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Crónica Dating em Lisboa. "Vocês andaram pouquíssimo tempo para ele ter uma escova de dentes em tua casa"

"Com o tardar das horas, dei-lhe o meu número e disse que depois combinávamos algo, mas o Pedro seguiu-me até à saída, entrou pelo táxi adentro e acabou à porta de minha casa a implorar para que o deixasse subir."

Notting Hill (1999).
Notting Hill (1999). Foto: IMDB
07 de abril de 2023 Maria Pestana

"Não podes dar uma escova de dentes a um gajo com quem só andas a pinar", disse um dos meus colegas. Estávamos na nossa hora de almoço e eu debatia ponto por ponto tudo o que se tinha passado nas últimas semanas até ficar familiarizada com o conceito de ghosting. "Vocês andaram pouquíssimo tempo para ele ter uma escova de dentes em tua casa. Os gajos fritam com essas coisas", explicavam-me, mas eu continuava sem perceber. "Foi só uma escova de dentes. Ele ia dormir lá, perguntei se queria. Ele aceitou. Qual é o mal? Não há coisa pior do que não lavar os dentes", defendia eu. "Vocês pinam de manhã sem lavar os dentes? Isso é nojento!".

Encostei-me ao bar e fiz sinal para pedir uma bebida. Estava no "velho" Viking, ainda na morada antiga, na Rua Cor-de-Rosa, no Cais do Sodré, em Lisboa. Era quinta-feira, e o bar estava completamente cheio. Enquanto espero oiço um "olá!". Olho para o lado e um tipo mais ou menos bem parecido estava a meter-se comigo. "Olá!", respondi de volta e, do nada, sou beijada. Empurrei-o. "Pelo menos pergunta-me o nome!", disse, irritada. Ele riu-se, perguntou o meu nome e apresentou-se de seguida. Eu não estava nem aí, aliás, estava prestes a virar costas quando ele diz: "Cheguei ontem do Malawi. Estive lá com os Médicos Sem Fronteiras". Onze palavras que mudaram o rumo daquela que seria só mais uma noite: desarmaram-me. "Merda", pensei, "agora estou curiosa".

Sentei-me ao balcão com o Pedro durante um bom par de horas. Perdi o norte aos meus amigos que, entretanto, terão ido embora e entreguei-me à conversa. O Pedro era arquiteto, tinha estado numa missão no Malawi, em África, durante três meses, a ajudar a construir centros hospitalares para o rastreio do Cancro do Colo do Útero. Como seria de esperar, a família era abastada, o Pedro era a chamada ovelha-negra, o único familiar que era politicamente de esquerda, que achava ridículo tratarem-se por "você" e se irritava de cada vez que apresentava um amigo ao pai e este respondia com: "E o menino é filho de quem?". O Pedro tinha aquele charme de quem estava meio perdido, à procura do sentido para a vida, enquanto estourava a mesada em cerveja e missões de voluntariado. Eu estava aborrecida o suficiente com a minha vida para achar isso um máximo – apesar de não ter mesada que me salvasse.

Com o tardar das horas, dei-lhe o meu número e disse que depois combinávamos algo, mas o Pedro seguiu-me até à saída, entrou pelo táxi adentro e acabou à porta de minha casa a implorar para que o deixasse subir. Vi o cartão de cidadão, o site da empresa de arquitetura e todas as redes sociais antes de o deixar entrar em minha casa. Já deitados na cama, assegurei que não teríamos sexo. Afinal, tinha acabado de o conhecer, mas depois de meia hora em conchinha, a sentir o seu pénis ereto encostado a mim enquanto me acariciava o peito, cedi. "Nunca mais o vou ver",  pensei, "que se lixe!".

Na verdade, acabei por viver duas maravilhosas semanas com o Pedro. Ia trabalhar e quando regressava ele vinha ter a minha casa. Encomendávamos comida, introduziu-me às músicas de Mayra Andrade e víamos filmes inspiradores como O Rapaz que Prendeu o Vento. Ele contava-me tudo sobre a missão, como se divertiam com os locais à noite, dançavam e bebiam cerveja, como a comida o enjoava, os banhos eram quase sempre de água fria e as mulheres utilizavam perucas incríveis que o levaram a pensar serem naturais quando, na verdade, por baixo tinham o cabelo rapado. Queríamos mudar o mundo, ser livres, revolucionários. Também fazíamos sexo, muito sexo, e com um nível de encaixe e erotismo incrível para duas pessoas que tinham acabado de se conhecer. Algumas noites, o Pedro ficava comigo e dormíamos abraçados até de manhã. Tudo parecia fácil e perfeito, até o Pedro desaparecer. O que foi ainda mais suspeito dado que aconteceu depois de lhe enviar uma fotografia provocadora – quem é que não reage a um conteúdo desse tipo enviado por uma miúda como eu? A lata!

Na minha cabeça uma série de questões começaram a levantar-se. "Terá sido, de facto, porque lhe dei uma escova de dentes? Assustei-o?", como defendiam os meus colegas de trabalho. "Será que fiz algo de errado?", "Poderei ter dito alguma coisa que lhe desagradou?". E quando não existiam mais cenários possíveis equacionei que teria morrido ou tido algum acidente. "Às tantas aconteceu-lhe algo, faleceu ou assim", pensava, era a única justificação possível para desaparecer sem deixar rasto. Desesperada, mas enfurecida por saber que diante de todas as possibilidades o ghosting seria a mais credível, decidi enviar-lhe uma mensagem que dizia simplesmente: "Cansas-te rápido".  Alguns dias depois obtive a minha resposta. O Pedro tinha a oportunidade de partir numa nova missão, havia a possibilidade de conseguir um posto no Congo, estava a começar as provas para partir novamente, desta vez, por seis meses. Não fazia sentido continuar a ver-me, iriamos apaixonar-nos e só sofreríamos mais tarde.

Nesse momento, enquanto olhava para o telemóvel e lia as suas mensagens percebi que estava disposta a largar tudo por ele, na verdade, por uma aventura com ele. Podia simplesmente desistir da minha carreira, dos sonhos e objetivos que achava ter, e ir. Despojada de tudo e pronta a recomeçar num qualquer local. Bastava que me tivesse convidado e eu teria ido, sem hesitar. Esse foi também o momento em que percebi que devia consultar uma psicóloga. Por que razão estava disposta a deixar tudo por uma pessoa com a qual vivi uma brevíssima relação? Quão insatisfeita com a minha vida estava para permitir que aquele encontro passageiro mexesse assim comigo? O Pedro nunca chegou a ir para o Congo. Não passou no teste de francês. Procurou-me alguns meses mais tarde, queria estar comigo novamente, tinha saudades minhas, mas eu não quis saber. Aquele encontro já tinha cumprido com o seu propósito. Dali a um ano, quem embarcava num avião rumo a África era eu, mas sozinha.
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