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Dulce Maria Cardoso: “Escrevo sobre os que ficam nas margens, os que não se encaixam, os que são humilhados.”

'Autobiografia Não Autorizada' é um livro de crónicas, onde a grande romancista portuguesa deixa pistas sobre o que pode ser real na sua vida. Depois de ‘Eliete’ e o ‘Retorno’, de leitura obrigatória, as crónicas de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos também a perceber a época que vivemos.

Foto: Paulo Fernando Figueiredo
16 de junho de 2021 às 17:37 Tiago Manaia

Este ecrã que nos separa

Dulce entra online à hora marcada, nem um minuto a mais ou a menos. A escritora pediu para falarmos via zoom, surge de headphones na cabeça, sem maquilhagem, unhas das mãos pintadas num vermelho impecável, capaz de iluminar a parede completamente branca atrás de si. 

"Estou numa espécie de sótão muito desarrumado", diz. Dulce Maria Cardoso regressou a Cascais e às ruas que fazem parte dos seus últimos romancesEliete (2018) e Retorno (2012) têm a zona da linha, nos arredores de Lisboa, imortalizada nas páginas. Da pandemia, logo no primeiro confinamento, Dulce falou à imprensa de um silêncio que assombrava as ruas. Contava adiantar a escrita para a continuação de Eliete — a Vida Normal, o primeiro volume daquilo que promete ser uma trilogia. O livro conquistou uma legião de leitores, o nome de Dulce confundia-se, na rentrée de 2018, com o da protagonista, mulher de meia idade em crise, onde um quotidiano de desilusão a levava à agitação cerebral e hormonal do tinder dating.

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"Eu contava publicar o segundo romance mais cedo, e quando comecei a voltar à possibilidade de concentração, a minha mãe adoeceu". Foi uma mudança de vida e de logística. Dulce tornou-se cuidadora, a sua mãe sofre de demência. Ainda anda à procura de pé nesta nova realidade. "Talvez se note essa honestidade no meu trabalho, quando publico faço-o com tudo o que tenho para dar. Até agora não tive concentração, nem capacidade, e consequentemente vontade. Eu mais que ninguém gostaria de voltar. Mas tudo se transforma em matéria criativa e tenho hoje ideia do que é ser velho, da dificuldade de envelhecer e de quanto custa. Tudo isto está aqui a formar camadas. Não sei se será usado… Mas também me renovo com estas experiências." Nos silêncios de Dulce ao longo da entrevista, do outro lado do ecrã, ouvem-se pássaros. 

A literatura é um jogo de pistas, e para lançar novos desafios aos seus leitores, Dulce Maria Cardoso reuniu crónicas numa Autobiografia Não Autorizada, originalmente escreveu-as para a revista Visão.

"O que acontece quando o escritor se torna uma personagem pública?", Dulce ri-se com a nossa pergunta, vai rir-se quase sempre ao longo da entrevista, antes de responder. "É a primeira vez que sou personagem. Normalmente quando leio ou escrevo ficção, o jogo é perceber o que é a verdade na mentira que eu invento. Aqui é o contrário, é perceber o que é a mentira na verdade que eventualmente conto. As crónicas partem de factos que vivi, ou partem de sentimentos que tive, ou angústias que tenho. Há sempre uma base real, mas depois também têm muitas coisas inventadas. Há um limite, que são os terceiros, mas também lhes troco nomes. Há construções… Não se pode ler aquilo e dizer: ‘Isto é a vida dela’. É um jogo." Olhamos para a escritora através de uma chamada virtual, é real o suficiente.

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Mergulhamos no desafio, nas linhas que percorrem a obra de Dulce, os temas questionam o estado do mundo. As respostas que nos devolve agora em entrevista são longas, a escritora leva-nos na sua verdade, na torrente de palavras parece por momentos querer dizer-nos que prefere o silêncio.

Crónicas que fixam a vida

Dulce nasceu em Trás-os-Montes, em 1964, ainda bebé foi com a família viver para Luanda. As recordações da vida em África agitam o seu universo, sobretudo o regresso a Portugal, num ambiente pós revolução, voltou na atribulada ponte aérea. De maio a novembro de 1975, foram cerca de 300 mil pessoas que chegaram ao Aeroporto da Portela com pouco mais do que a roupa que traziam no corpo. Dulce foi viver com a família num hotel, dormiam todos no mesmo quarto. Descobrindo assim a sua nova condição, ao chegar a Portugal, tornou-se "Retornada".

Neste livro, as crónicas em que se lembra da sua partida de África aparecem intercaladas com o pânico da pandemia causada pela covid-19.Terá encontrado na corrida aos supermercados atual uma parecença das lojas pilhadas no pós-revolução em África de 1975? Sentiu que já tinha vivido um pânico parecido? "Apesar de ser muito diferente, em ambos os casos, o exterior passou a ser uma ameaça. Passou a ser um sítio perigoso. Em Angola só estávamos bem em casa, e mesmo assim havia a possibilidade de uma agressão. De resto, em nada é comparável. Eu era miúda, quando tudo aconteceu, e sempre achei estranho os meus pais não se terem preparado para aquilo (risos). Depois, eu que tinha imensa informação sobre a covid-19, acabei por ser apanhada com a despensa vazia. Acho que temos um traço otimista na minha família, entre o otimista e o tonto. Na altura em que temos realmente de nos proteger, pode não funcionar tão bem. E eu, tendo a confiar nas instituições, e essas diziam, até prova de contrário, que estava tudo bem, a covid estava controlada…  E depois não." 

Foto: Paulo Fernando Figueiredo

As crónicas de Dulce sobre a pandemia narram aquilo a que já podemos chamar de memória coletiva recente. A inquietação desta nova época que começámos a viver há 15 meses. Nos textos em que conta o regresso de África (onde é evocada uma ida à caridade para ir buscar roupa) descreve-nos uma realidade pós-colonial que tem vindo a ser esquecida com o tempo. Mas é quando Dulce fala de uma relação vivida entre Las Vegas e Lisboa que é preciso suspender a leitura por instantes. São crónicas que nos atingem como balas no peito. Ficamos entre a desolação e a esperança. "O Shane existiu mesmo. Foi um grande amor que eu tive. Ele morreu e eu recebi a notícia assim, através do computador. Ele aparecerá em muitas mais crónicas, talvez porque tenha morrido e talvez por ser a primeira pessoa da qual eu fui verdadeiramente próxima que morreu…Quer dizer, morreu o meu pai, mas é diferente. Eu própria já pensei sobre isso, porque naturalmente me aparece o tema para escrever. Acho que é uma maneira de não o deixar ir embora. É uma maneira de o agarrar. De fixar tudo o que posso dele.

A salvação nas palavras – para Bruno Candé

Assassinado, vítima de ódio racial. Foi assim que morreu o ator lisboeta Bruno Candé, em julho de 2020. "Vai para a tua terra, preto", disse o antigo combatente do Ultramar de 75 anos. Depois, disparou 4 tiros à queima-roupa sobre Bruno. Dulce Maria Cardoso tinha conhecido o ator num espetáculo da encenadora e atriz Mónica Calle, com a sua companhia teatral Casa Conveniente. Numa crónica Dulce escreve: "A Arte é uma forma de poder, mas a Arte é desvalorizada". A companhia de Mónica Calle não recebeu apoio da DG Artes em 2018 e o Ministério da Cultura tutelado por Graça Fonseca, nada fez para salvar uma estrutura com quase 30 anos de existência. Que artistas são estes? Mudando vidas, são centrais e citados em crónicas como as que Dulce escreve. Porque não têm o devido reconhecimento do Estado? "Mais do que estarem na minha crónica, são artistas que estão no meu coração, é o mais importante. A Arte é desvalorizada porque as nossas relações são económicas, basta ver o orçamento do Estado. Ainda não chegámos ao 1%, isso dá-nos a importância das Artes. A Arte não tem a urgência como tem por exemplo a saúde. Se alguém não for ao teatro não morre imediatamente. É mais infeliz, mais manipulável, tem menos opções… Mas não morre. Por não haver essa urgência parece que se pode prescindir, e que não é importante." 

Foto: Tiago Manaia

Em 2017, Bruno Candé tinha sofrido um acidente de viação que o mergulhou num coma, os textos decorados ao longo da sua carreira de ator trouxeram-no à consciência. Foi com vontade de os dizer em voz alta que despertou do estado vegetal. "As palavras salvaram o Bruno?", perguntamos, e Dulce encadeia o pensamento. "As palavras salvaram o Bruno… E salvaram a Amália Rodrigues, que se queria suicidar e estava a ver o filme do Fred Astaire e disse ‘eu não vou querer perder esta beleza’. E salvam centenas, senão milhares por dia. Só que não é imediato, não conseguimos estabelecer o nexo de causalidade entre eu tinha isto, e a Arte deu-me aquilo". Chama-se Crónica de uma Morte Anunciada, o texto que Dulce escreveu para o ator português vítima de ódio racial.

Dar voz aos excluídos

As personagens dos romances de Dulce marcam. Seja Violeta em Os Meus Sentimentos, rapariga obesa e muito sexual, que num acidente de carro vê a sua vida a desfilar, seja o homem enlouquecido à beira-mar em Campo de Sangue (2002). Depois da leitura não esquecemos os nomes nem o sem fim de detalhes biográficos que os compõem. Como surgem? "Eu normalmente tenho uma imagem, há uma imagem inexplicável que me persegue. Por exemplo na Eliete é uma imagem que ainda não apareceu. É uma mulher a correr, nua e enrolada num lençol, mas que ao mesmo tempo parecia uma noiva, desfigurada, uma noiva estranha. E demorei muito tempo a perceber onde corria e porque corria. E vou atrás, percebe? É quando vou atrás, que vou descobrindo coisas." 

As traduções dos romances de Dulce multiplicam-se no estrangeiro, criando este contacto permanente, "as personagens vão existindo noutras línguas, mas independentemente disso, eu já mantinha uma relação com elas. Ficam comigo num universo paralelo… Desde miúda que tinha a ambição de criar personagens, é como se tivesse percebido que tenho a possibilidade de ter essas múltiplas pessoas na minha cabeça. E eu tenho mais na minha cabeça do que aquelas que escrevo (risos). O grande desafio é conseguir uma narrativa que as sirva."

Foto: Paulo Fernando Figueiredo

Nestes dias de junho, Os Meus Sentimentos é lançado em inglês, Violeta Among The Stars. Em Portugal, surgiu no início da primeira década de 2000, tratava um tema que ganhou nos últimos anos relevo na imprensa e na sociedade, o body positivy. O corpo gordo de Violeta intriga há décadas, mexendo nas feridas da aceitação, como uma antevisão daquilo que seria o futuro. Já Eliete espicaça o tema do fascismo. Em 2018, quando o romance saiu, a extrema-direita ainda não tinha arranjado voz em Portugal. "Os artistas têm uma espécie de intuição. Em geral, estão parados em relação ao movimento do Mundo, porque são normalmente desalinhados desse movimento… Basta portanto estar atento aos sinais." 

E Dulce acrescenta: "Talvez por ter sido vítima muito cedo da diferença de tratamento, talvez por ter visto em Angola manifestações de racismo muito grandes...Estou sempre a ver os excluídos. Eu acho que o meu trabalho todo é sobre os excluídos. É sempre sobre os que ficam nas margens, os que não se encaixam, os que são humilhados."

Tudo pela Arte 

Minutos antes de entrevistarmos Dulce, a atriz Rita Blanco falava-nos da vontade de adaptar o Retorno ao cinema, Dulce ri cúmplice, "a Rita disse-me que queria dedicar o resto da sua vida a filmar os meus livros, e isso por si só é um elogio enorme." 

A escritora repete, "os livros que li na adolescência salvaram-me", a Sétima Arte também fez parte da equação. "Era o prazer pelo qual juntava dinheiro." 

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Lembramos a Dulce a crónica em que conta uma matiné de Cinema em Angola, agitada pelo terror da guerra que se aproximava, com soldados e tiros à mistura. A sua irmã pergunta-lhe, "e se morremos por causa do Cinema?". Foi a última sessão naquele lado do mundo. "Lá está, não sei se a minha irmã disse essa frase ou se fui eu que a pensei agora. Se calhar, é uma coisa mais geral, se calhar vamos morrer por causa da Arte." A verdade vem sempre ao de cima.

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