Crónica Dating em Lisboa

"Fui a Alfama ver o Benfica e reencontrei um fadista que deixou tudo por mim"

'A Canção de Uma Vida' (2014).
'A Canção de Uma Vida' (2014). Foto: D.R
02 de fevereiro de 2023 Maria Pestana

O Glorioso entrava em campo e eu entrava em Alfama somente com o propósito de beber umas imperiais e comer uns petiscos. Aliás, se me perguntassem contra quem jogava o Benfica nesse dia eu nem saberia responder. No entanto, ali estava, sentada à mesa numa bela tasca com vista privilegiada para a televisão e para a porta quando tenho um dos maiores flashbacks da minha vida: um tipo que conhecera anos antes entra, passa por mim, compra uma cerveja e sai. Dou dois toques a quem está à minha direita, "Meu, tu nem imaginas!". Dúvidas houvesse olho em frente e lá está ele, sentado na rua, sobrancelhas serradas, com todo o ar de quem se questiona: "Vi um fantasma ou era mesmo ela, inusitadamente, ali a ver a bola?". 

Seis anos antes, tive um jantar com colegas de trabalho que acabou com a grupeta habitual de resistentes a invadir o Jamaica. E, seis anos antes, também eu o vira entrar assim pela porta, com o mesmo sorriso e jeito alegre, cabelo desgrenhado e viola às costas. "Não me escapas", pensei, e não escapou. Horas depois perguntava-me: "E se te levasse para um hotel agora, ias?". "Nunca na vida!". Durante seis anos, fui a chacota da empresa por ter sacado o tipo da "viola" que era estudante e fadista e durante todos estes anos me rira da história. Afinal, o convite para o hotel tinha nexo. O rapaz tinha namorada e vivia com ela, eu teria sido a desgraça da sua vida. 

Uns dias depois, perguntou-me se queria ir vê-lo tocar ao Bairro Alto. Disse que não. "Então vem ter comigo ao Príncipe Real antes, por favor, quero falar contigo". Concordei em ir e dar-lhe a oportunidade de se explicar, mas a verdade é que me intrigava. O sorriso, sempre o sorriso, que me pairava na memória e depois aquela coisa típica e bairrista. O estudante de Direito que nas horas livres tocava viola em casas de fado e acompanhava fadistas. Quão caricato era isso? Quão boémio e lisboeta? Quão autêntico? Acho que parte de mim ansiava por alguma experiência diferente e, para todos os efeitos, ali estava ela - com o senão de vir com uma namorada às costas.  

Nesse café desabafou sobre como a relação estava nas últimas, mas era uma situação complexa, precisava de tempo para sair de casa e gerir as coisas. A namorada era fadista, estava prestes a lançar-se, ele acompanhava-a, era má altura. "Mas não consigo parar de pensar em ti! Queria que tivesses dito que sim, queria que tivesses vindo comigo para um sítio qualquer. Quero estar contigo! Não consigo parar de pensar em ti". Do outro lado da mesa, eu abanava a cabeça e dizia "Nem pensar!", mas de alguma forma sentia-me tentada. "Não me respondas já, diz-me algo amanhã". No dia seguinte, como combinado, liguei-lhe: "Ora bem, ou sais de casa e resolves tudo ou nada feito. Não vou ter um caso contigo, não vou trair outra mulher e, acima de tudo, não vou ser a segunda. Sou e serei sempre a primeira". "Ok, tens razão. Vou resolver a minha vida e depois falamos", disse.

Desliguei o telefone e nunca mais pensei no assunto, até o assunto me telefonar dois meses depois. "Estou, Maria? Sou eu! Estás boa?". "Olá, desculpa, mas ‘eu’ quem?", tive de responder, completamente sem saber. "Então, o Francisco [nome fictício]. Combinámos que quando tivesse as minhas coisas resolvidas te ligava. Já saí de casa, estou em Xabregas. Estou em casa dos meus pais, por enquanto". "Ah…", respondi. "Por esta não contava", pensei. "Quando nos encontramos?". Menti, contei-lhe que nos entretantos conhecera uma pessoa, pedi-lhe que compreendesse, mas esteve dois meses sem me dar notícias, nunca me ocorreu que fosse verdadeiramente sair de casa. Do outro lado, ele defendia-se, dizia que tínhamos acordado, eu desculpava-me. "São coisas da vida. Acontecem", afirmava. Na verdade, achava aquilo tudo um disparate e estava certa de que a namorada o tivera posto na rua por alguma outra infidelidade. Ele tanto insistiu, com convites para isto e aquilo, "Mas vem ver-me, traz o teu namorado! Gostava de o conhecer", que acabei por confessar que não havia ninguém, mas que não tinha mais interesse em estar com ele. 

Passado todo este tempo, não tive a menor dúvida quando o vi entrar pela porta. O mesmo sorriso, o mesmo tom leviano, o mesmo cabelo desgrenhado. A viola às costas. Terá passado mais de vinte vezes por mim nessa noite, sempre de despercebida me fiz, até ao fatídico momento em que, saída da casa de banho, não tive como passar pelo balcão sem lhe pedir licença. Ele vira-se, olha e diz: "Eu acho que…". "Sim, sou eu! Como estás?", atalhei de imediato, ambos sabíamos quem éramos, mais valia irmos direitos ao assunto. "Confesso que quando te vi fui confirmar se ainda tinha o teu número, não tenho, mas sabia que eras tu. Estás exatamente igual". "Bom, tu também estás igual". Perguntou-me se ainda trabalhava no mesmo sítio. Apontei para a viola e perguntei se ainda tocava, acenou que sim e acrescentou rapidamente: "Mas, olha, já sou formado! Demorei quase 10 anos para acabar o curso, é verdade, mas agora tenho uma sociedade de advogados! Sou um tipo fino, só toco por gosto". Ri-me e pensei no lado caricato da situação. De repente, estava numa espécie de Canção de Lisboa, com o Vasco Santana a cantar sobre a razão de ser doutor e fadista. 

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