iam de veraneio a San Sebastian, para se transformar no "ai jesus" de princesas e estrelas de Hollywood, nas décadas de 1940 e 1950, quando já se instalara em Paris.

Foto: Disney+

Mas para satisfazer o voyeurismo das audiências, a série da Disney+ aborda a até aqui impenetrável vida amorosa do criador. Apresentado muitas vezes como um quase eremita, quando não um misantropo, Balenciaga é dado a ver ao espetador como um homossexual discreto, mesmo reprimido pela moralidade da época e pela sua educação católica, que mantém relacionamentos com o aristocrata polaco e bon vivant, muito conhecido na Paris de meados do século, Wladzio d' Attanville (interpretado por Thomas Coumans) e com um dos seus braços direitos no atelier, Ramón Esparza (por Adam Quintero). 

Também em foco estão as figuras das suas principais clientes, algumas delas muito célebres na época, como a futura rainha Fabíola da Bélgica (interpretada por Belém Cuesta, que vimos em Casa de Papel, A Trincheira Infinita e Os Indomáveis), de nacionalidade espanhola, para quem Balenciaga desenhou o vestido de noiva, mas também Gloria Guiness, Pauline de Rothschild, Raquel Mellon, Ava Gardner ou Mona von Bismarck.

Foto: Disney+

O maestro da Alta Costura

Na Espanha das primeiras décadas do século XX, com Afonso XIII e Vitória Eugénia (bisavós do atual rei, Felipe VI) no trono, boa parte da realeza e aristocracia espanhola passava os verões em estâncias balneares do Norte, como Santander e San Sebastian. Entre elas, estava a Marquesa de Casa Torres que cedo se apercebeu do talento e gosto do muito jovem filho da costureira Martina. Em breve, tornar-se-ia não apenas uma das suas principais clientes, como uma das suas mecenas. Com 22 anos, Cristóbal Balenciaga lança-se no seu primeiro negócio em nome próprio, na verdade com parte do apelido de solteira da mãe - Eiza - em jeito de homenagem. Em pouco tempo, faria sucesso e abriria ateliers também em Madrid e Barcelona.

Mas esse mundo dourado à beira mar ia desmoronar-se na agitação social e política da década de 1930. Em 1931, a República espanhola é implantada e os Borbons, bem como parte da sua corte, rumam ao exílio. Em 1936, inicia-se a Guerra Civil, com o seu longo cortejo de brutalidade. Neste cenário de caos, Balenciaga ruma a Paris, onde o seu atelier da exclusiva Avenue Georges V se torna o epicentro da Alta Costura, conquistando em pouco tempo a clientela mais exigente e sofisticada não apenas de França, como do mundo.

Foto: Disney+

Cria um estilo muito próprio, baseado no rigor arquitetónico do corte e da confeção, mas também na sua herança espanhola, onde está bem patente a influência visual de grandes pintores como Zurbarán, El Greco ou Goya. Entre as suas mais irónicas criações estão os vestidos amplos nas ancas, inspirados nas infantas pintadas por Velásquez durante o siglo de oro espanhol (século XVII), as casacas com motivos dos trajes de luces dos toureiros e a profusão de renda preta, em que a evocação das tradicionais mantillas é uma evidência.

Sem poupar nos materiais como nas formas (sobretudo na década de 1950, quando conceberá vários vestidos e saias em forma de tulipa), fiel a si próprio e às suas convicções, não se multiplica em entrevistas, nem sequer se apresenta ao público e à imprensa em dia de desfile. Trabalha num secretismo quase monacal e sujeita os seus empregados a um código de lealdade e silêncio sobre todos os aspetos da vida na empresa. Também por isso, muitos viram no filme A Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson (2017) e na personagem do costureiro Reynolds Woodcock (brilhantemente interpretado por Daniel Day-Lewis) uma evocação da vida e modo de trabalhar de Balenciaga.

Foto: Disney+

O certo é que nesse ultra-competitivo mundo da Alta Costura parisiense, cheio de alfinetadas malsãs, o secreto basco era venerado pelo seus pares. Christian Dior não hesitou mesmo em declarar: "A Alta Costura é como uma orquestra em que o maestro é Balenciaga. Todos nós, costureiros, somos os músicos que seguimos a sua direção." Emanuel Ungaro, que com ele aprendeu os segredos da profissão, não hesitaria mesmo em considerá-lo o "fundador da Modernidade".

Desencantado com o rumo da Moda na década de 1960, sobretudo com a expansão do prêt-à-porter, Balenciaga retirou-se em 1968, quando Paris era tomada pelos ventos transgressores dos estudantes nas ruas. A 1 de julho desse ano, os jornais anunciavam o encerramento da Maison Balenciaga, apanhando de surpresa os próprios funcionários.

Foto: Disney+

De regresso a Espanha, o costureiro suspenderia apenas uma vez o seu retiro. Aconteceu em 1972, com a criação do vestido de noiva de Carmen Martinez-Bordiú, filha do ditador Francisco Franco e da mulher deste, Carmen Franco y Pollo, que fora uma das suas clientes mais assíduas. Uma proximidade que, refira-se, os democratas espanhóis nunca lhe perdoariam.

Mas este vestido de noiva, visto por toda a Espanha na TV e nas revistas, seria, afinal, o seu canto do cisne. Cristóbal Balenciaga morreria pouco depois, a 23 de março de 1972, durante umas férias em Alicante, vítima de enfarte do miocárdio. Tinha 77 anos e foi sepultado na sua cidade natal, Guetaria, onde hoje está também um formidável museu dedicado à sua obra, que funciona também como escola de Moda. Nem poderia ser de outra maneira para este homem que tinha do traje feminino uma visão absoluta e total. Nas poucas declarações públicas que fez, Balenciaga resumiu o seu legado, com a precisão que punha em tudo: "Um costureiro deve ser arquiteto da forma, pintor para a cor, músico para a harmonia e filósofo para a medida."

Foto: Disney+
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