Tati Bernardi: "A mulher é vista pela sociedade como um objeto parideiro"
Um livro sobre a experiência da maternidade, do espectro de mãe e filha, "Você nunca mais vai ficar sozinha" leva-nos do riso ao choro em segundos.

A escrita de Tati Bernardi é tão inesperada como irrisória, tão cúmplice como viciante. Vejamos: sabe aquela fotografia "polémica" que não publica, porque a sua mãe está no Instagram? Ou a piada que não diz porque há um amigo no grupo que não tolera humor negro? A verdade que não conta porque é demasiado dolorosa ou demasiado absurda? Tati Bernardi é a pessoa na sala que publica a fotografia, diz a piada, afirma a coisa que é demasiado dolorosa ou demasiado absurda, e ainda vai mais longe. Só que neste caso escreve, bem e ironicamente, incluindo-se na muito rara esfera de escritores que o fazem de forma tão destemida.
Nascida em São Paulo, Bernardi tornou-se famosa com o hilariante e desarmante Depois a louca sou eu onde, entre outras coisas, expõe a nu os seus medos, vícios, situações da vida que todos vivemos mas, lá está, nunca contamos. A escritora paulista conta tudo, e agora fala-nos num registo mais uma vez autobiográfico mas desta vez sobre a experiência da maternidade. Dividido em duas perspetivas, a de mãe mas também a de filha ( será mesmo possível separar ambas?), em Você nunca mais vai ficar sozinha conta sem filtros como foram os nove meses em que gerou uma criança, à medida que evoca memórias da sua infância e adolescência, sobretudo no relacionamento com a sua mãe. A experiência da maternidade é evidenciada do princípio ao fim deste livro. Como filha, e como mãe. Qual das duas teve mais força para começar a escrever este livro? Era impossível escrevê-lo dissociando uma da outra?

A ideia original do livro era contar um relacionamento intenso e complicado entre uma mulher adulta e sua mãe. Mas no meio do processo eu engravidei e resolvi escrever sobre esse "limbo" materno. De quando você ainda não sabe ao certo como é ser mãe (porque o bebé ainda não nasceu), mas já sabe que nunca mais será somente filha.
Em Depois a louca sou eu falou abertamente dos seus medos, tal como aqui, mas noutras dimensões. Ao ser mãe, partindo da sua experiência pessoal, perderam-se uns e ganharam-se outros? O que mudou nesse campo?
As crises de pânico são crises bastante egocêntricas. Não no sentido egoico da palavra, mas no sentido solitário e pessoal. É uma necessidade de se voltar pra dentro e entender as angústias. Quando se tem um filho, esse corpo para o qual precisamos voltar o tempo todo é justamente o da criança. As crises diminuíram demais e meus medos hoje em dia são quase todos relacionados ao bem-estar da filha. Mas obviamente ainda tenho minhas angústias bem íntimas e intransferíveis.


Escreve de forma carismática, sem filtros, sobre aquilo que se perde e ganha irremediavelmente com gestação. É preciso que as mulheres sejam mais honesta sobre o lado mais “negro” da gravidez? Porque é que ainda perpetua a ideia de que é tudo maravilhoso?
Eu sofri demais, durante a gravidez e no puerpério, com a cobrança de que eu deveria estar sempre muito grata e insuportavelmente feliz. A minha gravidez foi cheia de enjoos, dores, azias, medos, dores de barriga, hormônios enlouquecidos, tristezas. E até hoje, minha filha já está com quase 4 anos, tem dias que tudo que eu mais quero é sumir. É preciso falar muito sobre isso. A mulher é vista pela sociedade como um objeto parideiro que precisa ser muito funcional e solar para dar continuidade a máquina do capitalismo, ou seja: expelir bons soldadinhos. É preciso humanizar o perrengue [sofoco] da maternidade. E claro que o lado maravilhoso também existe.

Um dia ouvi um senhor com 60 anos dizer que perdeu a mãe, e que assim “se acabou tudo”. Que ligação é esta, incondicional e tão intensa, que nos faz pensar que a vida sem as mães deixa de ser vida?
Acho que nunca ninguém vai me amar e me odiar como a minha mãe. Eu tenho pavor de pensar que um dia vamos nos separar para sempre. Não existe nada mais forte do que essa relação. Mesmo quando a relação não existe, o vazio que ela deixa é maior do que qualquer enlace que você possa fazer na vida.
Fala também dos medos em se tornar “uma mãe daquelas”: cheia de manias, teorias da conspiração, capaz das maiores tonterías. É verdade que a maternidade também pode toldar o bom senso? Como foi no seu caso?
Eu tento não trazer para mente em formação da minha filha os mesmos medos que minha família enfiou dentro da minha cabeça. Fui criada por pessoas que tinham pavor que eu me machucasse, saísse na rua, viajasse, caísse, me quebrasse, pegasse uma virose.
Sim, aqui ainda temos uma quantidade indecente de mulheres famosas que só se encontraram realmente depois da maternidade, influenciadoras de Instagram que amam cada segundinho da vida como mãe e muitos maridos aplaudindo terem encontrado essas santas pra posar do lado deles. Mas também tem muita gente interessante falado sobre a importância de abraçar a ambivalência em qualquer relação: a gente ama e acha um saco e isso é que é saudável. Porque esses filhos precisam aprender que pra ter o bom tem que aturar o chato. Eu tenho um podcast chamado "Calcinha larga" que nasceu justamente da ideia de dar a real sobre a maternidade.
Ficamos sempre parecidas às nossas mães, tornamo-nos elas, mesmo que passemos uma vida a achar que não?
Eu sou bem parecida com a minha mãe, mas nas coisas que eu considero ruins eu me enfio na terapia pra tentar fazer diferente. Porque sem esforço acho que ficamos parecidas até no que não queremos.
Considera o livro uma espécie de relato autobiográfico, com alguns dados ficcionais? Como lida com a exposição da sua experiência, especialmente com a família?
Sim, é um livro de auto-ficção. Eu só sei escrever assim, mas sempre tem um parente chateado que para de falar comigo. Eu já aprendi que vai ser sempre assim, porque não vou parar.

