"Susan Sontag foi a última estrela literária americana"
Há 20 anos apaixonou-se pela obra literária da brasileira Clarice Lispector, a quem dedicou uma biografia exaustiva. Fascinado por mulheres extraordinárias Benjamin Moser não hesitou em aceitar o convite para biografar a sua compatriota Susan Sontag. Ganhou o Prémio Pulitzer.

Fosse a literatura uma prova desportiva e dir-se-ia que o norte-americano Benjamin Moser tem o fôlego e a determinação dos corredores de fundo. Aos 45 anos, este texano, licenciado em História pela Universidade de Brown, traz no currículo uma vasta bibliografia, em que se destacam duas biografias monumentais: uma sobre a escritora brasileira Clarice Lispector (Porquê este Mundo, edição portuguesa da Relógio de Água) e a outra sobre a sua compatriota, Susan Sontag (edição Objectiva), que lhe valeu o Prémio Pulitzer. Num Português impecável (estudou-o na Universidade e aperfeiçoou-o nos 20 anos que já leva a estudar e a traduzir Clarice), conta como tem sido "viver" o dia-a-dia com duas mulheres maiores do que as circunstâncias, nem sempre confortáveis, das suas existências.


Como é a vida e a escrita depois de ter dedicado longos anos às biografias de duas mulheres tão marcantes como estas?
Ainda me sentia casado com a Clarice (e, em certa medida, ainda sinto porque continuo a trabalhar na tradução da sua obra para Inglês) e já surgia na minha vida outra poderosa, como é a Susan. É como se estivesse casado com estas duas mulheres porque são relações diárias, com um certo grau de intimidade: leio os seus escritos pessoais, cartas, falo com amigos e conhecidos. Penso nelas todos os dias, o que as torna ausentes muito presentes.
Ambas são personalidades muito densas, com muitas camadas, umas públicas, outras privadas...

Senti-me sempre a revelar um mistério porque há uma figura pública que eu vou tentar desvendar, chegando ao âmago de uma personalidade. Susan Sontag (1933-2004) era a ultima estrela literária norte-americana e fui à procura da pessoa privada porque é a partir dela que se pode fazer uma leitura mais completa da sua obra.

Ao ler os escritos privados da autora, que estavam inéditos, o que descobriu? Como escreve no livro, Susan era uma diva - pensa que ela queria construir uma certa imagem para a posterioridade?

Ontem fui aos fados aqui em Lisboa e ouvi alguém cantar um verso que dizia mais ou menos isto: "Como se nasce poeta também se nasce fadista". Susan Sontag sabia desde muito menina que iria ser famosa. Nos diários dela é assombroso ver como, aos 12 anos, já fala a um biógrafo póstumo que ela sabe que vai existir. As pessoas extraordinárias sabem que nascem com um certo destino. Susan sabia-o. Com a mesma precocidade compreende que é lésbica mas não o quer ser. Já na Universidade, os professores impressionavam-se muito com ela. Para mim, era um mistério como ela ficou famosa tão cedo a fazer ensaios muito conceptuais, que obviamente não eram grandes sucessos de público. Ainda muito nova, tornou-se amiga de Jackie Kennedy, de Leonard Bernstein e de outras grandes figuras da sociedade nova-iorquina, porquê? Porque ela sabia ser uma "estrela" e as "estrelas" atraem - é uma lei da Física. Ninguém pode definir o carisma - não tem a ver com beleza, com inteligência, com dinheiro, mas todos sabemos reconhecê-lo quando o vemos. Susan Sontag tinha-o de sobra.
Nas duas biografias que escreveu dedica muita atenção às infâncias das autoras. É a chave para compreender o que vem a seguir?
As infâncias definem muita coisa. No caso da Susan, a mãe era uma mulher muito infeliz, a quem o marido morreu muito cedo e que tinha uma relação difícil com a maternidade e com as crianças, o que a levava a refugiar-se na bebida e na aparência. Tanto a Susan, como a mãe e a avó, sentiam-se atraídas por Hollywood e pelo star system. Foram para a Califórnia por causa disso. Tinham um enorme fascínio pelas grandes divas como Bette Davis, Greta Garbo ou Joan Crawford.


Este livro foi uma encomenda que surgiu após a publicação da biografia que dedicou a Clarice Lispector. Enquanto leitor como era a sua relação com a obra de Sontag?
Todo o americano formado em Letras ou em Artes (e mesmo noutros países) leu algum ensaio dela. Mas só quando li toda a obra, do princípio até ao fim, é que compreendi toda a majestade - é um conjunto que fica maior quanto mais mergulhamos nele. Eu gostaria que esta biografia fosse uma porta para se compreender essa beleza que escapa a muitos porque é frequente que as pessoas a citem apenas para se mostrarem muito eruditas. Ela, aliás, sabia-o e mostrava-se irónica a esse respeito. Um dia, alguém lhe perguntou o que é que o público mais reconhecia nela, ao que ela respondeu: A madeixa branca no cabelo preto. Ela sabia que estava transformada numa marca.

Ela gostava disso?
Ela julgava inevitável. Mas não deixa de ser uma redução de uma obra e de uma personalidade a algo que é menos relevante.


Esta biografia aborda a vida privada da autora, mostrando mesmo que ela era mais Atena do que Afrodite, com muitas zonas de sombra?
A Susan era sobretudo uma pessoa infeliz.
E controladora?

Tentava ser, o que não quer dizer que o conseguisse sempre. Como fui convidado por David, o filho de Susan, para fazer esta biografia, vi-me envolvido numa guerra uma vez que ele se tinha desentendido com a companheira da mãe, a fotógrafa Anne Leibovitz, num processo de grande violência psicológica. Os amigos dele não falavam com os amigos dela. Como eu tinha sido convidado por ele, as pessoas ligadas â Anne não queriam falar comigo. Mas eu não podia trabalhar assim. Na verdade, a percepção que eu tinha da relação entre elas tinha a ver com histórias que me foram contadas sobre o modo como a Susan maltratava a Anne em público. Mas eu não entendia como é que ela se deixava abusar dessa forma, uma mulher tão poderosa e bem sucedida na sua carreira. Finalmente, ao fim de 5 anos de insistência consegui falar com ela. E percebi que ela não se sentia abusada, antes relativizava esses comportamentos da Anne. Na verdade, a relação perdurou porque havia muito amor e solidariedade entre elas que nem sempre era perceptível para quem estava de fora.
No caso da Clarice Lispector, procurou que a biografia fizesse justiça a uma enorme escritora muito desconhecida do grande público, mesmo no Brasil?
Ainda tento fazer esta justiça. Ao longo do século XX, só três escritores brasileiros viveram realmente dos livros: Jorge Amado, Erico Veríssimo e Fernando Sabino. E nenhuma mulher, claro. A Clarice era conhecida de muito pouca gente. Esta biografia inverteu essa situação, estou consciente disso.

O que levou um estudante norte-americano ao contacto com a obra dela?
Eu tinha estudado num colégio em França e, ao regressar aos Estados Unidos, tinha por ambição estudar uma língua asiática, no caso Mandarim. Mas fiquei apavorado com as dificuldades e optei pelo Português, apesar de nessa época, não ter qualquer relação com o Brasil ou com Portugal. Quando eu descobri A Hora da Estrela, o último romance de Clarice Lispector, a minha vida mudou para sempre. Fiquei totalmente apaixonado. Nós estamos aqui a falar por causa disso, eu estou em Lisboa por causa disso, talvez estivesse no Cazaquistão ou noutro lugar qualquer.
Depois da biografia tem estado a trabalhar na tradução da obra integral para Inglês. Qual é o ponto da situação?

Já fizemos treze volumes. Este ano, temos os livros infantis e as crónicas. No próximo ano, está prevista a Maçã no Escuro e os últimos romances. Há muita coisa dispersa. Tenho muito orgulho em ter feito isto ao longo de 20 anos de trabalho.
A tragédia da infância de Clarice na Ucrânia, onde nasceu e de onde teve que fugir para o Brasil, com a família, voltou a ser tragicamente atual...
Clarice nunca recuperou totalmente dessa vivência, sobretudo após ter testemunhado a violação da mãe. Mais de 100 anos depois, esses estupros em massa continuam a ser uma arma de guerra e as pessoas tomam as mesmas ruas, os mesmos atalhos para sair da Ucrânia. Esta experiência com a Clarice deu-me um grande amor àquele país, ainda muito desconhecido das pessoas, embora seja o maior da Europa.

A Susan Sontag também escreveu sobre cenários de guerra, nomeadamente na Bósnia...
A Susan tinha uma cidadania muito ativa, ela estava disposta a morrer por isso se fosse preciso. Mas quando ela esteve em Sarajevo, muita gente na Europa e nos Estados Unidos não a levou a sério. Achavam que era movida por carreirismo, mas não era o caso.
Começou a nossa conversa a dizer que esperava que elas se sentissem reconhecidas pelo seu trabalho, lá onde quer que estejam. Acredita nesse conhecimento por assim dizer post mortem ou é uma figura de estilo?

Com Clarice, eu senti muito isso, até porque a cultura brasileira tem uma relação forte com o além. Mas também acerca da Susan Sontag, um amigo budista disse-me, quando eu estava a escrever, que eu tinha de ajudá-la a chegar à próxima etapa do seu destino. Independentemente disso, eu tento que, nas minhas biografias, as pessoas vivam e que não sejam apenas nomes e listas de trabalhos publicados.

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