O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Francisca Van Dunem: “Antes do 25 de Abril, as mulheres não podiam exercer magistratura”

A trajetória de vida de Francisca Van Dunem levou-a a buscar a Justiça. Depois, a ser o rosto da Justiça. É nele que nos fixamos: os seus olhos mostram-nos, vincados por alguma melancolia, um rasgo de luz e de esperança.

Foto: Pedro Ferreira
06 de novembro de 2018 às 07:10 Rita Silva Avelar
Há quase três anos, a nomeação de Francisca Van Dunem como ministra da Justiça é mais uma prova que Portugal está no caminho certo no que respeita à maior dignificação da Mulher e à igualdade de género, sobretudo nos planos da política e dos cargos governativos, ressaltando-se o facto de Van Dunem ser a primeira mulher não caucasiana a exercer num Governo português. Francisca Van Dunem nasceu em Luanda, a 5 de novembro de 1955, onde conheceu uma infância feliz, mas tragicamente lhe foi tirada a "rede de segurança" e a vida pô-la à prova. Aos 17 anos rumou sozinha para a Europa, um continente bem diferente do seu, para se licenciar em Direito na Universidade de Lisboa, algo que, para à época, era pouco habitual numa mulher. 
Francisca Van Dunem é uma mulher discreta, dotada de uma voz serena e firme, e com uma presença que denota um evidente (e natural) toque de classe. A par disso, faz salientar uma educação perfeita e uma timidez que rapidamente se afasta assim que a desafiamos a falar da sua vida e dos temas que domina, designadamente a Justiça, os Direitos Humanos e, sempre, a Humanidade. Convidada para ocupar o cargo de ministra da Justiça, desde 26 de novembro de 2015, Van Dunem é magistrada há quase quarenta anos.

Cresceu feliz em Angola, mas cedo conheceu os conflitos bélicos que assolaram o país do seu coração nos anos que se seguiram. Com um pé em Luanda e outro em Lisboa, regressou a casa, a meio dos estudos, que foram interrompidos pelo golpe de estado que restituiu a Liberdade em 25 Abril de 1974 e pelo consequente vislumbre do fim da guerra colonial e pela inevitável esperança na independência de Angola e de outras antigas colónias portuguesas. Depois do trágico Maio de 1977 – a tentativa de golpe liderada por Nito Alves que acabou com a morte e o desaparecimento de milhares de angolanos, entre os quais o irmão de Francisca, José Van Dunem, e da mulher, Sita Valles, e cujo filho, Che, foi trazido para Portugal pelos pais de Francisca –, a nossa ministra da Justiça escolheu a capital portuguesa, por fim, para dedicar-se à Justiça.

Entre outros cargos, representou Portugal no Comité Europeu para os Problemas Criminais, do Conselho da Europa, e no Observatório Europeu para os Fenómenos Criminais do Racismo e da Xenofobia, da União Europeia. Assessorou, durante nove anos, o Procurador-Geral da República. Hoje representa, com clarividência e com determinação, a liderança feminina da Justiça. Uma vitória para Francisca Van Dunem. E para todos.

Passou a sua infância em Luanda. Quando é que despertou em si o sentido de justiça?
Eu comecei a pensar muito cedo porque o ambiente em que vivia impelia isso. Eu nasci em 1955 e vivi a minha primeira infância numa vila piscatória. A maior parte das pessoas tem ideias da infância ou muito felizes ou muito infelizes e eu estou no primeiro caso. A perceção que eu tenho desse tempo é a de uma imagem completamente idílica, do Paraíso. Em 1961, houve vários conflitos em Angola, pois foi o início da luta pela independência, e foi um período extremamente difícil, de direito nulo, em que o sentido de vingança se sobrepunha a uma lógica de Direito e de Justiça. É típico desses conflitos violentos, mas a verdade é que eu estava lá e vivi o epicentro desse conflito.
O que mais a marcou nos anos que se seguiram?
Eu fui percecionando a forma como iam desaparecendo amigos dos meus pais e familiares nossos. As pessoas iam sendo presas. Eu fui crescendo e fiz a minha juventude e a minha adolescência nesse ambiente. Era um ambiente em que as pessoas tinham dificuldade em estruturar a sua própria defesa e que não conseguiam uma defesa condigna em tribunal, e que, em muitos casos, nem havia julgamento. Recordo-me de enviarem as pessoas, por longo tempo, para campos de trabalho… E a vivência em ambientes de justiça extremos, num certo sentido, desperta em nós um certo sentido de normalização, de uma norma que igualize um ambiente de igualdade e de imparcialidade. Isso despertou em mim a ideia de que na Justiça eu encontraria o equilíbrio que, naquela altura, faltava à sociedade.
Quando se mudou para Portugal para estudar Direito, aos 17 anos, como é que se recorda de percecionar o nosso país?
No meu tempo, o curso de Direito era uma tradição familiar e a maior parte das pessoas que ia para faculdades de Direito perseguia ideais de Justiça. Nessa altura, a sociedade [portuguesa] estava muito condicionada pelo medo e, numa outra dimensão, muito atávica na perspetiva dos costumes. Houve [em mim] todo um choque associado à mudança da geografia, de África para a Europa (…), e foi também uma passagem dramática por ser [uma transição] do ensino secundário para a universidade. Foi uma mudança de ambiente e de método. Geraram em mim algum desconforto, mas apesar de tudo eu tinha cá dois irmãos (…) que me ajudaram a não "naufragar".
O que é que o ano da independência em Angola, durante o qual se mudou para junto da sua família, lhe ensinou e como a mudou?
Regressei em 1975. Fui para Angola num período difícil em que as comunicações telefónicas eram extremamente reduzidas e em que a ideia de perigo e de risco era iminente. Eu fiz aquilo que a minha consciência me impelia e que era juntar-me à família e aos amigos. Eu tinha 20 anos… Quem com essa idade não quer participar do renascer de um país? Uma das coisas que aprendi, desse tempo, foi a ter vergonha de ter medo porque vi pessoas a ter uma coragem imensa.
As mulheres na Justiça ou noutras áreas não estão, ainda, em pé de igualdade com os homens, evidentemente. Como sente a mutação ou não dessa disparidade em Portugal e no mundo?
Essa disparidade tem de ser quebrada. Há uma representação feminina muito grande em muitas profissões, mas quando se fala da ascensão em termos de carreira percebe-se que essa representatividade deixa de ter a expressão que corresponderia à normalidade. Apesar de tudo, fez-se um caminho importante. Os dados de 2016 apontavam no sentido de cerca de 58% dos advogados serem mulheres e de 59% corresponder a uma quase percentagem semelhante para juízes. Esses números, no que respeita às profissões jurídicas, são muito expressivos e importantes, tanto mais quando há mais de 40 anos, antes do 25 de Abril, as mulheres não podiam exercer magistratura, só advocacia. O Direito não era uma profissão de mulheres. Eu não posso deixar de reconhecer que a expressão percentual de mulheres em cargos de direção não é suficiente.
Sente que falar sobre minorias étnicas e raciais, em Portugal, ainda é tabu? Como perceciona isso, nas esferas da Justiça e na política?
É um tema abordado com alguma dificuldade, sobretudo porque há apriorísticos. Por um lado, as pessoas associam as minorias étnicas a espaços de discriminação e recusam-se a admitir que há discriminação. Essa associação faz com que exista menos abertura e menos espaço de debate sobre essas matérias. Eu acho que a diversidade é que faz a força das sociedades e a grande diversidade da sociedade portuguesa faz com que ela seja o que é, com toda a sua pujança. É preciso que sejamos capazes de, como sociedade, pensar nessas realidades, perceber o que se passa relativamente aos grupos minoritários e trabalhar no sentido da integração desses grupos e da sua identificação com o espaço social em que vivem. Recordo-me que quando tomei posse, várias pessoas, africanas, vinham falar comigo na rua e a sensação que eu tinha era que elas me diziam: "Afinal, nós também contamos." Significa que elas tinham para si a perceção de que não contavam, que não existiam na sociedade.
Este Governo é o mais inclusivo que já tivemos?
É, seguramente, o mais inclusivo que Portugal teve em toda a sua História. É preciso fazer mais relativamente a grupos que vivem nas franjas da sociedade ou que estão marginalizados, sobretudo de jovens que não encontram o seu espaço, que não conseguem encontrar um plano social. Os fenómenos de não-integração, a prazo, geram sempre turbulência e conflito. É uma questão de justiça porque as pessoas fazem parte da sociedade. Mas a sociedade também deve fazer um esforço para que elas se sintam parte dela. 
Quais são os temas que mais carecem de atenção e de alterações na Justiça, em Portugal?
Eu diria que há uma dimensão que é importante: a prisional. Os espaços de reclusão… As pessoas reclusas estão privadas de liberdade, mas não estão privadas de dignidade. É do ponto de vista do interesse da sociedade que essas pessoas encontrem no espaço de reclusão um momento de reconciliação e que nesse espaço sejam capacitadas para um regresso à vida, em sociedade, e para encontrar o lugar, o tempo e as ferramentas que lhes permitam fazer uma escolha diferente daquela que as levou à cadeia.
Da violência à exploração infantil, da crise dos refugiados à fome, enfim, os problemas no mundo, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, são realidades ainda longe de estar erradicadas. A Humanidade está cada vez mais consciente destes problemas? E os portugueses?
Nós estamos mais conscientes. Eu não sei é se temos algum consenso ou algum debate em torno das respostas. E essa, para mim, é a questão fundamental. Esses problemas estão-nos próximos porque são trazidos todos os dias pelas televisões, pelas rádios, pelos jornais e pelas redes sociais. Mais importante do que saber, é debater e ter consenso social sobre as formas de os interpretar e depois agir. Este ano celebra-se o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje, mais do que nunca, precisamos de revisitar e de ler com a proximidade e a exigência que os tempos exigem, as questões dos direitos humanos, da dignidade humana, à intangibilidade de um conjunto de direitos associados à natureza humana. Quantas mulheres, homens e crianças a única coisa que trazem [durante a fuga] é a roupa que têm no corpo e a coragem para fugir da morte? E que atravessam o oceano em buscar de um lugar de paz. É preciso olhar para tudo com sentido de humanidade.
Quais foram as grandes mudanças na Justiça ao longo destes 30 anos?
Se pensarmos de 1988 a 2018 e do ponto de vista da perceção, os cidadãos tinham mais confiança no sistema de justiça. Houve uma erosão do sistema ao longo destes 30 anos. O seu acesso tornou-se universal com uma grande massificação que trouxe também alguns problemas ainda por resolver. Ao sistema judicial aponta-se a morosidade. Quando me perguntam o que era preciso legislar, a minha resposta é sempre esta: as leis não resolvem tudo. Portugal é, provavelmente, o país que tem das melhores leis do mundo, mas a questão é sempre a aplicação das mesmas. Precisamos de conhecer e de aplicar o que temos. Mais do que legislar mais é preciso organizar melhor e modernizar as organizações de justiça e abri-las no sentido da sua compreensão.
Que melhor conselho daria a uma mulher?
O conselho que eu daria a qualquer ser humano seria de que o fundamental na nossa vida é a integridade e a coerência. Lembro-me de, certa vez, ver uma entrevista a Catherine Deneuve em que alguém lhe apontava que falava muito de causas, de direitos humanos, de igualdade e de questões dessa natureza, mas a verdade é que vive uma vida boa e num espaço intocado. E ela respondeu uma coisa que, na altura, me deixou um pouco perplexa, mas que depois me fez pensar que tinha razão. O que ela disse foi: "Eu porto-me bem." O importante, de facto, é que cada um de nós se porte bem e que tenhamos um sentido de decência, de humanidade e de justiça nas relações connosco próprios, mas sobretudo com os outros.
Foto: Pedro Ferreira
As Mais Lidas