Violência contra as mulheres: Batem forte, fortemente… E amor não é certamente
As mulheres continuam a ser as vítimas de violência exercida por homens. No dia 25 de novembro assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Ainda é necessário isto? Sim. E muito. Saiba porquê.

"Eu tive, muitas vezes, situações em que as mulheres ficaram fechadas em casa enquanto os agressores saíam, desligavam o quadro da eletricidade, tiravam os fusíveis e levavam o telefone. Elas ficavam sem nada. Eu tive, também, várias situações em que indivíduos punham farinha na entrada da porta, deixavam a sua pegada e iam-se embora. E espalhavam [a farinha] numa grande área para as mulheres não poderem sair de casa. Elas ficavam sem eletricidade – e também sem luz – para não terem acesso à televisão. Ficavam sem telefone. Ficavam sem nada." Quem nos relata estes factos é Elisabete Brasil, diretora executiva para a Violência de Género na UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta). A crueza da simplicidade que se reflete nas palavras de quem convive e apoia vítimas de violência, há mais de duas décadas, desengana quem pensa que estas situações pertencem ao passado. Pelo contrário. A violência contra as mulheres continua bem ativa e, por vezes, mais próxima do que poderíamos imaginar. No dia 25 de novembro assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres e são muitas as mulheres que já sentiram na pele a traição da dor na intimidade da casa e da família. Mas o medo e a vergonha continuam a ter uma presença forte e até determinante no momento controverso que vivemos, em que a sociedade ocidental nunca esteve tão mobilizada para a violência de género. Contudo, ela parece continuar a existir como dantes. E será possível que esteja a aumentar? Tentemos responder à pergunta. Leia ainda dois testemunhos de mulheres vítimas de violência Testemunhos de violência doméstica.
A Lei n.º 7/2000

Na Associação de Apoio à Vítima (APAV), Daniel Cotrim, psicólogo, assessor técnico da direção daquela associação e supervisor das Casas de Abrigo, explicou à Máxima que é importante distinguir a violência contra as mulheres da violência doméstica, pois apesar de a segunda ser a mais conhecida, não é a única. Existem várias formas de violência contra as mulheres sobre as quais ainda não há muito trabalho feito, como, por exemplo, o assédio sexual, o assédio em contexto de trabalho, a violação, a importunação e a perseguição como crimes de género. Em Portugal, desde 27 de maio de 2000 que a lei n.º 7/2000 decreta que a violência doméstica é crime público, ou seja, não está dependente de queixa da vítima, pode ser feita através de denúncia ou o conhecimento do crime para o Ministério Público promover o processo. O representante da APAV diz que as queixas têm aumentado "porque as pessoas estão mais informadas e já não estamos no período de obscurantismo de há 15 ou 20 anos". Contudo, Daniel Cotrim acrescenta que "a violência contra as mulheres é uma forma de violência normalizada, banalizada e desculpada até socialmente porque os próprios pilares da sociedade ocidental estão assentes numa ideia de que a mulher tem muito menos poder do que os homens". E conclui: "Temos de trabalhar as questões dos estereótipos."
Uma das provas de que a essência da violência contra as mulheres reside nas bases da nossa sociedade está patente nos estudos da Universidade Nova de Lisboa com que Elisabete Brasil iniciou a conversa connosco. "O primeiro estudo [conduzido pelo professor Manuel Lourenço] surgiu em 1995, antes do primeiro quadro de políticas públicas nesta matéria [que chegaria em 1999]. Esse estudo revelava que, em Portugal, uma em cada três mulheres era vítima de violência nas relações de intimidade." Em 2007, num segundo e amplo estudo, intitulado Violência e Género – Inquérito Nacional sobre a Violência Exercida contra Mulheres e Homens (conduzido pelo professor Manuel Lisboa), foi, pela primeira vez, contemplada a violência contra os homens e a conclusão foi, explica Elisabete Brasil, que eles "são mais vítimas de violência genérica do que as mulheres". E acrescenta: "Porém, o espaço de vitimação deles é o espaço público, a rua, e quem os vitima são outros homens. O espaço de vitimação das mulheres é a casa, a intimidade." Contudo, o que mais preocupou a responsável da UMAR foi o facto de a percentagem de vitimação das mulheres permanecer a mesma. Quase 20 anos após as primeiras políticas públicas é preciso perceber por que razão ainda não se sentem mudanças maiores e as mulheres continuam a sofrer os mesmos crimes.
Dos 16 aos 93 anos

Anualmente, a UMAR encomenda, a um meio universitário, um estudo sobre violência no namoro e o mais recente revela que um quarto das relações de namoro são violentas. Há muitas jovens que se sujeitam a atos de violência porque estão dispostas a agradar aos namorados, a aceitar serem controladas e até a compreender o ciúme. A informação, apesar de ser abundante, não é suficiente para mudar a forma de pensar e até a violência de que são vítimas que pode não ser percecionada como tal. Por outro lado, a omnipresença do telemóvel e a presença nas redes sociais podem transformar-se de meios de socialização em objetos de controlo. A adolescência sempre foi uma fase do desenvolvimento pessoal, digamos, muito especial. A transição da infância para a idade adulta impõe desafios e dúvidas que já todos experimentámos por sabermos quão complexa pode ser a gestão da vida social, sobretudo quando é condicionada pelo medo. A informação, a "conta-gotas", que as adolescentes passam aos pais deixa muitas vezes de fora o namoro e a convivência entre o grupo de pares abrange sempre o terror da exclusão. O que leva, geralmente, a muitos tabus para poucas soluções.
Daniel Cotrim, da APAV, explica que "a violência é sempre produto de alguém que acredita que é, alegadamente, mais forte do que outro que acredita que é, alegadamente, mais fraco". E adianta: "Tudo isto vai beber aos nossos preconceitos e cultura. Somos educados num pensamento de que a mulher tem muito pouco valor e que não pode ter poder porque não o sabe usar. Em quase todas as histórias infantis, as mulheres que têm poder são más (madrastas ou bruxas), as boazinhas são as lavadeiras de roupa. No fim, aparece um pateta de um homem que dá um beijinho (sem consentimento)." É verdade que todos aprendemos com o que vemos fazer seja com a família em casa, com os amigos ou com os programas de entretenimento, como na televisão. Se as histórias infantis estão recheadas de mensagens, também a publicidade é um bom exemplo de reflexo dos costumes do seu próprio tempo. Elisabete Brasil, da UMAR, referiu que numa mesma semana recebeu na organização a que pertence uma mulher de 93 anos vítima de violência doméstica e uma jovem de 16, vítima de violência no namoro. Contudo, salienta que é perto dos 30 anos de idade que reside a maioria dos casos. Isto significa que as mulheres falam e acabam com as relações abusivas cada vez mais cedo. A violência contra as mulheres é complexa e, além de assumir várias formas, é totalmente transversal na sociedade, não escolhendo idade, cor de pele, religião ou estrato social.
Violação – Crime e Castigo

Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), de 2017, a violência doméstica contra cônjuges ou análogos diminuiu de 2016 para 2017, passando de 22.773 para 22.599 participações. Revela que 80% das vítimas são mulheres e que 78% das mesmas têm mais de 25 anos. Em 2017, dos 29.711 inquéritos que foram dados por findados resultaram 4.465 acusações, 20.470 arquivamentos e 4.776 por outros motivos, ou seja, menos de um sexto dos inquéritos resultou numa acusação ao agressor. No entanto, ressaltam os números que dizem respeito às violações e que registam um aumento, passando de 335 participações, em 2016, para 408, em 2017, e sendo a violação o único crime violento a aumentar. A Máxima dedicou uma grande investigação a este tema e o artigo Violação – Crime e Castigo, publicado em março de 1993, valeu à autora, a então jornalista Helena Matos, e à nossa revista o maior prémio de jornalismo nacional. Parece que mais de 25 anos volvidos, esta violenta forma de agressão, que é universal e que tem como principais vítimas as mulheres, continua a ser uma ameaça. Em junho de 2018, um acórdão do Tribunal da Relação do Porto declarou "sedução mútua" uma violação, ocorrida há três anos, perpetrada por dois funcionários de um bar a uma jovem inconsciente. Em abril do ano passado, uma sentença em Espanha também causou indignação. Um grupo de cinco homens (com idades entre os 27 e 29 anos), conhecido como La Manada, violou uma rapariga de 18 e a Justiça entendeu que por ela não ter resistido não havia agressão sexual, mas sim abuso. A sociedade que é civilizada está atenta a estes casos, revolta-se e manifesta-se, as redes sociais incendeiam-se e os casos são amplamente discutidos. Mas e depois?
Tempo e justiça
O combate à violência doméstica é um tema assíduo nas agendas políticas, mas ainda falta dar semelhante relevância a todas as outras formas de violência de género. A Convenção de Istambul foi adotada na capital turca pelo Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, a 11 de maio de 2011. Portugal aprovou a convenção na Assembleia da República em dezembro de 2012 e foi o primeiro Estado-membro da União Europeia a ratificá-la. Esta convenção tem por finalidade proteger as mulheres de todos os tipos de violência, prevenir e instaurar o procedimento penal e eliminar todas as formas de violência e discriminação contra mulheres, bem como a cooperação internacional.

Mas apesar das recomendações da convenção, o ritmo de trabalho varia entre países. Segundo os especialistas, a lei portuguesa é boa, no contexto da Europa, mas o percurso da justiça é longo e tem muitas paragens. Quando há um alerta é a vítima que sai de casa, que foge, se esconde e deixa tudo para trás, que tem de passar pelo constrangimento de contar a sua história vezes sem conta e provar que é uma vítima e que merece recuperar a vida que lhe estava a ser negada. É preciso trabalhar para melhorar o sistema que está montado para que não haja uma vitimização ainda maior sobre as vítimas e para que não sejam estas as principais prejudicadas, com vidas em fuga e isoladas do seu contexto social, principalmente quando há crianças envolvidas.
O trabalho das organizações da sociedade civil (como as duas referidas neste texto, ente tantas outras) revela-se fundamental para fazer funcionar o sistema, seja ajudando as vítimas em casos reais ou na prevenção e sensibilização para evitar que as formas de violência se perpetuem. Para este efeito é também fundamental uma leitura sobre casos passados. Quem trabalha com as vítimas alerta para a importância das decisões jurídicas como mensagens no que toca à prevenção geral (para a sociedade) e à prevenção específica (para os autores do crime), assim como uma "mão mais pesada" contra os agressores refletiria uma maior intolerância sobre estes crimes.
As mulheres podem sofrer durante longos períodos de tempo até ganharem coragem para falar e os sentimentos de culpa, vergonha e até o facto de não se reconhecer que o que está a acontecer é violência têm um peso fundamental e difícil de ultrapassar. Como explica Daniel Cotrim, "nunca se deve perguntar a uma vítima ‘anda há 20 anos a levar tareia porque é que só agora é que decidiu falar?’ É uma culpa tremenda". E acrescenta: "Estamos a falar de traumas. Aqui lidamos com mulheres vítimas de violações em criança e de repente dá um filme ou uma reportagem sobre uma violação e aquela noite é passada a sonhar com o abuso sexual que sofreu por parte do pai durante anos a fio." Contudo, é importante referir que o sentimento que prevalece é de crença no sistema e na reabilitação.

A indignação assume a forma de hashtag
O movimento #MeToo celebrou, no início de outubro, dois anos de existência e marcou o que parece ser, até agora, o início de um novo tempo na indústria do entretenimento e na luta das mulheres contra os diferentes tipos de agressão de género. O todo-poderoso produtor Harvey Weinstein foi erradicado do meio profissional e colocado diante da Justiça, a passadeira vermelha dos Globos de Ouro foi manchada de negro e a sucessão de rostos conhecidos com uma história negra para contar não parou desde então. O jornal The New York Times deu a conhecer a história ao mundo e a revista Time carimbou-a como revolucionária, elegendo "as quebradoras do silêncio" como Persons of the Year 2017 em dezembro desse mesmo ano. A mesma revista fez, recentemente, uma capa ilustrada com Christine Blasey Ford, a professora de Psicologia que acusou o juiz Brett Kavanaugh, nomeado pelo Presidente Trump para o Supremo Tribunal, de a ter agredido sexualmente nos tempos de liceu. Apesar desta questão ter dividido a América e de os depoimentos de ambos terem atravessado várias fronteiras, Kavanaugh conseguiu os votos necessários no Senado para chegar ao posto para o qual estava nomeado. Mas mais uma vez, depois de uma primeira voz ter contado a sua história, outras se seguiram. Será que os movimentos como #MeToo e #TimesUp são benéficos para a violência e para a desigualdade de género ou podem revelar-se nocivos? Segundo Elisabete Brasil, "muitas mulheres julgavam-se sozinhas e quando ouviram que outras mulheres, e até mulheres que eram figuras públicas, eram agredidas, ‘saíram da casca’". Daniel Cotrim destaca que "ao longo dos anos estamos todos mais intolerantes, mas falta-nos ação." E salienta: "Estes movimentos são muito importantes porque desocultam problemas importantes. No caso do Movimento #MeToo, este teve a mais-valia de desocultar um problema de que todos falávamos, sobretudo as organizações, até porque lidamos com ele muitas vezes, e que é a questão do assédio e do assédio sexual."
"Uma bofetada é uma morte anunciada." Esta é, provavelmente, a frase mais curta da longa conversa com Elisabete Brasil. O Observatório das Mulheres Assassinadas, da UMAR, confirma que até ao início de outubro deste ano já tinham sido assassinadas 21 mulheres (femicídios), estando, na altura em que escrevemos este artigo, ainda seis assassínios por confirmar. Mas existe esperança para acabar com a violência física contra as mulheres. Enquanto este texto era escrito foi anunciada a entrega do Prémio Nobel da Paz. Coincidência ou sinal do destino, o Comité Nobel Norueguês decidiu atribuir a distinção de 2018 a Denis Mukwege e a Nadia Murad "pelo seu esforço para acabar com o uso de violência sexual como arma de guerra e de conflito armado". O médico, da República Democrática do Congo, tem dedicado a sua carreira às mulheres e crianças do sexo feminino vítimas de violência e a jovem yazidi que foi escrava sexual do Estado Islâmico [a Máxima publicou uma entrevista com Murad no número de dezembro de 2017] já tiveram a vida em risco pelas causas que defendem e são os rostos de mais um nobre gesto para a sensibilização contra os crimes sexuais maioritariamente exercidos sobre mulheres em diferentes partes do mundo. Porque os direitos das mulheres são, afinal, direitos humanos.

Artigo originalmente publicado na edição de novembro de 2018 da Máxima

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