Maria Zakharova é apenas o mais destacado soldado no exército de clones que assumiu a missão de mentir em nome do regime de Putin.
Na última quinta-feira [10 de março], a Europa e a América acordaram para assistir talvez à mais angustiante das imagens vinda da invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Mulheres com gravidezes em estado muito avançado e mães recentes agarrando convulsivamente os seus bebés sendo escoltadas para o exterior das ruínas enegrecidas de uma maternidade em Mariupol, que tinha sido destruída por ataque aéreo, no qual morreram três pessoas. Eram o tipo de fotografias que podem vir a definir uma guerra. Prova, se é que esta era necessária, de que a Rússia estava a mover uma guerra não contra o exército, mas contra a própria Ucrânia.
Houve, contudo, uma mulher que ficou aparentemente insensível: Maria Zakharova, diretora do departamento de informação e imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros e inescrutável porta-voz de Putin. Questionada acerca do ataque numa conferência de imprensa, partiu para a ofensiva. "Isso é terrorismo de informação", disse ela, alegando que os relatos ucranianos acerca dos ataques aéreos eram falsos. Isto na sequência das suas anteriores afirmações de que a Ucrânia estava a desenvolver armas biológicas.
Para quem não esteja acostumado, o tom sinistro de Zakharova pode parecer chocante, mas não há nele nada de novo. Ela é apenas o mais destacado soldado de um exércitos de clones de mulheres russas bem-entendidas em media que assumiram a missão de mentir em nome do regime de Putin. Fazem-no em inglês fluente com aparente deleite e, ao que tudo indica, não há extremos a que não estejam dispostas a ir. Podem continuar ainda a ser homens quem conduz os tanques e quem salta dos aviões. Mas na nova guerra de propaganda, a elite das tropas de choque de Putin são mulheres.
Num país que estava habituado a que as conferências de imprensa do governo fossem conduzidas por homens insípidos, envergando fatos pesados, estas mulheres, com o seu estilo fanfarrão e piadas picantes, bem como batons vivos, cabelos longos e fatiotas vistosas, têm sido uma lufada de ar fresco. As conferências de Zakharova tornaram-se eventos a não perder, somando milhões de visualizações no YouTube.
Uma mistura de aço e espetáculo transformou estas mulheres em celebridades. O que é que interessa se elas estão a fazer a obra do diabo?
No entanto, Putin está longe de ser o único líder mundial autoritário a ter empregado mulheres inteligentes para ajudar com a transmissão da sua mensagem. Entre 2017 e 2020, Donald Trump usou a sua assessora política Kellyanne Conway para obter efeitos semelhantes, muitas vezes via Fox News. Foi Conway quem defendeu o uso da expressão "factos alternativos" pelo então porta-voz da Casa Branca Sean Spice e quem inventou uma atrocidade fictícia, o Massacre de Bowling Green, para defender a proibição da imigração por parte do Presidente.
Durante décadas antes de se reformar, a pivô de notícias da Coreia do Norte Ri Chun-hee, por vezes apelidada de "Dama Cor de Rosa" por causa dos seus fatos em tons vivos, apresentou as notícias nacionais – acerca dos desenvolvimentos nucleares ou do êxito contínuo da liderança do Executivo – em tons austeros e por vezes melodramáticos.
"Não sei se Putin e estes outros líderes andam deliberadamente a escolher mulheres ou se simplesmente elas são as melhores pessoas para ocupar aqueles cargos", diz Jo Tanner, uma consultora de comunicações e ex-assessora de Boris Johnson. "Há possivelmente um elemento machista no facto de estes líderes do sexo masculino escolherem porta-vozes mulheres".
"Eu consigo perceber a lógica de apresentar uma mulher para defender um ataque a uma maternidade. Estar-se-ia a tentar burilar as arestas mais afiadas do episódio. Mas Zakharova tem uma elocução muito enérgica."
Tanto que Zakharova, a par de Margarita Simonyan, chefe de redação da rádio RT (anteriormente conhecida por Russia Today), foi colocada na lista de sanções da EU lado a lado com os oligarcas russos – no caso dela por ter "promovido a colocação de forças russas na Ucrânia".
Simonyan chamou as atenções em 2018 quando conduziu a bizarra entrevista aos autores do envenenamento do antigo espião russo Sergei Skripal, que ocorreu na cidade de Salisbury, no Reino Unido, [com o agente nervoso Novichok, uma arma química] em que eles alegavam ser um amistoso casal homossexual que tinha simplesmente visitado a cidade para ver o "famoso pináculo de 123 metros" da catedral.
Quando lhe perguntaram como se sentia por ter sofrido sanções pela EU, ela respondeu sarcasticamente: "A Maria Zakharova e eu sacámos dos nossos lencinhos", de modo a "podermos verter uma lagriminhas".
Depois há Maria Butina, que foi condenada por espiar para a Rússia contra os EUA em 2018 e agora exerce funções na Duma Federal. Na quarta-feira, numa entrevista dada ao programa de rádio da BBC, Today, que deixou a Grã-Bretanha inteira boquiaberta, ela afirmou que os ucranianos estavam a bombardear-se a si próprios. Tão pouco deveremos esquecer Anna Chapman, a ex-espia de cabelos cor de fogo, que esta semana arranjou tempo para se manifestar em apoio da guerra, por entre a venda de roupas de criança no Instagram. A senadora e porta-voz governativa Valentina Matviyenko, entretanto, afirma que a invasão era a "única forma de impedir uma guerra fratricida".
Jo Tanner diz que é uma questão irrelevante se estas mulheres estão ou não envolvidas nas suas próprias mentiras. "Internamente, estas porta-vozes estão a jogar com o facto de que o seu próprio povo tem um acesso limitado a outras fontes de informação", diz ela, "Toda a invasão se baseia numa mentira absoluta e está a ser alimentada por uma continuação disso mesmo. Seria de esperar que as porta-vozes estão a ser enganadas e que não conhecem a verdade quando estão a transmitir a mensagem. Mas impõe-se a interrogação. É que são pessoas cultas que estão a fazer estes trabalhos. Têm de ser capazes de ver outras fontes de informação pelo mundo fora, que contradizem o que elas andam a dizer."
Embora os megafones femininos de Putin tenham surgido por diversas vias, todas têm em comum perspetivas conservadoras e uma história de inabalável lealdade para com o chefe. Simonyan foi repórter no Kremlin, estreando-se durante a Guerra da Tchetchénia antes de ser nomeada diretora do Russia Today quando tinha apenas 25 anos. "Ela tem um forte background jornalístico", diz Emily Ferris, bolseira de investigação na Rusi, um think tank especializado na Rússia e na Eurásia. "Ela fez parte do pacote de imprensa do Kremlin. Provou que era alguém em quem se podia confiar."
Butina era uma das assistentes de Aleksandr Torshin, um aliado de Putin, que foi enviado para se infiltrar em instituições americanas, incluindo a NRA [National Rifle Association], na corrida final às eleições de 2016. Matviyenko é uma lealista de há longa data de Putin, algo que a ajudou a tornar-se a primeira mulher líder de São Petersburgo.
Talvez a mais interessante seja Zakharova, com um CV que a poderia ter levado a qualquer lado. A mãe era uma historiadora de arte e o pai foi embaixador da Rússia em Pequim, onde a família viveu durante 10 anos, em resultado do que Zakharova fala fluentemente chinês. Tem o equivalente russo a um doutoramento.
"Zakharova é particularmente agressiva contra o ocidente, o que eu acho que alguns russos poderão ver como uma demonstração de força", diz Ferris. "Mas a Rússia continua a ser um país bastante misógino e ela também contraria uma data de visões tradicionais de como as mulheres devem ser. Eu não diria que a admiro, exatamente, mas é muito difícil ser uma mulher naquele papel."
Por vezes apelidada de "troll-chefe" de Putin, Zakharova criou uma reputação como sendo um dos mais combativos batedores do Presidente russo, sem receio de levar um confronto até aos jornalistas, se necessário for. Numa mal-afamada conferência em 2018, ela confrontou uma jornalista finlandesa que se havia atrevido a perguntar-lhe acerca da campanha anti-LGBT que estava a ser levada a cabo na Tchetchénia pelo seu líder Ramzan Kadyrov. Saindo de trás do seu atril, Zakharova sugeriu que a jornalista talvez pudesse lá ir e verificar por si própria.
"Não tem medo, pois não?" perguntou ela. "Não estamos a brincar." E depois piscou-lhe o olho. "Foi um momento muito constrangedor e desconfortável", disse depois Erkka Mikkonen aos jornalistas. "Foi como ter sido repreendida pela professora na escola. Ela estava a tentar fazer-me sentir que nem uma idiota."
"Ela gosta mesmo do seu trabalho; diverte-se com o que faz", contou ao Buzzfeed Aleksey Maslov, um professor de economia que deu aulas a Zakharova no início dos anos 90. "Ela transformou a gestão das RP do Ministério dos Negócios Estrangeiros num teatro de alto gabarito."
"Em parte, estes papéis têm acabado por ser ocupados por mulheres porque têm menos prestígio do que os grandes cargos internos", diz Mark Galeotti, professor no University College London (UCL) que é especialista em assuntos da Rússia. "Mas há também uma consciência de que a sucessão de monótonos apparatchiks de fatos cinzentos não funcionava para incutir a mensagem. Ao passo que as Zakharovas deste mundo conseguem sem dúvida toda a cobertura e atenção. É a síndrome de Ann Coulter."
"O papel delas significa que muitas destas mulheres são mais famosas fora da Rússia do que no seu país natal", diz ele. "A Butina foi uma espécie de celebridade acidental. É uma astuta carreirista, com o olho para o que vai chamar a atenção das pessoas. É difícil saber quais são as suas convicções no seu mais profundo âmago, mas a dada altura temos mesmo de fazer as nossas opções.
Zakharova é provavelmente um caso diferente. Ela aprecia a natureza combativa do seu trabalho. A minha sensação é que ela acredita plenamente naquilo que está a dizer."
Estas mulheres são também a prova de que, para um certo tipo de jovem mulher ambiciosa, o Kremlin pode oferecer um caminho rumo ao topo mais rápido do que o setor privado. "Não há exatamente oportunidades iguais", diz Galeotti. "Mas o Kremlin está interessado em aproveitar sejam quais forem os recursos humanos que tiver à disposição. Deixem os princípios morais à porta e, se forem atraentes, isso só ajuda."
Ed Cumming/The Telegraph/Atlântico PressTradução: Adelaide Cabral