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Crónica Saltos na Calçada

Portugal é a pátria dos sonsos, porque é um país de filhos à espera de um pai herói. É a herança profunda da ditadura

"A maioria só quer um mar flat e uma vida tranquila. Para que tudo permaneça na mesma", escreve Patrícia Barnabé
"A maioria só quer um mar flat e uma vida tranquila. Para que tudo permaneça na mesma", escreve Patrícia Barnabé Foto: "Mal Viver"/ IMDB
04 de agosto de 2025 às 13:30 Patrícia Barnabé

Há no nosso país um amor enraizado ao desgraçado, ao apagado, ao subalterno. Adoramos uma boa bola baixa porque é o que conhecemos melhor e nos faz sentir empoderados, melhores e maiores. Portugal dos pequenitos. Uma grande maioria de nós veio de famílias que se desenrascaram a vida toda, às vezes a contar os tostões, e inveja o brilho dos outros, como se ofuscasse o seu. Por isso, e aos bem sucedidos, mesmo que sejam boas pessoas e se tenham matado a estudar e a trabalhar para merecer tudo o que têm. Como ousam ser privilegiados? Nunca se é apenas merecedor, tem de se ser modesto. A humildade é sublime, é dos grandes, digo mesmo modéstia.

Da mesma forma, uma personalidade assertiva, frontal, forte e viva, vai ser sempre varrida para debaixo do tapete. O último a ser escolhido para o grupo, para os programas, os lugares e os empregos. Mesmo que aquelas qualidades sejam apenas frescura ou talento naturais, alguma resiliência e mundo. Mesmo que sejam superlativos os valores que subjazem às personalidades combativas, quem se preocupa e refila, como ousam sobressair?

Os refilões dos jantares normalmente ou são parvos os grandes humanistas deste mundo. Todos os meus favoritos, da Patti Smith à Cat Power, dos punks aos cantores de intervenção, dos filósofos aos que encabeçam movimentos sociais, aos artistas e aos ativistas - são sempre as pessoas que levantam os debates desconfortáveis. E estão quase sempre tramados, ou perdem a paciência para um mundo que herda o seu amor universal, mas não os acolhe em vida.

Viram o documentário sobre a gravação do We are the World - The greatest night in pop? O Bob Dylan parecia perdido num mar de excitação e foi o único que precisou de gravar sozinho – o grande trovador da liberdade, nos anos 60 e 70, que iniciou revoluções várias de que todos beneficiamos até hoje, o único músico que recebeu o Nobel da Literatura. Não parecia pertencer, esse grande bicho do mato, e é tão fácil perceber porquê.

É caso para dizer: não te habilites a dizer sempre o que pensas ou a contrariar a retórica vigente, por mais que tenhas razão, por mais inteligente, plausível, oportuno e apaixonado que seja o teu discurso, pois não te perdoam a audácia. Não me refiro aos comentadores de bancada das redes sociais, refiro-me a quem tem a coragem de discordar. Alguns vão admirar-te, poucos, a maior parte vai calar uma pequena embirração. O que vale é ser igual à maioria e não levantar grandes ondas. Se for sacrificial e um pouco apagado, e rir muito das piadas dos outros, mesmo as que não têm piada, melhor ainda – sucesso garantido!

Portugal detesta gente independente porque é um país que cresceu agarrado às saias da mãe e sob o mando do pai. Os chefes vão preferir os diligentes, os obedientes, os seguidistas, os concordantes, os apagados. Os operários. A maioria só quer um mar flat e uma vida tranquila. Para que tudo permaneça na mesma. Que se lixe o talento. Este só se safa se for engraçado e bem-disposto, se fizer rir. Basta ver o sucesso dos humoristas que sabem tão bem manipular a sua comunicação para que ela chegue impecável, mas faça rir no caminho. Seriedade é que não, é aborrecido. Preferimos gente apalhaçada do que gente que brilhe, preferimos vídeos tontos do que um bom livro. Ser-se directo é que não pode ser. A guerra, a injustiça e a pornografia já são correntes, o que é escandaloso é sobressair. Com sorte, no mínimo são acusados de serem snob, de ter a mania, que nunca percebi bem o que seja. How dare you?

E isso vale no amor também. Os rapazes preferem quem os aplauda ou manipule com falinhas mansas, muito mais do que quem os ombreie ou desafie, porque sentem-se necessários. As mulheres auto-suficientes e com mundo, as mais giras e desempoeiradas, portanto, são assustadoras para uma maioria.

E dizer a verdade, confrontar os outros com a verdade? É uma chatice, um desconforto. , porque o "mal-amada" já não cola há muito tempo. Essa fórmula de rebaixar ou desvalorizar para neutralizar a força das mulheres. Talvez se reconheça a coragem num rebanho, são poucos os que encorajam a verdade, mas nunca te vão defender e normalmente desmarcam-se, não vão ser levados por arrasto na maldição da frontalidade. Ou ficam em silêncio, que é, em si, uma posição. E, muitas vezes, é a mais dolorosa para quem avança. Até podem morder a mão que lhes deu de comer, só para não terem chatices - a ditadura das maiorias começa no grande silêncio.

E vais sempre sentir-te sozinho na luta, como se usa dizer, e mesmo que o teu motor seja universal. Porque essa tracção rara vai lembrar aos outros da sua própria falta e inanição. A culpa não é tua, até podes ser bem humilde, mas a existência do carácter fere a baixa auto-estima, que levará sempre a melhor, porque é de muitos. Além de que os combativos nunca parecem precisar de ajuda, porque são corajosos. Todos precisamos de ajuda, mas se fores forte ninguém acredita na tua fragilidade. Na verdade, precisas de mais ajuda do que todos os outros porque dás o peito às balas, e às vezes em campos de batalha minados para defender causas que nem são tuas. Mas ter boas intenções é ser suave, é aguentar, é contornar, esses são os verdadeiros populares. E tudo continua na mesma.

Portugal é a pátria dos sonsos, porque é um país de filhos à espera de um pai herói. É a herança profunda da ditadura. Por isso, os lugares de destaque são sempre alvos fáceis de todos os impropérios ou bajulações. O chefe é sempre o mau da fita, não o sistema. É mais fácil criticar e fulanizar do que levantarmo-nos do sofá. Os ativistas são uns arruaceiros e uns revoltados até todos lucrarmos com o seu sacrifício e aí passam a ser incensados. Mas quem atira a primeira pedra?

Basta ver que quem vinga na política são os falinhas mansas. Os beijoqueiros de feira, os que tiram selfies com a malta toda, os que parecem fofinhos, a maioria não distingue a sinceridade porque não foi ensinada a observar com profundidade. Ficamo-nos pelo que vemos, pela casca, pelas sensações. Não são os que põem o dedo na ferida para sará-la que são mais populares, mas os populistas. Se o fizeres, tens de sorrir no fim, para parecer que deixaste escapar uma verdade. E a piada talvez suavize o embate. Aí talvez se despertem frustrações, complexos, preconceitos ou traumas antigos e se ganhe uma voz. Mesmo que pelas piores razões, como o sucesso do populismo de extrema-direita que diz proteger os abandonados - onde é que já ouvimos isto?

Que se lixe o talento, o conhecimento, a dedicação aos outros, o mais importante é não chatear. Se ninguém disser nada, o conforto da maioria mantém-se. Só no desconforto inaceitável nascem as revoluções. E por alguma razão são sempre os jovens, ligeiramente selvagens e sem medo, que as fazem acontecer. Porque são movidos por uma grande paixão e sede de um futuro melhor, na tal irracionalidade da urgência que em adulto se torna imperdoável. O adulto tem de ser sereno e diplomata.

A vida é mais difícil para os que ousam falar. Sempre foi e sempre será. O mundo está para os fura-vidas, os sobreviventes e os adaptáveis, os amiguinhos, não para os impulsivos e muito menos para os sinceros. Excepção feita aos autênticos e espontâneos, esses têm sempre o benefício da dúvida ou a complacência de todos, são encantadores porque soam a desajeitados. Parecem crianças que nunca cresceram. E, lá está, normalmente são divertidos. Se calha emudecerem ou ficarem tristes, porque a vida é tramada, tornam-se chatos. Ninguém gosta de chatos, muito menos tristes. When the going gets tough the tough get going.

Num mundo em mudança, calar as vozes sem medo é travar a vida. “Sem o medo, havia a vida”, escreveu Clarice Lispector. E este é o momento para se fazerem pequenas revoluções, ou vai tudo andar para trás. Num mundo de ditadura de maiorias e de politicamente correcto, de guerra e grandes perigos ao virar da esquina, trilhar um caminho próprio é um risco, mas é a única saída. Assim como a são meia-dúzia que levam isto sempre para a frente, um dia se cansa de ser sempre quem acende a luz nos quartos escuros, quem leva a lanterna em campo aberto, e vai à frente mesmo sabendo que pode ser o primeiro a abater. Não há esperança sem audazes universalistas, sem optimistas radicais, sem malucos. Se assim fosse, ainda andávamos todos de burro.

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