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“Fui empregada doméstica de uma família rica (…) e fiquei chocada com o que fiquei a saber”

Os empregados domésticos dos super-ricos muitas vezes sabem mais acerca dos seus clientes do que até mesmo as próprias famílias.

Foto: IMDB
08 de fevereiro de 2022 às 12:49 Luke Mintz/The Telegraph/Atlântico Press

Estava uma manhã especialmente húmida, no verão de 2010, quando Stephanie Land se encontrou pela primeira vez com a mulher que mais tarde viria a alcunhar de "Senhora dos Cigarros".

Em tempos uma escritora ambiciosa que sonhara frequentar a universidade, Land viu a vida a andar para trás ao tornar-se mãe solteira quando estava na casa dos 20 anos. Para conseguir pagar as contas aceitou uma posição como empregada doméstica no estado de Washington. Um emprego que significava muitas horas de trabalho árduo, a esfregar as cozinhas e as casas de banho da classe média-alta da América.

Mal falava com qualquer um dos seus clientes – alguns nem se davam ao trabalho de perguntar o seu nome. Ainda assim, ela acabava por ficar a conhecê-los intimamente. Land limpava os seus armários de medicamentos, limpava o pó às suas fotografias. Descobria as tragédias do seu passado, as suas dificuldades financeiras, as suas atribulações maritais.

Para quebrar a monotonia, imaginava intrincadas narrativas em torno de cada um deles. "Era uma forma de me entreter num emprego muito solitário e aborrecido", conta-me Land, de 43 anos, falando ao telefone a partir de sua casa, em Montana. "É óbvio que se começa a conjeturar acerca das pessoas que ali vivem – penso que isso faz parte da natureza humana. Começamos a conhecer os nossos clientes de uma forma que provavelmente as famílias deles não conhecem."

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Na sua cabeça, ela dava a cada um dos seus clientes uma alcunha própria: a "Casa Triste", a "Quinta", a "Casa do Chef". Mas ninguém a fascinou mais do que a "Senhora dos Cigarros", uma socialite de meia-idade que vivia junto a um campo de golfe com o seu marido magnata da construção civil. Tudo acerca da vida daquela mulher resplandecia com perfeição: o cabelo e maquilhagem eram "impecáveis e irrepreensíveis".

No piso térreo havia um fotografia dela junto a Tiger Woods: ela vestia uma camisa branca com calções a condizer, o uniforme da elite americana dos clubes de campo, a quem Land havia acabado por conhecer tão bem. Os móveis, na casa, eram elegantes, modernos e imaculados – tanto que Land se interrogava por que razão lhe pagavam para os limpar. O guarda-roupa da mulher era um casaco de caxemira bege comprido. Land não conseguiu resistir a experimentá-lo, algumas vezes: ela imaginava como seria viver ali, ocupar a vida daquela mulher.

Mas a mulher também guardava um segredo. Land começou a notar vestígios de cinza de cigarro pela casa fora e, certa vez, encontrou um cinzeiro escondido atrás do lava-loiças da cozinha. Tinha sido limpo e esfregado com algum vigor. Curiosamente, Land nunca tinha visto quaisquer cigarros – até um dia, em que ia a sair da casa pela garagem e reparou num frigorífico. Abriu-o. Escondida, lá bem no fundo, estava uma pilha de Virginia Slims, uma marca de cigarros de luxo. Land permitiu-se um sorriso de satisfação.

"Quase conseguia visualizá-la, com o queixo pousado na mão, esmagando um cigarro (…), depois erguendo-se, atirando o cabelo sobre o ombro e esvaziando o cinzeiro na garagem, antes de o limpar cuidadosamente", recorda Land nas suas memórias, Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother’s Will To Survive [trad. livre: Empregada: Trabalho Árduo, Salário Baixo e a Vontade de Uma Mãe de Sobreviver]. Não era o facto de fumar. Era o secretismo que me fascinava, a quantidade de energia que ela despendia para parecer perfeita e pura."

Publicado em 2019, o bestseller de Land expôs a realidade da vida enquanto empregada doméstica que era, a ganhar o equivalente a 7,36 euros à hora. E o livro deixou muitos leitores da classe média interrogando-se acerca do quanto, exactamente, é que os seus empregados de limpeza saberão a seu respeito. Ela recebeu mensagens de pessoas que empregam pessoal de limpeza, assombrados – e talvez um pouco enervados – pelos profundos conhecimentos que ela tinha apreendido da vida dos seus clientes.

Após manifestações de interesse de 10 produtoras, as memórias foram compradas para uma série da Netflix, Maid [Empregada], lançada no início deste mês: um relato ficcionado da vida de Land durante seis anos, ao longo de finais dos anos 2000 e inícios da década de 2010. A atriz americana Margaret Qualley (Era Uma Vez em… Hollywood) interpreta o papel baseado em Land. A mãe de Qualley na vida real, Andie MacDowell (Quatro Casamentos e Um Funeral, O Feitiço do Tempo), faz de sua mãe no ecrã.

Mais do que tudo, Land espera que a série ilumine a vida dos empregados domésticos – um grupo de que as pessoas dependem para o bom funcionamento das suas vidas quotidianas, mas acerca do qual muito frequentemente pouco sabem. E ela espera que o seu alcance se estenda até ao Reino Unido, onde há perto de um milhão de empregados de limpeza contratados. "Eu aprendi exatamente quão invisível é este emprego", diz ela. "Passa maioritariamente despercebido."

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Ao contrário da maior parte do pessoal de limpeza, Land cresceu na classe-média, numa família com dois filhos, numa cidade montanhosa do Alasca. Trabalhou num café no início dos seus 20 anos, mas sonhava em escrever livros. Ela recorda-se de folhear o New York Times à procura da secção da Crítica Literária, a caminho dos turnos no café, e de colecionar folhetos de programas de escrita criativa na Universidade de Montana. Mas uma série de acontecimentos imprevistos levaram-na a percorrer um caminho diferente.

Quando inesperadamente ficou grávida, a relação de Land com o namorado entrou em rotura. Ele queria que ela abortasse (Land recusou-se) e desatava as gritos com ela regularmente, chegando certa vez a abrir um buraco na porta com um murro. Ela deixou-o, levando o bebé consigo. Durante algum tempo foi uma sem-abrigo. Por fim, acabou por encontrar trabalho a fazer limpezas em Washington. Na sua entrevista de emprego, entregou um CV ao gerente da empresa de limpezas, que ficou a olhar para ela confuso.

Todas as manhãs, Land deixava o bebé no infantário, depois conduzia a sua carrinha Subaru desconjuntada para ir limpar casas na Ilha Camaro, um abastado enclave perto de Seattle. Era um trabalho penoso, que mais não seja por causa da sua escoliose, uma doença em que a coluna está torcida para um dos lados.

Mas depressa foi ficando fascinada pela vida interior das pessoas que a empregavam. Havia a "Casa Porno", por exemplo. Adornando as paredes, havia fotografias de um homem e mulher, casados, sorrindo lado a lado, vestindo camisolas compridas a condizer. Pouco depois de lá estar, ela reparou que eles pareciam ter começado a dormir em quartos separados.

Na mesa de cabeceira do homem, ela encontrou um frasco de lubrificante; por perto, uma gaveta aberta revelou uma pilha de revistas Hustler. "Embora eu nunca pudesse levar a mal que alguém visse revistas porno, já levaria a mal que as deixassem expostas de modo a que a rapariga da limpeza as visse", escreve Land no seu livro.

No quarto da mulher, Land viu uma pilha de romances baratos, ilustrados com homens de tronco, bastante musculados, beijando mulheres de longos cabelos. "Imaginava-os a dormirem em quartos separados (…), cada um criando fantasias com um parceiro diferente e, possivelmente, uma vida diferente."

Depois havia a "Casa Triste". Nela vivia um homem doente, dos seus 70 anos, que parecia ter perdido tanto a mulher, como o filho. Tinha as cinzas de ambos guardas em urnas na casa de banho e mantinha bugigangas da mulher no parapeito da janela. No quadro dos recados havia uma lista de coisas a fazer escritas numa letra feminina – presumivelmente a dela. "Ele tinha feito tudo certo – bom emprego, uma casa linda, casara-se com a mulher que amava e com ela havia viajado.

Mas apesar de tudo isto, ainda assim ele estava a morrer sozinho. [O emprego] tinha sido apenas uma coisa para eu pagar as minhas contas, mas agora dava a sensação de que o trabalho estava a deixar uma marca inesperada na minha vida (…). Perguntava-me o que os meus clientes fariam no final do dia. Onde se sentariam, o que comeriam. A minha vida havia-se tornado muito sossegada. Estas pessoas davam-me algo por que ansiar, pessoas por quem ter esperança."

A "Casa dos Palhaços" estava decorada com retratos tétricos de palhaços tristes, cujos olhos pareciam perseguir Land; na "Casa do Açambarcador", ela teve de selecionar uma bizarra montanha de roupas, pratos, mochilas e livros deixados ao desbarato pelo chão. Com um ar culpado, o dono descreveu a pilha como "o meu pequeno segredo".

Alguns clientes foram cruéis. Uma família, que vivia numa "casa enorme" no cimo de um caminho de acesso bastante íngreme, repreendeu-a depois de o seu carro ter vertido alguns pingos de óleo no seu asfalto. Depois disso, obrigavam-na a estacionar longe e a acartar os pesados produtos de limpeza pela encosta acima. Outros desconfiavam claramente dela, recusando-se a deixá-la sozinha em casa, não fosse ela roubar alguma coisa. Uma cliente deixava jóias caras à vista no seu quarto – Land não conseguia evitar a sensação de que se tratava de um "isco".

Mas outros demonstraram bondade. Ela fala com carinho acerca de um homem, Henry, que vivia com um par de Pastores Australianos. Certa sexta-feira, o Henry estava a planear cozinhar lagosta. Como forma de agradecimento, ele disse-lhe que ela podia levar para casa duas lagostas.

Mas mesmo interações agradáveis como esta tinham uma subcorrente de constrangimento. Era difícil escapar a um sentimento de injustiça, diz ela, ao sentimento de que ela e o seu cliente tinham acabado em camadas diferentes da sociedade, sem que ela tivesse culpa alguma disso. Na casa de Henry, ela recorda-se de ter reparado numa garrafa de champanhe junto a um jacuzzi. "O meu corpo ansiava por (…) uma oportunidade, que fosse, de beber champanhe num jacuzzi." A situação era especialmente difícil quando os seus clientes tinham a mesma idade que ela ou eram mais novos.

Land tinha outras ambições, também. Ela lia vorazmente e começou a documentar a sua vida num blogue online. Eventualmente, com a ajuda de um subsídio, conseguiu começar um bacharelato em Língua Inglesa na Universidade de Montana. Hoje, ela vive em Montana com o marido, Tim, e três filhos.

Escrever permitiu-lhe deixar para trás as limpezas, embora ainda faça campanhas em prol dos trabalhadores domésticos. Durante os primeiros meses da pandemia, ela instou as famílias da classe-média a que continuassem a pagar aos empregados domésticos, mesmo quando ficaram impedidos de desempenhar as suas funções.

Comparativamente com os anos que passou como mulher a dias, as finanças de Land sofreram uma transformação – tanto que ela pode agora dar-se ao luxo de contratar a sua própria empregada de limpeza. É algo que ela nunca imaginou que iria fazer até há um par de anos, quando magoou as costas e precisou de ajuda para a limpeza da sua casa nova.

Ela ia revirando o anel e a aliança, com embaraço, enquanto explicava o trabalho à empregada, uma mãe solteira chamada Michelle. A voz dela ficou entrecortada, a certa altura, quando lhe pediu para limpar a sanita. Quando as suas costas ficaram melhores, ela evitou contratar outra empregada, mas em breve o marido terá de ser submetido a uma grande cirurgia, e Land poderá precisar de ajuda em casa.

A decisão está a oprimi-la pesadamente. Muitos argumentariam que fazer limpezas é um emprego como outro qualquer, no qual muitos pessoas sentem orgulho. Alguns poderão ver os excessivos melindres de Land como irracionais – vindos, talvez, de um sentido de culpa, pelo facto de ela ser agora mais rica do que as mulheres com quem ela costumava trabalhar. E, como pessoa atenciosa e inteligente que é, Land decerto compreende tudo isso. Mas, depois do mal-estar da última vez, diz ela: "Não consigo convencer-me a fazê-lo".

Luke Mintz/The Telegraph/Atlântico Press

Tradução: Adelaide Cabral

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