Histórias de Amor Moderno: “Perguntam-nos como é que fazemos para manter a chama viva no nosso casamento”
“Se há assunto que a minha sogra gosta de trazer à mesa sempre que a família se reúne, com mais ou menos elementos, é o facto de eu e o Afonso não termos filhos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Eu tinha aterrado em Lisboa ao final da tarde, depois de um longo voo desde Tóquio-Narita, com escala em Londres-Heathrow. Foram, no total, mais de 26 horas, entre voos, descolagens, aterragens e tempo de aeroporto, que é possivelmente o maior desperdício da minha vida e, sem dúvida, o aspeto da minha profissão que mais me desgasta e deixa insatisfeita, angustiada, quase deprimida.
Apesar do cansaço da viagem, que me deixou praticamente desfeita, não consegui dizer que não a um jantar com os sogros num daqueles restaurantes muito chiques e panorâmicos no centro da cidade, com vista sobre as copas dos plátanos da Avenida da Liberdade, as colinas adjacentes, a placidez do Tejo lá ao fundo e, para lá das águas, a Margem Sul e a sua planície antecipando a Arrábida, tranquilamente estendida, como que a emoldurar o horizonte. "Que vista bonita", disse eu enquanto aguardávamos pela chegada dos pais do Afonso, e ele concordou. Perguntou-me como correra a viagem. Deu-me um beijo. Disse-me que tinha saudades minhas.

Temos uma vida de confortos, recheada de praticamente tudo o que queremos. Aos olhos de alguns, temos uma vida de luxo. Não diria tanto, é exagero: uma vida de confortos, é isso que temos. Mas também uma vida de sacrifícios, de esforço, de cedências e, por vezes, de escolhas difíceis. Sim, ser chefe-assistente de bordo numa companhia aérea de luxo tem as suas recompensas, até a nível financeiro. Porém, essa ideia deslumbrada de que andamos por aí a conhecer o mundo, não passa de uma ilusão infantil. O que melhor conheço e fui descobrindo ao longo das centenas, talvez milhares de viagens que fiz ao longo dos anos de profissão, são alguns recantos e detalhes, átrios e salas de descanso de aeroportos no Dubai, em Frankfurt, em Bangkok, em Sydney, em Atlanta, em Tóquio, em Londres, pelo mundo todo, nos principais hubs do planeta, principalmente. Em todo o caso, é impossível quantificar o quanto me custa passar várias sequências de dias por mês longe de casa, longe do meu marido, longe das minhas coisas. É como se eu não tivesse um quotidiano, é como se constantemente vivesse em regime de exceção.
O Afonso também faz os seus sacrifícios, e não são poucos. Depois de uma juventude inteira dedicada ao estudo e aos livros, divide-se agora entre cirurgias planeadas, operações de emergência e conferências e palestras internacionais, principalmente na América do Norte, mas não só. Há meses em que andamos os dois pelo mundo, cada um para seu lado. Costumamos brincar que, um dia, com sorte, acabaremos por no encontrar algures, nem que seja num grande aeroporto.
Quando os meus sogros chegaram, o cumprimento da Manuela foi o de sempre, "então, querida, que tal essas viagens?" Para a mãe do Afonso, aquilo que eu faço não é bem trabalhar, eu "viajo". "Anda sempre de um lado para o outro", diz ela a quem quer que esteja presente, como se me apresentasse, ainda que as outras pessoas sejam o meu próprio marido e o pai dele, e sabendo ela que estamos casados há já 17 anos. A minha resposta costuma ser um sorriso que uso para engolir qualquer pensamento subsequente.

Estamos sentados e, enquanto esperamos pelas entradas, a Manuela elucida-nos acerca do quão difícil e custoso foi conseguirem estar ali. Nunca vêm a Lisboa, diz ela, porque ainda é uma estafa vir de Azeitão, mas que desta vez até calhou bem, porque tinha de ir ao Corte Inglés buscar não sei o quê, que só se encontra ali e em mais lado nenhum, porque neste país é assim, uma pessoa blá blá blá blá, mas que então, "como é óbvio" (ela diz "cômé óóó-vio"), está muito cansada, está derreada, está exausta, está, numa palavra, ar-ra-sa-da. Com as minhas 26 horas em trânsito, sem ter dormido, olho para o Afonso e sorrio, mas ele nada diz, não comenta, não aprofunda a questão - em privado, mais tarde, há de se justificar, "arranjar problemas para quê? Não nos vamos chatear por ninharias". Eu não me chateio por ninharias. Só que, quando as ninharias são muitas e se acumulam em pilhas, o ressentimento engrossa, ganha substância, torna-se maciço.
Se há assunto que a minha sogra gosta de trazer à mesa sempre que a família se reúne, com mais ou menos elementos, é o facto de eu e o Afonso não termos filhos. Desta vez, mesmo numa versão familiar minimalista - quando todos se juntam, nas grandes festividades ou encontros de férias, o grupo pode chegar às cinco dezenas de pessoas -, lá veio à baila a descendência e a falta dela. "No fim de semana, foi muito fivertido, tivemos lá a Beatriz, a Joana, a Alice, o Joaquim e o Porfírio, todos os meus ricos netinhos." A Manuela acaba a frase e o Albano, o meu sogro, a quem carinhosa e surpreendentemente todos chamam "Napoleão", sorri para mim enquanto aperta levemente a mão da mulher, como quem diz "querida, por favor, hoje não".
Ela liberta-se da mão velha do marido, chega-se para a frente, na minha direção, faz uma voz aguda e pergunta-me "e tu, Clarinha, quando é que me dás mais um netinho?" E eu, "Manelinha", tenho 42 anos, uma vida impecável, alguma felicidade, muito conforto e nenhuma vontade de te dar "mais um netinho" - mas, claro, não digo nada, sorrio, encolho os ombros, "quem sabe", olho para o Afonso, ele finge que não me vê e olha para o pai, pobre Napoleão, a levar a mão ao estômago, talvez lhe venha daí o apelido, desse gesto que executa sempre que parece pressentir uma chatice que aí vem, um aborrecimento. Pousa a mão sobre a barriga enquanto franze o rosto, como se fosse um esgar de dor.

Chegámos a casa extenuados. Se o trabalho me deixou de rastos, o jantar, que continuou, de pequeno episódio em pequeno episódio, de microagressão em microagressão, até eu esgotar o limite da paciência e da contenção - "Manuela, por favor, nós viemos jantar e a Manuela ainda não fez mais nada senão provocar-me, tentar melindrar-me", disse eu, exaltada, "tenha dó", exclamei (levantei-me, deixei o guardanapo sobre a mesa e fui à casa de banho molhar o rosto; quando regressei à mesa, os meus sogros já tinham saído, "a minha mãe diz que lamenta muito, mas que não aceita esse tipo de insolência", comunicou-me o Afonso, e pedimos a conta). Não dissemos palavra durante o caminho todo.
O Afonso carregou a minha mala, como um cavalheiro, mas não abriu a boca. Quando entrámos em casa, disse-lhe "pousa isso aí, precisamos de conversar". Não foi uma conversa, foi uma discussão. E não foi uma discussão qualquer, foi daquelas duras, ríspidas, convictas, de quem acerta contas. Disse-lhe muita coisa. Recordei-lhe vários episódios em que a questão das nossas profissões, dos nossos horários, do nosso modo de vida tinham sido postos em causa pela mãe dele. Falei-lhe dos momentos em que o facto de não termos filhos fazia de nós, aos olhos da família dele, uma espécie de casal falhado, ainda que tivéssemos uma vida feliz, confortável e serena, apesar de todo o cansaço e de todos os sacrifícios. Lembrei-lhe a tragédia que foi quando, há uns anos, numas férias na casa grande de Azeitão em que a minha sogra teve a infeliz ideia de convocar toda a gente para "um fim de semana em família", nos terem deixado invariavelmente de fora das atividades por não termos filhos com quem participar nelas - como se, de repente, a mansão se tivesse transformado numa disneylândia e nós lá tivéssemos aterrado por engano.
O Afonso, que eu amo para toda a vida e por quem sou apaixonada há quase 20 anos, sem que o tempo coma nem corroa aquilo que sinto por ele, nestas coisas acaba sempre melindrado. Custa-lhe não defender a família, embora saiba perfeitamente que tenho razão. Mas está-lhe incrustada esta necessidade de defesa dos dele, dos valores dos laços de sangue e, claro, acima de tudo, de Napoleão e Manuela - "Clarinha, os papás são assim mesmo, eles têm a sua maneira de estar, tenta dar um desconto" -, as pessoas que mais admira na vida e no mundo.
A discussão estava boa, mas já era tarde, eu estava cansada, ele estava desgastado e, na verdade, eu tinha saudades dele, de me enroscar, do corpo, do cheiro. E ele, a avaliar pelo olhar magoado temperado com desejo, também estava capaz de me possuir ali mesmo, na sala de entrada. Às vezes, perguntam-nos como é que fazemos para manter a chama viva no nosso casamento. Digo sempre que não temos truques, e é verdade, felizmente temos uma chama que não se apaga. Mas há alturas em que uso trunfos de manga. Quando nos chateamos, por exemplo, e começamos a ficar exaltados, mas ao mesmo tempo o desejo não para de crescer, gosto de encarnar a Nicole Kidman enquanto repito as suas palavras na última cena de De Olhos Bem Fechados: "Eu amo-te. E, sabes, há uma coisa muito importante que precisamos de fazer o mais rapidamente possível." E o Afonso nunca precisa de me perguntar que coisa é essa.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
