Histórias de Amor Moderno: “Raíza beijou-me como se nos conhecêssemos há muito tempo e se nos amássemos há pouco.”

“Beber aquele chá dava acesso a lugares recônditos do espírito e da imaginação, levando as pessoas ao limiar do deírio.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Midsommar / IMDB
05 de agosto de 2023 às 16:37 Maria Olívia Sebastião

Quando elas se aproximaram de mim, o grupo, composto maioritariamente por brasileiros, riu-se e gozou comigo, "agora vai ser a dobrar", "duas nunca é demais", "coragem, amigo". Os incentivos eram de vários tipos, mas todos os piropos assentavam num estereótipo masculino com o qual nunca me identifiquei: o do macho que é uma espécie de galo, cuja função é fecundar cada ovo que lhe apareça pela frente. Ri-me. Fiz de conta que estava não só confortável com a situação, como até bastante à-vontade, confiante mesmo. Sem me dar conta, deixei que me transformassem na caricatura do tal estereótipo que me desagrada.

O que há de bom nestes festivais é que acabamos sempre por conhecer pessoas que, de outro modo e noutras circunstâncias, nunca chegaríamos a conhecer - porque pertencem a outros círculos, porque habitam outras latitudes, porque os seus gostos e ambições divergem em demasia dos nossos, porque o que temos em comum se resume ao gozo de, uma vez a cada três anos, nos enfiarmos num rio e nas suas margens que se inundam de música eletrónica e gente nua com tatuagens e pinturas no rosto e no corpo. O que há de mau nestes festivais é que acabamos inevitavelmente por conhecer pessoas que, de outro modo e noutras circunstâncias, nunca teríamos energia nem vontade universal para vir a conhecê-las. Portanto, cada caso é um caso e todos os casos configuram o mesmo: tudo é acidental, para o bem e para o mal.

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Neste meu caso, tudo começou muitíssimo bem, mas rapidamente enveredou pelo potencialmente mal. A Patrícia, que eu nem sei se chamava mesmo Patrícia, era uma alemã dos seus trinta e muitos anos, detentora de todos os prodígios que uma fantasia rica, mas não demasiadamente ambiciosa, pudesse imaginar. Ela era alta, ela era loura - os mínimos evidentes -, mas também era esbelta e atlética, tinha umas costas direitas, compostas, largas mas sem correr o risco de parecerem masculinas, umas pernas longas, porém sem serem magras: eram antes torneadas e recortadas por uma musculatura modesta mas convicta. Tinha curvas suficientes, sem exuberâncias, o que muito me agradava, até para não atrair demasiadas atenções do típico macho faminto que adora rabos e mamas (diz-me a experiência que são, por norma, homens musculados que gostam de falar alto sempre que pretendem fingir que são assertivos; adoram ter a última palavra - normalmente, a penúltima é minha e pode ser escrita do seguinte modo: "Opá-tá-bem"; as suas respostas variam em género, mas não em classe).

Logo no primeiro dia do festival, dirigi-me cedo à tenda do ioga-ao-despertar, uma designação absolutamente lógica se atendermos ao horário, mas profundamente otimista se tivermos em conta que as pessoas no dia anterior se tinham deitado tarde e - e isto é só um palpite sem fundamentos em qualquer estudo científico - se calhar depois de terem consumido algumas substâncias adulterantes do espírito e do físico. Por exemplo, um composto que lembrava chá, mas cujas propriedades iriam muito além de uma tradicional camomila, de uma modesta cidreira, ou de uma serena hortelã. Beber aquele chá dava acesso a lugares recônditos do espírito e da imaginação, levando as pessoas ao limiar do delírio. Não estou a dizer que foi o que eu fiz, mas também não estou a negar.

O ioga não me despertou coisa nenhuma. Pelo contrário, dei por mim a frequentemente adormecer nas poses simples, contrariando o propósito dos exercícios, que passavam pela meditação, pela introspeção e pela contemplação. Não contemplei nada. Fechava os olhos e despertava segundos mais tarde, normalmente com a minha própria respiração - e, nesse ponto, podemos conceder que, de certo modo, meditava. Ao meu lado, uma mulher loura e discretamente atraente parecia divertida com o que me ia acontecendo. Era a Patrícia. Meteu-se comigo, disse-me para dormir descansado que ela olhava por mim. Fez-me rir. Saímos dali juntos e passámos juntos um dia daqueles que eu imaginei a vida inteira e que consiste em qualquer coisa como: cruzar-me com uma desconhecida aleatória, dar-me bem com ela, divertir-me, aprender, conhecer, descobrir, sentir afinidade, saborear o princípio inimitável de uma paixão que desponta. Fizemos amor na minha tenda. Ela não quis ficar, preferiu ir passar a noite aos seus aposentos, que eu não sabia onde ficavam, pois ela acampou num outro lugar do recinto distante do meu acampamento. Disse-me "vamos com calma" e eu acedi, aceitei a sua lógica. Combinámos encontrarmo-nos no dia seguinte na sessão dos animais espirituais.

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A Patrícia saiu da minha tenda e eu saí atrás dela, mas contive-me e não a persegui. Juntei-me ao grupo que se reunia à volta da fogueira, a beber chás, a conversar, a contemplar e a fumar. O espírito deste grupo é impecável, já nos encontramos há alguns anos, somos assíduos do festival e, a cada edição, estreitamos entre nós os laços sedosos daquelas amizades que não importunam, antes acrescentam uma dimensão que se revela de quando em quando. São amizades que acontecem por acidente e que se mantêm nas nossas vidas sem qualquer tipo de obrigação ou exigência. Encontramo-nos e isso é bom, não há mais nada para acrescentar. Sempre que nos juntamos no festival, montamos um acampamento conjunto, como uma pequena comunidade. Quando saí da tenda com a Patrícia, viram-nos. Meteram-se comigo, claro. "Opá, logo no primeiro dia, seu playboy", brincavam, e riam-se. Eu ria-me também.

No dia seguinte, lá fomos, todos juntos, até à tenda dos animais espirituais. É uma atividade que eu nunca tinha experimentado e que consiste no seguinte: à entrada, despimo-nos completamente e bebemos um chá, diferente daquele da primeira noite; em seguida, ouvimos um discurso muito sereno, dito numa voz baixa, calma, quase dormente, que progressivamente nos incentiva a imaginarmos o animal que trazemos dentro de nós, mesmo sem sabermos, e que precisa de ser despertado. Rezei para que o meu não fosse uma baleia azul, devido às previsíveis dificuldades de mobilidade, ou um canguru, pelo potencial de ridículo no momento da revelação.

Antes de entrarmos, a Patrícia surgiu diante de mim, como combinado. Só que trazia outra rapariga com ela: mais jovem, muito morena, bonita, baixinha. "Essa é a Raíza", disse, e deram um beijo - um beijo na boca, apaixonado e ternurento, e eu só pensei "pronto, é o amor livre" -, depois a Patrícia aproximou-se de mim, deu-me a mão e beijou-me também, dizendo em seguida "Raíza, esse é o Joaquim". E então a Raíza beijou-me como se nos conhecêssemos há muito tempo e se nos amássemos há pouco - aquele beijo estava impregnado de água e de fogo. Entrámos na tenda e elas explicaram-me o processo dos animais espirituais, eu pensei na tal baleia azul e depois no tal canguru. Por fim, concluí que queria ser um leão e que elas fossem leoas. Vi nos programas de vida selvagem que os leões acasalam muito e com mais do que uma fêmea, e que depois descansam.

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Eu nunca na vida tinha tido experiências românticas físicas com mais do que uma pessoa. Nesse aspeto, sempre fui conservador: um é pouco, dois é bom, três é demais. Senti-me profundamente virgem naquele contexto em que, todos nus, entrávamos os três num mundo delirante em que procurávamos o nosso lado selvagem e, muito previsivelmente, acabaríamos acoplados uns aos outros. Após o discurso, e com o efeito do chá a revelar-se poderoso, começámos a atravessar o limiar da consciência, caminhando em direção à dimensão transcendental onde íamos encontrar o tal animal que há em nós. A Patrícia começou a tornar-se uma hiena, desatou a correr e acabou por se juntar a uma alcateia noutra zona da tenda. Raíza parecia transformar-se numa lesma: arrastou-se lentamente pelo chão, afastando-se até um sítio onde alguém que parecia ser um gato lhe cravou as garras e os dentes. Eu, numa nuvem de espanto, fui-me sentindo um lince ibérico: ágil, astuto, rápido. E foi assim que fugi dali, ainda sob o efeito do chá, e me escondi sozinho na minha toca, no acampamento que era o meu porto-seguro. Um pode ser pouco, mas é menos assustador do que uma multidão.

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