Melancolia profunda. A MTV morreu. Viva a MTV
“Ladies and gentlemen, rock and roll.” Foi com estas palavras que, às 00:01 do dia um de agosto de 1981, a MTV foi para o ar. A transmissão seguiu com o emblemático Video Killed the Radio Star, dos The Buggles, e o resto, como se diz, é história. Pode-se argumentar que há muito que a MTV não era a MTV, mas o anúncio da extinção do canal encerra em si algo deveras simbólico: é o fim de uma era.

Há pelo menos cinco anos que não vejo MTV. Minto. Há pelo menos dez. Não faço ideia se faz parte do meu “pacote” de televisão. A notícia de que o canal vai ser desativado, na Europa, até ao final deste ano, não tinha porque me abalar. No meu dia-a-dia, ele (já) não existia. Porém, ler que “até 31 de dezembro, cinco dos vários canais da MTV vão ser retirados do ar: MTV Music, MTV 80s, MTV 90s, Club MTV e MTV Live” deixa-me profundamente melancólica. A decisão da Paramount Global, empresa detentora da estação, é compreensível. Redução de custos, declínio das audiências e mudança de hábitos dos espectadores, que preferem outras formas, e plataformas, de consumir música — e aqui faço o meu mea culpa. Abandonei a MTV na viragem do milénio, talvez um pouco antes, assim que as 24/24 horas de videoclipes começaram a ser interrompidas por embriões de reality shows. Deixei de ser consumidora assídua e passei a ser visitante esporádica. Ainda assim, durante muito tempo, fui vendo “o que se fazia.” Porque muito antes da Internet e das redes sociais dominarem o nosso quotidiano, a MTV era a melhor forma de entrar no universo dos nossos artistas preferidos. Nos anos 80 e 90, ficar horas a fio no sofá a ver MTV não era um pesadelo, era uma religião. Agora, perceber que o veículo que me apresentou o mini filme de November Rain (1992), dos Guns N’ Roses, encerra as portas, é como não ter moedas para usar na última jukebox do planeta.

O facto de ter apenas onze anos em 1992, de passar as férias a ler livros Patinhas e Uma Aventura ou brincar com Legos e Barbies, não diminuiu em nada o impacto provocado em mim pelo videoclipe dos Guns N' Roses. Já conhecia a música (através da minha prima mais velha), já tinha a cassete de Use Your Illusion I, já era problemática o suficiente para achar que entendia cada vírgula daquela história de desamor; o solo de guitarra do Slash tinha sido feito para mim, uma miúda com um metro e meio que nem sabia o que era um beijo na boca… Mas foi a tradução de tudo aquilo para imagens em movimento que transformou November Rain numa das canções da minha vida. E foi a MTV que me deu isso. Tal como me deu Losing My Religion (1991), dos R.E.M — “Como era ser jovem e triste em fevereiro de 1991? De certa forma, era parecido com o cenário estranhamente belo, em tons de castanho-escuro, onde Michael Stipe dançava, no melhor videoclipe do R.E.M.”, escreveu a data altura a Rolling Stone —, o primeiro CD que comprei, a carimbar a minha atração pelo lado enigmático da existência. E foi ela, também, que me deu a conhecer hinos como Atomic (1979), dos Blondie, Just Can't Get Enough (1981), dos Depeche Mode, I Want to Break Free (1984), dos Queen, Blue Monday (1983), dos New Order, Nothing Compares 2U (1985), de Sinéad O’Connor, Always on My Mind (1987), dos Pet Shop Boys, Like a Prayer, de Madonna, e The Best, de Tina Turner (ambos de 1989), entre tantos outros. Para alguém cujo gosto musical roça a esquizofrenia, poder usufruir de semelhante discografia, dia e noite, numa época em que o YouTube era um delírio que alguém haveria de realizar, era um privilégio.
Até porque, apesar das frequentes listas de “videoclipes mais pedidos”, a MTV não era um concurso de popularidade. Nela cabiam os miúdos que se achavam cool e os nerds que tinham vergonha de assumir que gostavam de Bon Jovi; havia espaço para os vanguardistas, que viviam no futuro, e os apaixonados, que viviam num lugar que só existe de olhos fechados; ela chamava a si mesma os defensores do punk e da pop, do metal e do hip hop. Sim, foi sempre mais cor-de-rosa do que seria desejável, porém, nas suas imperfeições, ofereceu a uma geração um tipo de entretenimento que estava muito acima do que a imaginação, ainda com o filtro dos anos 80 e 90, podia contemplar. Do pátio do liceu ao sofá de casa, a MTV era uma espécie de companhia fiel que ajudou a redefinir não só a indústria musical como a música, as artes, a moda e a própria ideia de cultura popular. Consigo mencionar dezenas de videoclipes que vi mais do que seria desejável, e todos eles permanecem associados a um momento na minha vida, como o cheiro de um perfume: What’s Up (1992), dos 4 Non Blondes; Basket Case, dos Green Day, e Loser, de Beck (ambos de 1994); Waterfalls, das TLC, Don’t Speak, dos No Doubt, Ironic, de Alanis Morissette, It's Oh So Quiet, de Björk, Tonight, Tonight, dos Smashing Pumpkins, todos de 1995; Don’t Look Back in Anger (1996), dos Oasis; Bitter Sweet Symphony, dos The Verve, e Around The World, dos Daft Punk (ambos de 1997), Doo Wop (That Thing), de Lauryn Hill, Everything For Free, de K’s Choice (ambos de 1998), Porcelain (1999), de Moby.
Este meu reduzido best of vale tanto como qualquer outro. O importante é o que está por detrás de cada frame, de cada nota, de cada instante que cada um de nós ainda lembra sem recurso a hashtag. Insisto: a MTV foi tudo menos perfeita. Ou, como fez questão de me relembrar um amigo quando abordámos sobre este tema, “a MTV foi sempre demasiado mainstream.” Virada para as massas. Não o nego. O aparecimento das Spice Girls (com que também vibrei, importa sublinhar, daí não esconder a minha tendência para playlists de gosto duvidoso) foi um dos pontos de viragem do canal. A partir daí, aos poucos, a popularidade substituiu a autenticidade. Mas, lá está, há ocasiões que sobrevivem ao pior deslize, como o concerto acústico dos Nirvana, a 18 de novembro de 1993, que daria origem a MTV Unplugged in New York, álbum editado no ano seguinte, já após a morte do vocalista da banda. É um dos eventos televisionados mais belo e intimista alguma vez gravado, e proporciona-nos uma das melhores covers de todos os tempos, The Man Who Sold the World (original de David Bowie), cantada por um homem que nunca pertenceu a este mundo, Kurt Cobain.
Recuemos no tempo, agora que as luzes se apagam. Foi a um sábado, mais precisamente no dia um de agosto de 1981, às 00h01 (horário da costa leste dos EUA), que arrancou a primeira emissão da MTV, acrónimo de Music Television. O canal foi para o ar com uma frase histórica “Ladies and gentlemen, rock and roll” (“Senhoras e senhores, rock and roll”), proferida por John Lack, um dos fundadores da estação, que fazia jus ao momento de viragem que ali se iniciava. Estávamos perante o início de uma nova era da televisão, que transferia a indústria musical e a cultura popular para um meio visual. As palavras foram seguidas pelo tema original da MTV, uma melodia rock composta por Jonathan Elias e John Petersen, tocada sobre a bandeira dos EUA — alterada de forma a exibir o logótipo da MTV —, que assumia diferentes texturas e designs. E depois o agora icónico Video Killed the Radio Star, dos The Buggles, que teve tanto de profético como de encantador. Numa contagem decrescente que deixa espaço para um lirismo que se coaduna com a saudade e a nostalgia, façamos um exercício digno do velhinho MTV Top 20 Video Countdown. Qual será o último videoclipe a passar na MTV? Aquele que põe o ponto final e dá o último acorde? Deixamos uma sugestão: American Pie, na fabulosa versão que Madonna lançou em 2000. Toda a letra é fabulosa, e um dos versos diz, em particular, “The day the music died” (“O dia em que a música morreu”). Não querendo comparar o final de um ciclo que tem na sua génese motivos capitalistas com o drama que inspirou a canção original de Don McLean, seria bonito imaginar que ainda é possível homenagear o passado com as melhores memórias que ele nos proporcionou. #ForeverMTV.
