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Emma Becker. A minha história na prostituição. “No bordel não via homens, mas seres humanos"

A escritora francesa Emma Becker trabalhou durante dois anos e meio num bordel em Berlim, onde a prostituição é legal e conta com proteção social. A Casa é um livro desconcertante, que aproxima o leitor de uma realidade que a sociedade tenta camuflar. Em França, como em Portugal, a prostituição é tolerada sem se enquadrar num quadro legal. Poderá esta publicação abrir o diálogo?

Foto: Getty Images
28 de maio de 2021 às 17:46 Tiago Manaia

"Podes ligar agora? Desculpa, estava a lavar a loiça, não ouvi o telefone" — escreve num SMS Emma Becker (Paris, 1988). Está em Berlim, é o início de maio e a pandemia não abrandou, vive-se ainda um confinamento apertado. Temos de falar ao telefone, a Internet está saturada, as comunicações caem. Emma Becker demorou quatro anos a escrever o seu terceiro romance, A Casa. Quando o publicou em França, no verão de 2019, tinha-se distanciado do bordel onde trabalhou durante dois anos e meio. Foi mãe entretanto, a criança está em casa, não muito longe, interrompe a certa altura a nossa conversa, o jogo com que brinca deixou de funcionar. "As creches de Berlim fecharam também por causa da pandemia" — diz-nos. 

Em França, o livro vendeu mais de 40 mil exemplares, um verdadeiro sucesso de crítica, ganhou três prémios literários e conseguiu enfurecer grupos feministas. As inúmeras referências à literatura francesa do século XIX, a Émile Zola e aos bordéis dessa época, levaram alguns a dizer que a prostituição era transformada neste relato em algo de aprazível. As histórias de Emma Becker não são sempre agradáveis, mas a maioria deixa o leitor em suspenso e curioso. A escrita é clássica e envolve. A certa altura, Emma conta como um cliente espia uma das suas colegas obcecado, segue-a na rua. E ao observá-la com outro homem, percebe que a prostituta por quem se apaixonou nunca gostou dele, lê isso nos gestos que a prostituta tem agora com o outro. Imagens como estas são preciosas. Emma é direta, diz as palavras de forma crua, sente-se isso ao longo dos 40 minutos em que fala connosco. Abandona-se à conversa, diz mesmo que podemos voltar a ligar se tivermos dúvidas. A vertigem com que mergulhou nesta aventura é fascinante.

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Máxima: Queria começar por falar do #MeToo que rebentou há mais ou menos um mês em Portugal, e abordar a ideia de consentimento. Como tens vivido este movimento que começou em 2017? Parece-me que na altura estavas a escrever o teu romance A Casa.

Emma Becker: Sim estava a escrever o meu livro, sentia-me um pouco num mundo paralelo: numa bolha (pausa). De certa forma, há muito que as ‘p***s’ lutam para que se reconheça a noção de consentimento no seu trabalho. Lutam para provar que a prostituição não é uma violação na sua essência. Há quem diga que o consentimento de uma ‘p***’ não existe porque ela é paga. Mas a um empregado de mesa, tens direito de lhe cuspir para cima só porque pagas o serviço? O consentimento [para estas trabalhadoras] sempre foi essencial, o mundo do sexo não esperou pelo #MeToo para pôr o consentimento no centro da problemática. Depois, como mulher e escritora, tenho-me regozijado com o que tem acontecido, com este surto de verdade. Toda a gente sabia… Sabemos bem como funcionam os homens e o poder, pode ser que assim alguns deles tenham medo e digam:  "Se me portar melhor, não tenho razões para ter medo."

Podemos dizer que as relações com o poder estão a ser postas em causa. Mas o #MeToo não é só uma história de mulheres, há também homens a serem assediados.

Sim claro, quando falo em homens, falo de um homem cisgénero ou do sistema patriarcal. Falo de homens enquanto grupo a quem foi dado todo esse poder. Eles agora estão a ser vítimas de um sistema instalado por eles.

No livro escreves: "O problema nesta profissão é que, ao fim de algum tempo, o teu corpo deixa de saber distinguir quando finges ou sentes alguma coisa". É um momento em que falas de uma automatização do ato sexual. Por causa disso, penso na ideia de te meteres em perigo para criar. Faço um paralelo com a tua escrita, depois de teres escrito dois romances (não publicados em Portugal) entre os 20 e os 30 anos, sentiste a necessidade de te meteres em perigo para sentir na criação? Fazes sempre isso quando escreves?

Faço isso em tudo, tenho tendência a querer ter experiências para poder falar delas depois. Gosto desse estado de adrenalina de não saber para onde vou. Gosto de descobrir um mundo que me interessa e não conheço. A escrita é outra coisa, o lugar do escritor é algo que ultrapassa o trabalho, e eu tenho tendência a observar tudo o que faço, com o objetivo de escrever sobre isso mais tarde. Não obrigatoriamente por achar tudo interessante, é mais porque quero compreender. E por isso escrevo sobre o que é ser uma mulher, há muitas coisas que não percebo nesse estado e que quero perceber, é meter-me em perigo? Talvez. É o perigo que preciso de sentir para entender o mundo no qual vivo. Para perceber o que é afinal esta caixa na qual me enfiaram no dia em que nasci, a caixa onde meteram as mulheres. Tento também perceber os homens e a forma como se agitam relativamente a nós. Diz-se que são os homens a governar o mundo, só que a experiência que tenho quotidianamente ou mesmo quando trabalhei no bordel, é surpreendente. A capacidade de resiliência deles é muito diferente da das mulheres. Como as mulheres foram oprimidas desde o começo da Humanidade, têm uma capacidade de rebote ou empatia que os homens não conhecem, simplesmente por não terem sido contrariados.

 

Foto: Getty Images

No livro perguntas: "É possível confiar num homem que está apaixonado?". É esta a questão central da tua experiência enquanto mulher que escreveu este livro?

Sim, é uma das componentes do livro. É verdade que se pensa que eles vão ao bordel para dar uma "queca". Só que a realidade mostra que os homens precisam, como qualquer pessoa, de substância e sentido. Não interessa muito aos homens pagar só uma mulher para a f**** e irem-se embora. Por uma questão de narcisismo, o homem tem de deixar um rasto indelével à mulher. A passagem deles tem de ter mudado qualquer coisa, não é só uma troca monetária. Portanto eles têm tendência a apaixonar-se. Porque no final de tudo, uma ‘p***’ é só uma mulher. Mesmo sendo paga, é só uma mulher que é gentil. Ao contrário do que se diz, acho que os homens são governados pelas emoções. Nos impulsos e em tudo o que não é refletido. Portanto a questão é mais, "podemos confiar nos homens?". Quando eu trabalhava no bordel, tinha tendência a olhar para os homens e mulheres como seres humanos. Sem ódio nem desconfiança. Também aconteceu, não vou dizer que não. Mas retrospetivamente, pareceu-me ter visto seres humanos que se queriam aproximar uns dos outros para se perceberem. Bom… Mas para as mulheres que trabalhavam comigo sempre foi claro, elas estavam ali para ganhar a vida delas.

Dizes no livro que quando um cliente homem se apaixona, é quase uma maldição para vocês que trabalham no bordel, queres explicar?

Sim, ela fez bem o trabalho dela como comerciante, como uma padeira que se lembra do nome de cada cliente que aparece de manhã para comprar pão. Ser uma boa ‘p***’, é ser uma boa comerciante. É conseguir fazer com que o homem esqueça que pagou aquele serviço.

E portanto é uma maldição quando o cliente começa a aparecer repetidamente no bordel sem perceber isso?

Sim, porque não é agradável ter de explicar a alguém que só és simpática porque estás a ser paga. É óbvio que seria ótimo poder agir assim sem te questionarem muito, mas quando tens clientes que se apaixonam e se tornam pegajosos e não percebem de todo que são como qualquer outro cliente, é enervante. Os homens são crianças grandes, não diferenciam uma mulher que é paga das outras.  Tive clientes que durante os dois anos e meio em que trabalhei vinham sempre ver-me, ao fim desse tempo esquecem-se que são clientes. Na cabeça deles tornaram-se outra coisa.

Foto: Pascal Flammarion

Tu trabalhaste num primeiro bordel, antes de estares na Maison, onde denuncias quase um comportamento mafioso, chegas a ter medo que te levem para outro país. Denuncias esse lado assustador. Como percebeste que era preciso ter sempre ideia de transação na tua cabeça? Alguém te ensinou?

Percebi quando trabalhei na Maison, não nesse primeiro bordel. Fui vendo as minhas colegas e vi como trabalhavam. É verdade que quando dás privilégios a um cliente, ele pede-te sempre mais. E portanto tens de ter isso claro, não impede que sejas simpática e charmosa, ainda que guardes esse lado profissional.  Eu não fui logo com essa mentalidade para lá, era o trabalho que tinha escolhido para ganhar a minha vida, mas o facto de ter escolhido esta experiência denunciava qualquer coisa na minha relação com os homens. Havia algo que queria curar ou perceber em mim, e sentia que se fosse mais simpática do que as outras, talvez desse mais ao cliente.  Como se eu fosse a p*** simpática que ia apagar a frieza de todas as outras. Isso eram coisas minhas.

Senti nos relatos do livro um desejo bissexual, que tentavas abafar, como se não fosse permitido. Senti que desejaste as tuas colegas de trabalho. Porque era a bissexualidade proibida no bordel?

Isso são coisas da minha personalidade, mais uma vez. Eu acho que sempre preferi as mulheres, só que de certa forma o mundo no qual cresci fez-me perceber que era melhor gostar de homens. Acho que sou bissexual sim, no entanto o desejo de uma mulher por outra não é obrigatoriamente um indicador de bissexualidade. É possível, admirar, desejar e achar bonita uma mulher, sem que seja sexual. Digo isso no livro. Desejo-as, acho-as bonitas, é como estar a admirar uma obra de arte.

A Virginie Despentes diz no livro Teoria King Kong (Orfeu Negro) que se prostituiu, e que uma rapariga que se feminiza deixa toda a gente encantada. É como se, no fundo, para seduzir um cliente só é preciso compreender a feminilidade?

Sim, é só preciso brincar com os códigos. Não tenho a certeza de que os homens saibam o que lhes dá tusa. Por isso há uma diferença no livro, entre o momento em que estou no primeiro bordel, onde os homens vão entre amigos, e onde têm tendência a escolher raparigas que correspondem ao critério de beleza mais clássicos — raparigas magras com peitos grandes. Já na Maison, eles vinham sozinhos, portanto queriam estar com raparigas mais fortes, ou mais velhas . Os homens não sabem realmente o que lhes dá tusa, e é normal. Não nos excitamos todos pelas mesmas coisas. A feminilidade é uma linguagem, um teatro e qualquer pessoa pode dominar esses códigos. Aliás… É normal que não haja uma formação para te tornares ‘p***’ porque tudo o que fazemos e nos é ensinado desde que somos pequenas é isso. Dizem-te como tens de posar quando te tiram uma fotografia, ou como te deves maquilhar. É uma educação para nos tornarmos ‘p***s’. Por isso, digo não haver uma diferença fundamental entre ser uma ‘p***’ e uma mulher. Uma ‘p***’ faz o trabalho de ser mulher. O trabalho de ser mulher como o homem o imaginou.

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O bordel La Maison fica entre uma igreja e uma creche. Parece quase uma provocação este detalhe do livro. Mas estes detalhes são reais. Em França as pessoas ficaram chocadas com isto, houve literalmente manifestações contra ti quando te foi atribuído o prémio literário France Culture-Télérama. O que desagradou a essas feministas?

A mim aborrece-me que elas se consideram feministas, porque eu própria sou feminista. Sou feminista interseccional. Chateia-as porque acham que não podemos vender o sexo, ou que não se pode pagar para ter o consentimento de alguém. E elas questionam o consentimento - como envolve o corpo feminino há de imediato um problema. Não tenho a certeza que essas feministas diriam a mesma coisa se fossem homens a fazê-lo desta forma. Acho isto tudo uma grande hipocrisia. A prostituição existe, e aquilo que temos de fazer é arranjar maneira destas miúdas poderem trabalhar com condições humanas. Decentes. Como qualquer trabalhador.

É um pouco a burguesia que quer proibir a prostituição, sentes isso? Alguma imprensa francesa dizia que a tua experiência enquanto escritora tinha algo de muito burguês. Como se tivesses largado os teus privilégios para ires viver uma experiência intensa…

Isso é classismo. São pessoas que misturam tudo e acham que sou burguesa por ser uma miúda que leu muito e é escritora. A minha família não é rica, sou de classe média, e fiz esta experiência porque precisava de dinheiro. Não nos vamos iludir, quando cheguei a Berlim podia ter sido florista ou empregada de mesa, é um trabalho que faço regularmente. Eu queria experimentar outra coisa, e essa experiência foi condicionada pela vontade que tinha de ganhar dinheiro. E pensei: "Tenta fazer uma coisa que te interesse". Este foi o primeiro trabalho na minha vida, que me pagava as contas e que me dava realmente vontade de me levantar de manhã. Gostava de estar com as raparigas, e não sabia o que ia acontecer ao longo do dia. E sim, pode ser uma problemática burguesa dizer, "temos de abolir a prostituição". Que soluções temos a propor a todas essas mulheres que se prostituem? Que temos de melhor a propor para que possam ganhar tanto dinheiro?

Achas que estamos perante um novo puritanismo?

Sim, claro. Elas querem que as ‘p***s’ fiquem para sempre na sombra dos párias. Que existam sem ousar ter direitos. Portanto têm-me acusado de glamourizar a prostituição. Houve também um grupo de feministas radicais em França que escreveu um artigo a dizer que eu tinha sido abusada na minha infância e por isso achava a prostituição algo capaz de me dar poder. (pausa) Eu nunca fui abusada na minha infância, nunca me aconteceu nada parecido. Mas para que a minha história entre numa narrativa que lhes convenha, elas têm de caluniar. Não querem admitir que a prostituição não é sempre o que nos descrevem nos livros, não é sempre uma história de tráfico de seres humanos. Há uma percentagem muito relevante de trabalhadores sexuais que fazem isso de maneira livre, refletida e consentida.

Todos os capítulos do livro começam com o título de uma música, há muito rock… The Velvet Underground ou Pixies e uma voz trágica, a Nina Simone. 

Há só uma parte em que não falas de música, nos capítulos em que trabalhas no primeiro bordel, onde não gostas de estar…

Sim sentia-me mal e queria que se sentisse isso no livro. A música nesse momento parou, era uma coisa séria. Aquele sítio era sujo e deixou-me más recordações. As outras músicas ouvia enquanto estava a trabalhar, fazia playlists para me sentir mais à vontade nos momentos em que estava com clientes.

No teu processo artístico de escrita, estabeleceste algum limite? Escrevias todos os dias?

Não, nunca escrevo todos os dias. Escrevo quando tenho inspiração e vontade. Foi um livro que demorei muito tempo a escrever. Comecei com muita confiança, a achar que ia ser incrível, e aos poucos percebi que não era tão simples. Não queria cair nos clichés, e tive momentos em que duvidei, sabia que o livro ia existir, mas tive momentos em que tive medo. Queria honrar o tema que estava a tratar. E ainda que a prostituição seja legal em Berlim, tu continuas a sentir-te à margem da sociedade. 

Foto: Getty Images

Ou seja?

Não é fácil dizer ao teu gestor no banco que és prostituta. Não é fácil alugar uma casa e dizer que és trabalhador sexual. É um trabalho em que o estigma está presente, isso para mim foi difícil, e impediu-me por vezes de escrever. Isso e coisas como saber que os meus pais iam ler o livro. Dúvidas clássicas. 

Durante a pandemia muitos jovens abriram contas no Only Fans, uma rede social onde se despem em troca de dinheiro ou remuneração. Lembrei-me desta nova realidade enquanto preparava esta entrevista. O que achas disto? Como vês esta geração que vende o seu erotismo com desembaraço?

O princípio é divertido. Acho bem que toda a gente possa ser um potencial objeto de desejo. E não interessa o teu físico ou a tua orientação sexual. É bonito saber que todos podem encontrar o que querem na Internet. Isto pode até servir como uma tomada de consciência — não é preciso ser a rapariga que pousa numa revista para ter um potencial erótico. Depois há pessoas que podem vir dizer que, para se ser desejado não é preciso receber dinheiro em troca ou ser-se pago. É verdade. Mas vivemos numa sociedade capitalista, não é? Em vez de culpar as ‘p****’, talvez seja melhor perguntar porque vivemos numa sociedade que nos motiva a ganhar sempre mais dinheiro?

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