Luísa Castel-Branco e a vida nos cruzeiros. "Era como se durante duas semanas vivêssemos sempre em festa"
A Máxima revela mais um excerto do novo livro da jornalista e apresentadora. 'O Amor é uma Invenção dos Pobres' é o segundo volume de uma trilogia sobre a sua vida pessoal, entre o crescimento profissional, a maternidade e o amor.

"Só quem viajou num destes paquetes de luxo sabe o que é esta máquina perfeitamente oleada e de alto profissionalismo. Ao fim de mais de um século a transportar pessoas de um lado para o outro do globo, tinham-se especializado na arte de criar, na totalidade, um mundo que viajava no luxo, conforto, alta-cozinha e constante atenção aos mínimos cuidados com os passageiros. Não sei se tenho mestria para vos explicar o que era este universo, mas vou tentar. Os passageiros entravam em Southampton, para todos os cruzeiros na Europa. Havia, portanto, a viagem de avião de Lisboa e, depois, o caminho para o embarque. No cais, gente a despedir-se com abraços e risos e, até o paquete se perder de vista no alto-mar, ninguém arredava é. A bordo, para cada três clientes, havia um empregado disponível vinte e quatro horas por dia. Depois das malas depositadas nas cabines, começava tudo. O meu primeiro trabalho foi fazer a tradução simultânea num enorme salão sobre como utilizar os coletes de salvação e outras regras de segurança. Ninguém me tinha dito o que iria fazer e, sinceramente, eu pensei que acompanharia os portugueses nos tours em cada porto e nada mais.


O engano foi abissal! Talvez seja mais fácil enumerar o que era o meu dia normal a bordo: às sete da manhã, reunião com o staff e oficiais para planeamento do dia. Todos os oficiais eram ingleses e o pessoal vinha dos quatro cantos do mundo. Os tais empregados sempre disponíveis eram sempre contratados em Goa, ou nas imediações, por isso eram chamados «goaneses». Era algo que vinha de uma tradição que unia Portugal e a Companhia aquando da sua fundação. Após esta reunião, eu tinha de traduzir o jornal de bordo, para seguir para impressão. Era um boletim que dava conta de tudo o que os passageiros podiam escolher para fazer nesse dia. Nos dias de viagem em alto-mar, existiam múltiplas atividades. De jogos no deque, ou nas piscinas, se o tempo estivesse bom, até aulas de pintura, jardinagem, encontros com escritores, aulas de bordado, como fazer molduras em papel e pano, aulas de teatro de fantoches, enfim, a lista era infindável. Para os viajantes do sexo masculino, havia jogos tradicionais de vários países. Depois de traduzir o jornal de bordo, estava na hora de ir assistir às atividades dos grupos portugueses. Aquele meu primeiro grupo tinha mais de cinquenta pessoas, por isso podem imaginar a correria que era. Seguia-se a hora de almoço, e esta refeição era sempre informal, em contraste com o jantar, onde não era permitido entrar nos restaurantes sem smoking.
Parte do grupo português, aqueles que vinham de empresas e que tinham ganhado o cruzeiro como contrapartida por um enorme aumento de vendas, recusaram-se de imediato a acreditar na informação que lhes dei antes da viagem e, ao serem barrados à hora de jantar, fizeram um escândalo. Contudo, no primeiro porto em que atracámos, lá foram eles comprar o indispensável smoking. Em contrapartida, todas as respetivas mulheres tinham recebido a notícia desta obrigatoriedade de indumentária com grande alegria. Era como se durante duas semanas vivêssemos sempre em festa, mas em festas glamorosas."

Dulce Maria Cardoso: “Escrevo sobre os que ficam nas margens, os que são humilhados.”
'Autobiografia Não Autorizada' é um livro de crónicas, onde a grande romancista portuguesa deixa pistas sobre o que pode ser real na sua vida. Depois de ‘Eliete’ e o ‘Retorno’, de leitura obrigatória, as crónicas de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos também a perceber a época que vivemos.