Hoje um anjinho/Amanhã uma mulher/O teu caminho/Vais ser tu a fazer/Mas quando fores embora/Contigo também vai/Um coração de um pai, assim canta Tony Carreira, num concerto que deu em 2013 ao lado da filha Sara Carreira, que na altura tinha apenas 13 anos. Em palco estavam os dois, de sorrisos cúmplices e tons de voz alinhados, a cantar juntos a canção "Hoje menina, amanhã uma mulher", que Tony, um dos músicos mais acarinhados de Portugal, escreveu a pensar na filha.
O concerto aconteceu no Altice Arena, perante milhares de pessoas, Sara Carreira (1999-2020) estreou-se no universo da música neste dueto com o pai, na altura a celebrar 25 anos de profissão. Quando era mais pequena acompanhava-o muitas vezes na estrada, nas suas digressões. Desde tenra idade que percebeu o peso de um apelido sonante, com tudo o que o mesmo pode trazer de aprazível ou de menos bom.
Foi em França, na cidade medieval de Dourdan, Essonne – para onde o pai, natural de Pampilhosa da Serra havia emigrado – que nasceu, tal como os irmãos Mickael (1986) e David (1991). Veio para Portugal com meses e por isso sem memória deste passado, o qual fazia questão de recordar com carinho nas viagens de regresso ali.
A família Carreira esteve sempre debaixo dos holofotes e Sara nunca conheceu outro cenário que não esse. O pai foi acompanhado de perto durante anos até hoje, em Portugal e lá fora, sobretudo pelas comunidades emigrantes no estrangeiro. Tony conseguiu a proeza de poucos, ao ter um público muito fiel, que o seguia para todo o lado, algo que Sara descreveu posteriormente numa entrevista como sendo "incrível, raro e muito bonito".
Mais tarde, seguiram-se as carreiras galopantes dos irmãos, que também dedicam as suas vidas à música. Primeiro Mickael e depois David, também eles com uma legião de fãs. Sara, que afirmava saber as canções da família de cor, manteve-se discreta durante esse tempo, com pequenas aparições muito pontuais.
Aliás, a discrição foi uma das características que manteve até à idade adulta. Muito doce e amorosa, humilde na forma de ser e de estar, dedicada aos amigos e à família, sonhadora e com uma voz angelical – é impossível encontrar mais unanimidade na caracterização que lhe é feita pela família, amigos ou mesmo pela comunicação social, especialmente agora que as homenagens se multiplicam.
Sara, por sua vez, era mais exigente consigo própria. Dizia que a ansiedade era um ritual que a acompanhava sempre, fosse numa entrevista casual ou num concerto de grandes dimensões. Procurava a perfeição no mundo à sua volta.
Afirmava-se igualmente tímida e por vezes até mesmo insegura. Os seus sonhos, porém, eram algo de que não abdicava. Da fase em que queria ser cabeleireira e hospedeira, já quase ninguém se lembra. É que a música foi sempre o derradeiro sonho.
Para o alcançar, colocou de lado o curso de Estudos de Cultura e Comunicação na Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa. Já antes havia tentado o curso de Estudos Asiáticos, pouco depois de ter frequentado o Liceu Francês. Não seria por aí.
Os pais não acharam a maior graça do mundo a esta decisão, por conhecerem de perto a instabilidade de uma vida dedicada à música. Aliás, a mãe Fernanda, com quem a jovem vivia atualmente depois da mediática separação do casal, sempre lhe disse que "o saber não ocupava lugar". Ainda assim, teve o apoio incondicional de todos na decisão de seguir o caminho da música. Um caminho que começou a trilhar com passos de bebé. Se tivesse dúvidas quanto às suas capacidades, não as tinha quanto às oportunidades que a vida lhe estava a dar. Acima de tudo, todos a descreviam como uma menina muito grata.
E era nesta fase que se encontrava a vida de Sara. A iniciar-se num percurso profissional muito seu, ao mesmo tempo que replicava a arte escolhida pela família. Havia dois anos que tinha decidido, finalmente, lançar-se na música a solo.
Nesta altura surgiu o seu primeiro single, "Vou ficar", um dos seus maiores sucessos até agora. Mais tarde, grava os temas "Para Não Chorar" e "Sentimento", todos pertencentes a um EP ao qual chamou "Metade", em novembro de 2019. Sara estava lançada. E nem uma quarentena forçada a parou: em abril deste ano apresentou "Sem Nínguem Saber".
As visualizações no Youtube chegaram aos milhões. Aliás, toda a sua presença nas redes sociais estava a crescer a passos largos: com 220 mil seguidores no Instagram era frequentemente requisitada para campanhas publicitárias.
A sua página online nessa rede social era muito "a sua casa". Aqui, eram frequentes as demonstrações de amor à família, como o post do dia dos irmãos onde partilhou fotografias antigas com Mickael e David ironizando "amo-vos menos quando não vos suporto"; ou com a mãe, enquanto assistiam à primeira dobragem no cinema, no filme Branca de Neve: "O que me deixa mais feliz no mundo é ver as pessoas à minha volta felizes (...)" escrevera.
Também já havia conquistado o público no programa televisivo A Máscara, apresentado por João Manzarra, na SIC. Foi ao longo dessas semanas que sentiu necessidade de explorar géneros musicais diferentes, apesar de as baladas serem a sua praia – uma romântica assumida. Quando vestiu a "pantera", ninguém sabia que era ela, à exceção da mãe e da produção. Já quando o pai a identificou, Sara negou, sem sucesso.
A jovem gostava de se aventurar em projetos completamente diferentes: "eu sou tão nova, tenho a vida toda pela frente" disse numa das entrevistas que deu, disponível no Youtube. No entanto, tinha a plena consciência que "só vivemos uma vez".
Em 2018, um dos momentos que mais a terão marcado: nas celebrações dos 30 anos de carreira de Tony, o pai conseguiu juntar os três filhos em palco. O Altice Arena, uma vez mais. Sem dúvida, uma das casas de música e espetáculos com mais significado para a família Carreira, Sara inclusive.
O pai, apesar de contido, nunca escondeu o orgulho que sentia pela filha. Não obstante a separação, fazia questão de lhe ligar diariamente e de estar com ela muitas vezes. Uma dessas ocasiões foi filmada há pouco tempo. No seu 21.º aniversário, a 21 de outubro deste ano, encontravam-se os dois na praia quando surgiu um avião com a mensagem "Parabéns mon poussin. Je t’aime" ("Parabéns minha garota. Amo-te").
Ironia das ironias, a celebração do seu aniversário com os amigos, muito devido à COVID-19, foi no dia anterior à sua morte. Sexta-feira, 4 de dezembro, a cantora Bárbara Bandeira partilhou nas redes sociais um vídeo da jovem a soprar as velas, num restaurante em Lisboa.
Sara Carreira acabara de lançar uma marca de roupa com a estilista portuense Micaela Oliveira, o que a levou à sua última viagem. Assim, no sábado seguinte, o dia que lhe tirou a vida, regressava do Porto, com o namorado Ivo Lucas – apesar de nunca terem confirmado a relação. Com a mala do carro repleta de peças de roupa, envolveram-se num aparatoso acidente na autoestrada do Norte entre os nós de Santarém e do Cartaxo. Dois feridos ligeiros, um ferido grave, um morto. Sara.
A Máxima despede-se de Sara Carreira com carinho, manifestando todo o apoio possível à família Carreira e amigos próximos, respeitando a sua privacidade neste momento de dor intensa.