Emanuele Crialese, realizador: "Sinto uma irritação quando pessoas binárias e não-binárias me tentam definir."
“L'immensità - Por Amor” é um filme transportado pelo carisma de Penélope Cruz. Conta as lutas de uma mulher numa sociedade profundamente machista. É também uma narrativa autobiográfica inspirada na infância do realizador que pela primeira vez evoca a sua transição de género numa ficção. Encontro em Lisboa.
Emanuele Crialese é direto. Avisa de imediato, "se for bruto a responder não leves a peito, eu sou assim, é preciso ser-se honesto". Está sentado no segundo andar dos cinemas UCI. A Festa do Cinema Italiano, que decorreu em Lisboa, apresentou a sua filmografia em retrospetiva por salas espalhadas pela cidade. O seu último filme, L´Immensità - Por amor, que agora chega aos cinemas, abriu a Mostra e encheu duas salas no S. Jorge.
O público vibrou com Penélope Cruz e os dilemas de uma mulher desamparada em Roma. A infidelidade do marido, a sua impotência perante uma sociedade que em nada respeitava os direitos das mulheres, levam-na ao desespero. Penélope Cruz é nesta ficção uma atriz sob influência continuando a linhagem de heroínas do cinema clássico italiano (ou heroínas do Sul), onde encaixa também a sua personagem de Volver, de Pedro Almodovar. Dramática e fotogénica, entre o choro e a gargalhada, a personagem que desempenha celebra em pleno o seu talento como atriz.

O primeiro filme do realizador, Respiro (2002), era extremamente aguçado na forma como tratava o sufoco e a procura de liberdade feminina em Itália – teve um sucesso estrondoso no mundo inteiro.

L´Immensità - Por amor estreou no Festival de Veneza em setembro de 2022 e foi recebido com surpresa porque esta história conta também a vida de uma menina (filha de Penélope no filme) que não se sente bem no seu corpo. Quer viver como um rapaz. Emanuele assumia o enredo como autobiográfico causando espanto na imprensa: apesar de ser conhecido do grande público no seu país, muitos diziam desconhecer que Emanuele tinha nascido biologicamente mulher. Surgiram questões pouco pertinentes, certamente abusivas. Emanuele viu-se obrigado a usar o Instagram, aos 57 anos, vincando o facto de sempre ter assumido o seu passado. "Always been out", escreveu na rede social.
O realizador escolheu voluntariamente não dar o papel de Andréa a um ator trans, "queria respeitar a liberdade de uma criança poder ser o que quiser ser, para mim as épocas mais difíceis foram as dos 11 até aos 18", dizia em entrevista à Advocade. "Não podia simplesmente escolher um miúdo trans (...) sem me perguntar todas as noites como iria lidar com a imagem que estaria a projetar dele ao mundo depois da primeira projeção do filme".

O debate à volta do transfake tem sido constante na atualidade portuguesa, desde a ação de protesto de Keyla Brasil no Teatro São Luiz no começo de 2022. A escolha de Emanuele junta-lhe mais uma camada – como escolhe um homem trans contar a sua própria história?

Emanuele está assim sentado à nossa frente, tenta fumar às escondidas, ri quando passam trabalhadores dos cinemas UCI e o avisam que estamos numa zona de não fumadores. Fala num tom baixo. "Somos transgressores", diz, sempre que tira o cigarro eletrónico do bolso.
O teu primeiro filme Respiro (2002) é inesquecível na forma como é protagonizado por Valeria Golino, uma mulher livre no conservador sul de Itália. A personagem dela tem dificuldade em encaixar-se no mundo e encontrámos uma ligação com este teu novo filme, na personagem de Penélope Cruz. Estas mulheres parecem estar em sintonia. No passado, trataste logo o género com uma mulher forte e agora é a primeira vez que falas de identidade num filme. Pergunto-me se voltar a uma mulher forte é um sinal de renascimento ou uma viragem nos temas que queres tratar no teu cinema?
Acho que cada filme é um renascimento. Especialmente quando não representa uma rotina no (meu) quotidiano. Eu faço filmes a perguntar-me o que é realmente necessário contar. Pergunto-me o que será bom contar e o que nunca foi contado? Por isso, demoro muito tempo entre duas rodagens, para pensar, para sentir o espírito do meu tempo. O espírito do meu tempo levou-me a falar de emigração e movimento (nos filmes Mundo Novo, 2006, e Terraferma, 2011). São temas que tratam a identidade, tanto cultural como geográfica.


A emigração fala de sair do teu corpo, porque o teu país é o teu corpo – sais da tua comida, sais de perto dos teus parentes, ou das pessoas que amas. Partes para evoluir, para tornar a tua vida melhor. Por isso o meu segundo filme e o terceiro também eram sobre identidade. São sempre sobre identidade. A identidade tem muito a ver com família e raízes e com as tuas necessidades pessoais, conhecidas ou desconhecidas. Há sempre dor envolvida e coragem também. E tem tudo a ver com sobrevivência.
Falando de sobrevivência, há um momento no filme em que a Penélope Cruz molha uma quantidade de adultos com uma mangueira, são adultos que querem castigar as crianças, e lembro-me da tua personagem Grazia no filme Respiro que toda a gente achava ser uma mulher à beira da loucura...
Uma chamava-se Grazia e neste filme a personagem chama-se Clara. Essas mulheres para mim são a representação das mulheres que precisam de ser livres e também das que precisam de ser protegidas.
A única grande culpa delas é amar demasiado. E assumem esse amor. São mulheres a tentar ser elas próprias num mundo que sugere que só podem ser ou esposas ou mães. Elas adoram sê-lo, mas tem de haver algo mais para elas. E é difícil porque a sociedade não lhes permite isso. Elas tentam encontrar espaço, definir-se com os outros de maneiras diferentes. Nos meus filmes é possível ver essa dificuldade nas personagens femininas.


A personagem da filha, a Andrea, acha que veio de outra galáxia para este mundo...
Sim.
Parece ser uma sensação comum durante a infância e adolescência dos jovens queer ou LGBTQ+, era essa dimensão que querias abordar?
Às vezes sufocamos e por sufocarmos tivemos de lutar. Como as mulheres tiveram de lutar pelos seus direitos. E nós lutamos. Lutamos nessa tentativa de sermos amados por outras pessoas e de estar com pessoas, lutamos para ser simplesmente quem somos. (pausa)

O James Baldwin, escritor negro e homossexual, já nos anos 70 [do século passado] dizia – "o problema não é nosso, o problema é vosso. Se não gostas de mim ou se achas que estou errado tens duas opções: podes lutar contra mim ou podes fechar os olhos. Mas não me peças que te dê garantias porque eu sei quem sou. E se isso te desorienta, o facto de eu saber quem eu sou, não é um problema meu".

O livro dele, O Quarto de Giovanni, foi publicado há poucos anos em Portugal (pela Alfaguara). Mencionavas também o James Baldwin numa entrevista à Advocate, no momento em que o teu filme foi exibido no Festival Veneza. Pedias que juntassem à tua entrevista um excerto para algo que o Baldwin disse em 1984, sobre a forma como vivia a sua homossexualidade. Fomos ler esse excerto.
Bravo, bravo.

Ele pedia às pessoas para se preocuparem umas com as outras, ele pedia às pessoas para não se atribuírem rótulos.

Exato. Vou dizer-te algo que nunca disse a ninguém publicamente, só porque queria ter a certeza que ia acontecer. Mas eu vou escrever sobre isso. És a primeira pessoa a quem digo isto: As comunidades são muito importantes (pausa). Nós somos homossexuais, nós somos transexuais, só que não é a única coisa que somos. Nós estamos a lutar por pessoas que são marginalizadas por isso somos mais do que isso. Portanto, quando no público de uma sessão alguém transexual me pergunta: "então este filme foi inspirado em quê?". O que me querem dizer é –, "porque não o dizes bem alto?" Querem quase que os assegure de que não tenho problemas em dizer o que sou. Eu quero fazer uma pergunta, a todos, e a ti que me entrevistas agora – porque precisas disso? Porque tens de colocar um rótulo em ti? Tu és quem és. Eu não quero saber a tua orientação sexual, francamente.

Não me interessa. Eu não sei quem tu queres ser. É a tua vida. E tem de haver sentido nessa vida. O orgulho é algo muito bonito, mas tem de ser a única coisa que temos? Depois do orgulho temos de ser relevantes e temos de conseguir identificar onde estamos a posicionar-nos e com quem o estamos a fazer. Temos de estar no mundo com as outras pessoas e ser nós próprios, às vezes eu sinto uma irritação quando pessoas binárias me tentam definir, e também o sinto quando pessoas não binárias o tentam fazer. Porque não vamos mais longe? Porque não tentamos ver quem é quem em termos humanos? Somos todos humanos, isso é uma certeza. Podemos concordar ou discordar.
No debate de agora parece haver um espelho para hipnotizar e criar conflitos. Isto não é de todo pacifico. Parece quase que as pessoas só se querem mostrar para ter a certeza de que as outras as veem realmente.

Não vamos a lado nenhum assim. Nós estamos onde estamos, estamos onde queremos estar. (aumenta o tom de voz) Eu não quero que me metam numa jaula. Eu não me meti numa jaula.

Pareces o James Baldwin a falar agora (risos)
Amo-o.

No filme L’Immensita – Por Amor há momentos em que as personagens acedem a um mundo de fantasia povoado por cantoras dos anos 70 – a Patty Pravo ou a Raffaella Carrà. Essas estrelas, que a personagem da Penélope Cruz vê na televisão com a filha Andrea ao lado, são estrelas que existem para lhes salvar o quotidiano?
Nós precisamos do star system. Nós precisamos de idealizar ou idolatrar. Precisamos de poder olhar para alguém que não está aqui e anda pelo mundo. De certa forma é alguém inacessível, mas que existe. Precisamos dessas personagens hipnóticas cheias de charme que têm uma identidade precisa e vivem noutro mundo. Porque a Patty Pravo vive noutro mundo. Quando vejo a Penélope fazer uma performance em que ela é a personagem, e é ao mesmo tempo a Penélope Cruz, eu dou por mim a sonhar. Tu se calhar vais ver filmes para pensar ou protestar... Mas eu sou dessa geração que foi ver filmes para sonhar e imaginar novos mundos.

Sei que faço filmes para isso. Tudo o que faço, quando trabalho, é tentar criar um mundo em que podes esquecer quem és e identificar-te com uma personagem. Podes entrar em contato com uma dimensão nova, sais de ti e depois voltas a ti. Essas personagens são como coros, como vozes que estão a falar contigo. Nestes dias a realidade parece-me ser tão dura, e eu prefiro falar da realidade dando ao público uma capacidade de fuga para outro mundo. O que quero dizer aos outros seres humanos, parece-me ser claro – vocês devem ter orgulho em ser quem são. Se único e não tentes ser como os outros. Sim há uma comunidade, mas tenta ter orgulho em ser como tu és.

No começo desta entrevista dizias que podias ser um pouco duro nas palavras e pergunto-me como é que diriges os atores que trabalham contigo?
Sou a pessoa mais querida do mundo. Eu não consigo dirigir um ator se não o conhecer e os meus tempos de ensaios acabam por ser exigidos contratualmente. É um tempo em que nem sequer pegamos no guião. Cozinhamos, falamos das nossas vidas, partilhamos e abrimo-nos. Podemos abrir-nos até com algumas mentiras. Eu procuro saber o que é importante para o outro. Cada ator precisa de uma linguagem diferente. E isso é algo que não desenvolvi como um método, é apenas o meu movimento natural. Às vezes falamos do filme que eles imaginam e percebo quais são as fantasias deles e assim vou cortando coisas dessas fantasias e inserindo o que eu quero. O meu método, no fundo, é o de nunca dizer "não" a um ator.

Neste filme fazes uma espécie de autoficção e contas coisas inspiradas da tua própria vida, gostava de saber se estabeleceste algum limite para proteger a tua realidade ou intimidade?
Eu quero que as coisas sejam reais. Tento não ter uma visão antes de entrar no set de filmagens ou antes de encher o espaço. A realidade é forte, mas a vida é mais forte ainda. Por isso é preciso estar preparado para o que a realidade vai oferecer. O que acontece em frente à câmara é algo que preparei, mas do qual não tenho controlo total.

Como te proteges do melodrama que podem trazer algumas das situações reais que te inspiraram?
Faço meditação e isso é algo que te ensina a desligar. É só trabalho. A meditação ajudou-me a perceber que tudo vinha de mim, mas que não sou assim tão importante. Eu não me tornei um símbolo. Tento nunca me identificar com o meu drama, nunca. Eu não estou a pensar que sou um homem ou não estou a pensar que nasci biologicamente uma mulher. Eu sou uma outra criatura. Sou assustador? Ok, eu sei quem sou. Por isso te posso dizer "estou aqui", será que isto te chega? Isto é o oposto de estar confuso ou de querer classificar alguém. É mais difícil. Eu não posso tranquilizar-te. Eu sou quem sou. Sintam-me. Às vezes sou mais mal-educado, às vezes sou mais feliz. O que nunca podes fazer é magoar as pessoas. E eu não deixo que metam um pé em cima da minha cabeça por ser assim. Felizmente, na minha vida, tenho o privilégio de poder pensar muito sobre estas coisas.

Mundo, Discussão, Cultura, Emanuele Crialese L'immensità - Por Amor, Penélope Cruz, Cinema, Género, Não-binário, Transexual