Entrevista

Camila Sosa Villada, escritora: “Em vez de ter conhecido o Messi ou a Madonna, eu conheci um grupo de travestis.”

Um grupo de travestis salva um bebé abandonado num parque. É o ponto de partida de As Malditas, romance genial sobre o desejo, os sonhos e a luta pela sobrevivência quando se enfrenta o preconceito de toda a sociedade. Entrevista exclusiva à escritora argentina que não para de conquistar leitores.

Camila Sosa Villada
Camila Sosa Villada Foto: Catalina Bartolomé
27 de janeiro de 2023 Tiago Manaia

A magia rara de uma chamada zoom chegou à minha sala. No inverno claro de Lisboa, consigo ver o vestido de alças finas que Camila tem vestido, olho para o seu rosto atento (que relaxa com frequência à medida que solta gargalhadas) observo-lhe a beleza numa manhã de calor na Argentina. No outro hemisfério está um dia abrasador – "juro, é mesmo insuportável", diz-me, a certa altura.

Camila Sosa Villada tem a força das atrizes que habitam os filmes de autor da Nova Vaga francesa, e isso já o tinha sentido enquanto preparava esta entrevista. Quando se olha para a sua imagem num ecrã não se consegue tirar os olhos dela. Talvez esteja a fumar um charro enquanto fala (não pode ser um cigarro, porque o tabaco não se apaga e se acende tantas vezes) e, aos poucos, através do computador, o verão chega a minha casa. 

Na luz que entra pelas suas janelas consigo projetar a esperança dos dias quentes, a escritora tem viajado sem parar, quer agora viver o quotidiano de Córdoba, cidade onde se passa a ação de As Malditas, o seu primeiro romance. 

Um bebé abandonado é encontrado por um grupo de mulheres trans que se prostituem num parque. Como fazer para o salvar quando toda a cidade as persegue e maltrata? As pessoas dividem-se entre o desejo e o ódio à vida daquelas mulheres que estão condenadas a existir só de noite, aos poucos vamos sabendo de que é feito o passado delas. 

'As Malditas' na edição publicada em Portugal pela BCF Editores, tradução de Helena Pitta.
'As Malditas' na edição publicada em Portugal pela BCF Editores, tradução de Helena Pitta. Foto: D.R

As Malditas é um livro perfeito, no qual nada está a mais nem a menos. Somos assim levados para um mundo onírico povoado de crenças e mitos, será esta a única maneira de combater a ignorância do mundo? De guardar a esperança quando tudo desaba desde a primeira idade? 

A realidade que Camila nos conta sobre o que se passa nas ruas é arrepiante. Na introdução da edição portuguesa do livro, a escritora afirma querer desenterrar a palavra travesti, para ela uma mulher trans é um termo demasiado polido, quase cirúrgico. Ao dizer travesti convoca todo um passado que assustou o mundo durante décadas, "pela sua fealdade e pobreza". Camila Sosa Villada celebra por estes dias 41 anos. 

Fala sem pudor de como a vida na prostituição lhe pagou a universidade, como começou a escrever poemas, a fazer teatro e televisão, até conhecer um editor que a desafiou a contar as histórias que a habitavam. Nunca mais parou. Os seus contos mais recentes (Soy una Tonta Por Quererte / inéditos em Portugal) foram vendidos e recebidos com furor na última FLIP no Brasil, ao lado da Nobel da literatura Annie Ernaux. Esta é a primeira entrevista que dá para Portugal. 

Com a frescura veranil que Camila me traz através do computador, não consigo esquecer a elegância com que ajeita o vestido de alças ao longo de toda a conversa. 

Começaste a tua carreira nos palcos de teatro, o que te deu o teu trabalho de atriz ou a tua voz no palco, achas que isso alimentou algo na tua escrita?

Sabes que sim? Primeiro fiquei com a consciência de que mesmo que as pessoas me estejam a ler, elas têm de estar a ouvir-me. Não sei se isso é uma impotência como escritora, ou uma carência para escrever. Mas a verdade é que quero que tenham a sensação de me escutar enquanto me lêem. Como atriz, sempre que faço uma personagem, seja no teatro ou na televisão, tento ter todas as respostas possíveis sobre a minha personagem, sejam ela feitas pelo público ou pelo encenador. E isso acabou por se colar à minha escrita. 

"Quero que tenham a sensação de me escutar enquanto me lêem." Foto: Fabiana Casco

Tens feito viagens promocionais gigantescas pelo mundo. O que aconteceu ao silêncio necessário para a tua escrita? Ou talvez não precises de silêncio - gostas do caos?

Adoro o caos (risos). Do que não gosto é da falta de tempo. Mas o caos não significa que não escreva. A escrita acontece independentemente de uma máquina de escrever, de um computador, de uma folha de papel ou uma lapiseira. A escrita acontece na mesma apesar de eu não estar sempre a ouvir palavras, ou a passá-las da mão para um suporte. Explico: estou a escrever na minha cabeça, inclusivamente agora, neste momento, é como uma máquina que não para de escrever.

No teu livro As Malditas há uma frase que mexeu comigo, dizes: "as travestis todos os dias têm acesso a um inferno de que ninguém fala". Era importante para ti trazer a voz destas travestis que conheceste? Suponho que algumas são mais reais que outras, mas era importante trazer para o mundo literário a voz das travestis que conheceste na rua?

Não, não era, porque eu escrevo sempre sem nenhum propósito específico, sem nenhuma ambição. Há algumas exceções, claro. Eu queria que houvesse uma espécie de religião ou mística meio flutuante no livro. Isso eu sabia que queria fazer. Quando comecei a escrever as primeiras páginas quis que o livro tivesse uma aproximação espiritual diferente, fazendo sincretismo com o catolicismo, mitos populares, lendas e invenções minhas. 

Pareceu-me que isso podia chegar a ser uma bela imagem. 

Mas a minha ambição não era fazer aquilo que me perguntas agora. Parece-me que a linguagem das travestis e a experiência das travestis é intransferível para a linguagem. A experiência das travestis latino-americana não tem palavras. 

Repara que os filósofos mais prestigiados que estudam o género, penso no Paul B.Preciado ou na Judith Butler, ou tantos outros europeus e estrangeiros sobretudo...Eles não conseguem classificar o mistério que aconteceu com o travestismo na América Latina. Data de épocas pré-coloniais, vem ainda antes dos conquistadores que vieram destruir a nossa civilização. Por isso eu nunca poderia ser ambiciosa ao ponto de querer explicar, transferir ou escrever algo a respeito desse mistério. Eu peguei em factos e inventei um pouco à volta de toda uma série de circunstâncias que me serviram para usar verbos. Nada mais que isso. O que aconteceu foi que muitíssimos leitores tomaram isso como uma espécie de consolo tonto (vou chamar-lhe assim), dizem: "ah estamos a descobrir um universo que ignoramos." Mas não é verdade que o ignoravam. E quando os ativismos (os ativismos trans ou trans feministas, ou feministas em geral) agarram no livro, isso já não corresponde à minha língua. Eu não tinha previsto nada assim, mas agora que isto acontece vejo-me na obrigação de esclarecer, só que não sou capaz de o fazer.

"Há toda uma nova geração de mulheres trans, de pessoas não-binárias que existem graças às travestis latino-americanas." Foto: Fabiana Casco

O que senti no teu livro é que havia a necessidade de escrever a linguagem que se fala nas ruas de Córdoba... O calão. E há uma beleza nisso, até no trabalho de tradução, agora que o teu livro é publicado em inúmeras línguas, tenta-se também explicar o significado de várias expressões usadas na rua... Mas entendo que o teu trabalho não tem nada a ver com os escritos do filósofo Preciado ou da Judith Buttler.

Porque eu escrevo ficção. Eu sou o objeto de estudo desses filósofos e desses académicos... e o mistério maior que eles podem vislumbrar somos nós, as travestis latino-americana de determinadas eras. 

E não é só próprio à Argentina, é algo que posso dizer que partilhamos com o resto da América-latina.

Em Portugal há uma cultura de travestis e transformistas que cantam playback e inspiram-se em canções da América latina. 

(Camila começa a rir)

Há um bar chamado Finalmente, em Lisboa, que está aberto todos os dias da semana, existe há mais de 40 anos. 

Penso haver uma dimensão da América latina que influenciou o resto do mundo no que toca o travestismo ou transformismo...

Sim, e sobretudo com a brevidade das nossas vidas. A brevidade com que passamos pelo mundo. E há o nosso empobrecimento. O empobrecimento das travestis na América latina é gerido pelo Estado, assim como é o Estado que gere a prostituição das travestis. O Estado é o proxeneta desta coisa toda. E o que está a favor deles é a nossa fealdade e a nossa pobreza, e isso os académicos não conseguem olhar de frente. Felizmente nós escapámos desse tipo de observação académica, mas pagamos as consequências disso. Há toda uma nova geração de mulheres trans, de pessoas não-binárias que existem graças às travestis latino-americanas. 

"Eu posso falar-te do que me contaram trans mais velhas que estão retiradas e são minhas amigas: Bem... Elas não podiam sair à rua." Foto: Fabiana Casco

Queria falar de algo triste, algo que é próprio à Argentina. Ouvi-te dizer numa entrevista que durante a ditadura (1963-1973) foi feito muito mal às travestis. Podes falar-me isso? Essa noção de que a ditadura silenciou os corpos travesti.

O silêncio ocorreu para as vítimas da ditadura, mas também para as vítimas da democracia. A ditadura, para as travestis, durou aproximadamente até 2012, data em que saiu a lei de identidade de género. Até esse momento nós, as travestis, cometíamos um delito por sair à rua vestidas como mulheres. Havia multas e autoridades policiais que nos proibiam de usar roupa de outro género. Eu posso falar-te do que me contaram trans mais velhas que estão retiradas e são minhas amigas: Bem... Elas não podiam sair à rua. Por isso para mim é tão importante o Arquivo da Memória Trans Argentina, um arquivo fotográfico que existe graças à María Belén Correa, uma travesti que vive na Alemanha. Esse Arquivo dá conta de coisas alucinantes. Por exemplo, as fotografias que foram tiradas dentro de casa ou em quartos de pensão são argentinas. As fotografias que tu vês nos parques ou a meio do dia, à noite em bares são na Europa. Porque aí podiam sair à rua. Aqui não se podia. Até ao dia de hoje, por causa disto tudo, é difícil contabilizar os assassinatos das travestis, mesmo em plena democracia com um governo progressista.

Imagina agora o que não foi na ditadura? E há muitas que ainda estão vivas, sabes? Há muitas que sobreviveram a isto, e não recebem uma única resposta do Estado depois de terem vivido tal perseguição. Não recebem porque as mais novas as estão a usurpar. As gerações mais novas sim tomam hormonas...operam-se, têm o apoio dos pais e estão acompanhadas. Têm estudos universitários, têm mais cota para o Estado... (pausa e lança um grito dramático, divertida) 

Bastaaaaa, vamos não falar mais disto. 

No livro As Malditas dizes que as travestis existem como um plural. Gosto desta ideia. Um grupo de mulheres poder viver quase como uma guerrilha... Onde existe luta e muita alegria também. Vi entrevistas tuas em que te emocionas até às lágrimas a falar de pessoas do teu passado. Tudo isto me parece muito vivo em ti, Camila. Nesta ficção, em que o trágico pode ser mágico, também

(Camila começa a rir-se)

"Eu recordo-me dessas primeiras noites com as travestis, lembro-me de ter alucinações." Foto: Catalina Bartolomé

É assim que vês o mundo, é desta forma que vives o quotidiano?

Bem, há meninos e pessoas que se recordam da primeira viagem que fizeram à Disney (solta uma gargalhada longa). Podem recordar o dia em que deram a mão ao Messi, ou recordam a vez em que viram a Madonna num concerto. Eu recordo-me dessas primeiras noites com as travestis, lembro-me de ter alucinações porque estava bêbada ou drogada (com pastilhas, cocaína ou com marijuana). Olhava para travestis que se comportavam de uma forma que nunca tinha visto na minha vida. Com uma força e com um humor, uma falta de respeito pela linguagem e pelos outros, uma falta de respeito pela noite e pela natureza, que me ficaram marcadas como memórias feitas a ferro quente. As travestis que observo agora provocam-me o mesmo... e não é por acaso que são mais velhas, têm entre 40 ou 60 anos. Em vez de ter conhecido o Messi ou a Madonna, eu conheci um grupo de travestis.

A noite é um tema recorrente na tua escrita, dizes no livro que a noite permite camuflar pequenos detalhes de pele por exemplo. Continuas a viver muito à noite?

Não, eu estou emburguesada agora (risos). Às dez da noite já estou na horizontal para acordar às 6 ou às 7 da manhã. Mas sim, sinto que à noite há uma fermentação de emoções, de intenções e de desejos que não acontecem de dia. Por exemplo, eu tenho muitos amantes, e alguns deles são casados. E não é que eles me propõem que nos encontremos de dia? Ou querem ver-me de manhã. (Muda para um tom de voz agudo). Mas eu de manhã tomo o pequeno-almoço, leio os jornais, vejo e-mails ou faço cocó. Ou querem ver-me à hora da sesta quando estão 40 graus. No entanto, à noite o sexo torna-se muito mais interessante. Porque podes beber ou drogar-te, podes pôr música, e é tudo melhor porque está menos calor. Por isso sim, à noite acontecem coisas melhores para escrever.

Falas de abandono. É isso?

Exato.

Referiste-te à religião e aos mitos no começo da entrevista. Na edição portuguesa d’As Malditas há uma fotografia da fotógrafa americana Nan Goldin tirada no santuário de Fátima.  Queres dizer algo sobre o trabalho tão especial que a Nan Goldin desenvolve há décadas?

Amo a Nan Goldin com toda a minha alma. E ela gosta muito das fotografias do Arquivo da Memória Trans. Penso que [isso] está muito próximo do que ela fazia na forma como fotografava as travestis e também... (faz uma longa pausa). Admiro a coragem de ter fotografado situações que ninguém quis ver, como moribundos de sida, ou uma mulher espancada pelo seu companheiro. Isso é admirável, pessoas como ela são necessárias.

Tu metes muitas "energias" na tua conta Instagram? Lês poemas sozinha, em quartos de hotel, durante as viagens de apresentação dos teus livros... 

(Grita) E que posso fazer se estou fechada sem nada para fazer? (risos)

"À noite acontecem coisas melhores para escrever." Foto: Laura Zanotti

Quando eras mais nova, para simular que tinhas peito, usavas bocados de colchão. Ouvi-te também contar que mal recebeste as primeiras royalties das vendas d’As Malditas meteste implantes novos. E no momento em que recuperavas da operação, tiveste a notícia de que o teu livro ganhou o Prémio Sor Juana Inés de la Cruz (Prémio que reconhece a excelência do trabalho literário de mulheres em idioma espanhol) 

(grita com alegria) Está a fazer agora dois anos que meti os implantes (risos).

Há aqui um fio condutor, a celebração do corpo feminino?

Não, não é feminino. (pausa) Não sei como dizer-te... As mamas são como o título de um romance, como um bom título.... É isso, é um bom título. As mamas são como o final de algo, que foi a escrita de uma vida e a escrita de uma imagem que tinha de mim própria, e de ter sido capaz de desejar-me quando estou em frente ao espelho. A dizer, ainda por cima, que sou a pessoa que mais desejo no mundo. E esse livro está escrito. Em 2020, quando fiz a operação às mamas meti só um título. (pausa) E repara, no geral, eu escolho bem os meus títulos. 

A escritora Joan Didon tem também bons títulos, andas fascinada com a escrita dela? É a simplicidade e trivialidade que te fascina? 

É a gramática. É raro que queira ser parecida a alguém. Posso admirar muita gente, mas não quero ser parecida com ninguém. A Didion é uma mulher tão elegante e tão lúcida na forma como é capaz escrever sobre a sua passagem pelo mundo. Sobre o que o mundo lhe fez, e a toda a sua geração. Obviamente que tenho vontade de escrever assim tão bem e de ter essa gramática. (solta uma longa gargalhada).

Queria perguntar-te algo mais pessoal. A tua família são os teus amigos? São as pessoas que te acompanharam nestes últimos anos? E como tem sido a reação da cidade onde cresceste ao teu sucesso? 

Tenho o meu pai e a minha mãe, eles são a minha família e respondem a todos os itens que se devem cumprir para se ser uma família. É um território perigoso para mim, de muitíssimo amor. O que sinto pelos meus pais e pela sua história é como uma paixão muito grande. A história de amor deles e a história deles como trabalhadores argentinos (pausa)...Tenho família, não sou órfã... (muda para um tom teatral). Mas nunca, jamais na minha vida, chamaria família aos meus amigos e às pessoas que se cruzaram comigo. São outra coisa melhor que uma família. A essa família podes traí-la e podem acontecer coisas que não acontecem com a outra família. Gosto mais dos amigos, claro.

"Em vez de ter conhecido o Messi ou a Madonna, eu conheci um grupo de travestis." Foto: Laura Zanotti

O que te faz sentir viva?

(Gargalhada longa) Nada... Acabo de ter um período em que trabalhei muito e não tinha vontade de fazer nada. Suponho que é o que se sente quando se trabalha num escritório o dia todo. Entretanto soube quem vai ser o meu co-protagonista no filme que vou rodar em 2023.

Quem é?  

(Grita de forma teatral) A minha vida tomou forma de galã, a vida tomou a forma de um homem bonito, de homem que faz tudo bem, de homem famoso e… voltei a sentir uma pulsão na minha existência.

Ainda por cima é um filme feito a partir de uma novela minha e eu escrevi o guião, sou a protagonista, e sou a produtora. (risos) 

Chama-se "Tese Sobre uma Domesticação", e é a história de uma atriz travesti muito famosa, algo desta dimensão só poderá acontecer daqui a 5 ou 10 anos, talvez. É uma travesti, como uma Juliette Binoche argentina, que está casada e tem um filho. O trabalho corre muito bem, só que ela não está feliz com nada. 

Então é isso que vais fazer?

Sim, e o filme tem muita tensão erótica, por isso vou estar à vontade para me despir sem que me chateiem. 

(O filme vai ser coproduzido pelos atores Mexicanos Gael García Bernal e Diego Luna, não conseguimos confirmar qual deles vai contracenar com Camila).

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