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Histórias de Amor Moderno: “Eu conhecia bem aquelas histórias porque elas tinham todas a mesma protagonista: eu”

“Jovens elegantes e bonitas, vestidas com estilo e com arrojo, iam-se juntando ao pé de uns ou de outros. Não demorava até que se sentassem nos seus colos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Rough Night @IMDB
20 de janeiro de 2024 às 12:00 Maria Olívia Sebastião

Na parede junto à entrada, o papel dizia "Turmas 90-91 a 94-95"; por cima, o letreiro que nos recebia a todos, saudando-nos com entusiasmo, mas sem cuidados literários excessivos: "Bem-vindos! Ex-alunos C+S Ericeira" e um coração cor-de-rosa brilhante no fim daquela espécie de frase. Do outro lado da entrada, mais uma indicação com uma seta simples apontando vagamente para dentro do edifício e a informação "NAME TAGS", que em inglês fica muito mais elegante do que a alternativa autóctone "ETIQUETAS COM O NOME", embora se corresse o risco de alguns dos ex-alunos não perceberem do que se tratava. Se bem me lembro, alguns dos meus ex-colegas não eram propriamente brilhantes a Inglês.

Segui as instruções com obediência atravessando a sala onde se juntavam já algumas dezenas de pessoas com os seus rostos vagamente reconhecíveis. Com certeza que me eram familiares, mas familiares de outros tempos, como se eu tivesse tido um sonho turvo e, depois de acordar dele, me viessem à cabeça imagens difusas, difíceis de reconhecer, de identificar, de compreender, com que agora me deparava. As pessoas falavam umas com as outras dividindo-se em grupos e as conversas, nalguns casos, fluíam animadas, com copos ou garrafas de cerveja na mão. Chegar atrasada a este tipo de encontros apresenta vantagens e desvantagens. Se por um lado pode resultar numa maior dificuldade em enturmarmo-nos, porque entramos no carrocel de socialização com ele já em andamento, por outro é-nos concedido o privilégio de observar, contemplar e eventualmente escolher a quem nos queremos juntar, ou até adiar essa decisão por um bocado, aproveitando para fruir um pouco mais do estatuto de observadora anónima.

Eu já tinha chegado à minha "name tag", mas ainda não tinha tido tempo para a colar no peito, sobre o vestido - sentia-me numa daquelas comédias americanas em que adultos se juntam para recordar os bons velhos tempos da high school quando uns eram bullies dos outros, mas agora está tudo bem porque cresceram, e aqueles que eram vítimas tiveram sucesso na vida e possuem casa própria, ao passo que os que faziam bullying são empregados de gasolineiras, ou têm qualquer outra função equivalente. "A gente nessa altura queria era que ela começasse a fazer festinhas", ouvi um dos homens, rapaz da minha idade, dizer ao meu lado. Não olhei. "Quando fui com ela para a colina, primeiro não queria nada, mas depois de me pôr a mão lá dentro… tirou-o para fora e fez-me tudo." Riram-se. Os outros contavam histórias semelhantes. E eu conhecia bem aquelas histórias porque elas tinham todas a mesma protagonista: eu.

Sem olhar para eles e sem que eles percebessem que eu ali estava, afastei-me antes de colar, finalmente, a etiqueta com o meu nome, ou o nome por que era conhecida nos tempos de escola, Susy, diminutivo de Susana, segundo dos dois nomes com que a minha mãe, cheia de boa-vontade me batizou: Carla Susana. Hoje em dia, no meu meio, na minha vida, no meu círculo, ninguém sabia quem era essa Susy, nem que uma Susy tinha existido. Doutora Carla Teixeira Gomes, essa sim, seria a "name tag" para me identificar na idade adulta. Exceto num determinado meio.

Quando cheguei ao encontro dos ex-alunos, ninguém sabia quem eu era. Não mudei assim tanto em trinta anos, as feições mantêm-se fiéis e não aderi à tendência das correções estéticas. Estou como estou, como a natureza quer e a vida me permite que esteja. E não estou mal, tenho os meus cuidados, alimento-me com regras, faço exercício. A vida corre-me bem, muito melhor do que correrá à esmagadora maioria destes coleguinhas que agora se riem alarvemente sobre as primeiras experiências, os primeiros toques, o ter-lhes tocado, o tê-los chupado, coitados, mal sabem eles o que tem sido a minha vida. Podia ter entrado com exibicionismo, deixando um Porsche à porta e à vista de todos, com um Rolex de diamantes e uma gigantesca carteira da Louis Vuitton debruada a dourado. Mas não faz o meu estilo, preferi vir de Uber e duvido que a maioria deles consiga sequer identificar o Cartier que tenho no pulso.

O que fiz com os rapazes naquele tempo não o fiz por ser uma vítima das circunstâncias, ou por ser pobre, ou por não ter quem olhasse por mim. Fiz porque gostava, como ainda gosto. E dava-me um gozo imenso perceber que eles, entre as conversas sebosas em que partilhavam uns com os outros os detalhes do que lhes tinha feito - "bateu-me uma lá atrás", "chupou-me até ao fim" -, competissem uns com os outros numa guerra tácita e silenciosa para ver quem é que me tirava a virgindade - porque eu nunca chegava ao ponto de lhes dar o que é meu, preferi sempre tomar-lhes o que era deles. Coitados, não podiam imaginar que essa suposta preciosidade me fora arrancada vários anos antes, num episódio que prefiro não contar, porque essa é uma outra história, demasiado triste.

Sempre gostei das formas dos corpos dos rapazes e sempre atraíram as particularidades dos seus sexos, as diferenças entre eles. As pessoas tendem a pensar logo nos tamanhos, mas essa escala de medição é genérica, é vaga e pouco interessante. Há aspetos que me entusiasmam muito mais. As texturas e as curvas, o tom de pele, o cheiro, o desfecho de cada ponta, o inchaço arredondado quando provocado até ao limiar do êxtase, toda a composição de carne, músculo, pele e veias, o ponto físico onde os seus corpos terminam que, ao acender-se, lhes desliga o cérebro e a capacidade de raciocinar - e o meu domínio, pelas mãos e pela boca, daqueles jovens animais, cheios de sonhos e de espasmos, como bezerros que pisam erva fresca pela primeira vez e não contêm a felicidade.

Quando cheguei à faculdade, a economia, as finanças e a gestão eram um mundo de homens. Ainda hoje é, embora se encontrem nos dias que correm mais mulheres em busca do seu espaço neste ninho vicioso que é o couto do macho endinheirado, que tanto compra a prostituta de luxo como se esfrega no rabo da secretária silenciosa e intimidada. No meu curso éramos quatro raparigas, três do meu ano e só uma, a Catarina, um ano mais velha. 

Chegada a Lisboa, levava uma vida pacata e até discreta. Não me meti em aventuras com rapazes, sabia que já não estava ao pé da colina, na Ericeira, tinha noção de que o que eu fizesse ali podia condicionar todo o meu futuro, incluindo a minha carreira. Mas a Catarina parece ter-me reconhecido, como se, com visão raio X, conseguisse decifrar o que eu era por dentro e os desejos que eu carregava. "Hoje vens comigo a uma festa", disse-me. "Eu ajudo-te com a roupa." Vestiu-me, pintou-me, preparou-me e fomos. Era no Restelo. Numa penthouse com vistas amplas, juntavam-se homens de meia idade que chegavam engravatados, mas que rapidamente abriam os colarinhos das camisas de seda e bebiam bourbon ou peated scotch enquanto acendiam charutos. Aos poucos, jovens elegantes e bonitas, vestidas com estilo e com arrojo, iam-se juntando ao pé de uns ou de outros. Não demorava até que se sentassem nos seus colos. "São todas estudantes como nós", segredava-me a Catarina.

Ganhei muito nesse tempo, tal como outras colegas minhas. Algumas faziam-no simplesmente pelo dinheiro, pela necessidade de pagar as contas e de garantir um futuro melhor. Mas eu fazia-o por gosto. Eu e outras, como a Catarina, que eu não era a única a apreciar as particularidades, os contornos específicos, a configuração única de cada homem. Juntava o útil ao agradável: o meu prazer e o dinheiro deles. Era uma troca injusta, porque sentia que só eu ficava a ganhar. Mas eles também garantiam o seu pequeno troféu, mais uma rapariga nova que tinham "comido", como eles diziam, ou "papado", se o dissessem com mais entusiasmo e gabarolice. Pobres machos.

Só uso o nome Susy em duas circunstâncias: quando vou a casa dos meus pais e quando frequento encontros como aquele da penthouse. Agora, já não faço de universitária sexy e inocente. Prefiro dominar a ordem dos acontecimentos. Mascaro-me ao mesmo tempo que me dispo. Não me veem o rosto, só os olhos e os lábios - e todo o corpo, claro. Mas não os contornos do rosto. Para eles sou Susy, a Baronesa, dominatrix prodigiosa e implacável que os faz regressar a casa, aos braços de teresinhas e constanças, leonores e beatrizes, com nódoas negras nos pulsos, inchaços no rabo e arranhões nas costas, atrapalhados e nervosos em busca de explicações esfarrapadas que possam dar às mulherzinhas.

Entretanto, colei finalmente a etiqueta com o nome sobre o peito esquerdo no vestido ligeiramente decotado. Peguei numa cerveja e aproximei-me dos rapazes. "Olá, pessoal", olharam-me e calaram-se, pareciam surpreendidos. "Sou a Susy. Ainda se lembram de mim?" Sorri enquanto pensava nas estranhas voltas da vida. Estranhas, porém certas. Serei sempre a Susy.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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