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Alice Diop, realizadora. “Passamos a vida a tentar reparar-nos da loucura das nossas mães"

Saint Omer recebeu o Leão de Prata na última Mostra de Veneza, a primeira longa-metragem de Alice Diop recria uma história verídica: O julgamento de uma jovem imigrante acusada de infanticídio. A maternidade ganha outra complexidade quando se mistura às vivências da imigração. Conversa com a realizadora.

Foto: Alice Diop
09 de maio de 2023 Tiago Manaia

Antes de começar a entrevista via zoom, com tempo cronometrado, uma assessora de imprensa diz-nos que a realizadora acaba de chegar a França, vinda dos Estados Unidos.Tem poucas horas de sono a seu favor, e a palavra jet lag faz-nos pensar que uma conversa menos entusiasta se aproxima. Mas Alice Diop fala com a rapidez que caracteriza as suas intervenções públicas. Fala muito rápido e com essa urgência quase perde o fôlego entre as frases. Utiliza belas palavras, expressões literárias e nunca deixa de nos tratar por você, ainda que a tratemos por tu. 

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O timbre de voz é o mesmo que usou nos agradecimentos dos Césars quando recebeu o prémio de melhor primeira obra cinematográfica, em fevereiro deste ano. Numa voz rouca, disse à sala: "não pensem que vão cortar a palavra a uma mulher negra". Dirigia-se à orquestra que encurtou os discursos de quase todos os vencedores dessa noite em prol das audiências televisivas. Alice homenageou depois as outras mulheres que, como ela, vivem para realizar filmes. Continuam a ser uma minoria, em França e no mundo.  

Em 2016, Alice Diop assistiu ao julgamento de Fabienne Kabou, uma mulher de origem senegalesa que meteu fim à vida da sua filha de 15 meses. Fabienne deixou o Senegal para estudar arquitetura e filosofia em França. Durante o julgamento, não parou de fascinar a imprensa por se exprimir verbalmente de forma brilhante e precisa

Saint Omer, o filme hipnótico realizado por Alice Diop (que como Fabienne também é de origem senegalesa) dá-nos conhecer as várias versões deste fait-divers violento que apaixonou a opinião pública

Talvez Fabienne sofresse de uma depressão pós-parto ou de delírios paranóicos que a fizeram acreditar em histórias de feitiçaria antes de cometer o crime. Onde está a verdade? 

É neste filme de tribunal e muito texto, guiado sobretudo pela emoção de atrizes magníficas e inspirado nas atas do julgamento real que Alice Diop desenha uma obra de cinema inesquecível. À história verídica, Diop decidiu juntar uma personagem fictícia – Rama, uma professora universitária que pensa escrever um romance inspirado no que ouve e vê naquela sala de julgamento. Na sua vida pessoal, Rama questiona os laços com a sua mãe imigrante, e assim o tema da maternidade mistura-se com os traumas da imigração, acrescentando complexidade à condição materna. 

Antes de realizar Saint Omer, Alice Diop fez inúmeros documentários, filmou vivências dos arredores de Paris em Nous (2021) e RER B (2017), já tinha ganho um César em 2017 com a curta-metragem Vers la Tendresse (2017). Na chamada zoom que nos oferece a conversa aqui transcrita não conseguimos perceber o fundo que a rodeia, uma parede branca ou um filtro digital, mas Alice está presente. Diríamos mesmo imbatível, com o mundo a seus pés. 

Foi galardoada com o prémio Melhor Primeiro Filme com o filme
Foi galardoada com o prémio Melhor Primeiro Filme com o filme "Saint Omer" durante a 48ª Edição dos Prémios César. Foto: Reuters

Queria começar por evocar uma ideia de visibilidade em oposição à invisibilidade que às vezes é necessária para observar e criar algo artístico. Quando foste assistir ao processo real que inspirou o teu filme Saint Omer dizias em entrevistas que as pessoas olhavam para ti com estranheza, que pareciam perceber que eras parisiense. As pessoas daquela pequena cidade olhavam para ti na rua. Agora o teu filme sai nos cinemas do mundo e é um fenómeno. Alguma vez esta história te permitiu ter a invisibilidade que querias para a tua observação? 

Eu nunca me senti invisível porque eu sou uma mulher negra num país maioritariamente branco, onde ninguém se esquece nunca que sou negra. As pessoas nunca esquecem que eu faço parte de um grupo de pessoas a quem chamamos "pessoas racializadas". Somos vistos como pessoas negras, com tudo o que isso implica, e às vezes a maneira como as pessoas nos veem não corresponde àquilo que somos. Essa foi uma das razões que me fez querer fazer este filme. A maneira como as pessoas projetavam coisas naquela mulher, que não correspondiam à força, profundidade, à violência extrema e a complexidade que estava dentro dela. E é verdade que as mulheres negras no cinema são invisíveis na sua complexidade, são invisíveis numa forma de representação.

Para mim, foi um prazer imenso poder tornar visíveis estas mulheres. 

E não são mulheres negras que trabalham como empregadas de limpeza. As mulheres que trabalham como empregadas de limpeza são visíveis, as migrantes ou as mulheres negras que correspondem ao estereótipo e às fantasias da maioria dominante existem no cinema. Não muito, mas existem. E mulheres negras como a Rama que é professora na Sorbonne que é complexa, neurótica e ambivalente. Não existem. Mulheres negras como a Laurence, não existem. Para mim foi um verdadeiro prazer poder dar a ver a complexidade dessas mulheres negras. Como tornar visível algo que normalmente não se vê? Isso é importante para mim. 

"É verdade que as mulheres negras no cinema são invisíveis na sua complexidade". Foto: Alice Diop

Tu dizes muitas vezes que cresceste em França e não tiveste acesso a referências racializadas na tua infância.

Sim, tive de ir procurar essas referências a outros sítios que não faziam parte do espaço francófono, como os Estados Unidos. Ou tive de as ir buscar à África negra. Portanto, eu fui buscar ferramentas, mergulhando em histórias, narrativas ou filmes que não contavam a minha realidade direta. Tive de ir a outro sítio. E agora estou rodeada de mulheres intelectuais negras. São professoras na faculdade, são mulheres de teatro ou cineastas, colegas da minha geração que estão a mudar as coisas para as miúdas que têm 20 anos agora. Quando miúdas de 18 anos me param na rua para me agradecer, eu fico comovida. Penso em tudo aquilo que eu tive de procurar noutros lados e penso que agora elas têm a possibilidade de se inspirar em várias pessoas. Não sou só eu... 

O meio literário em França está a renovar-se, há a Diaty Diallo por exemplo. Falar da realidade das mulheres negras na sociedade francesa é algo relativamente novo. É bonito poder fazer parte deste movimento que se está a vincar nas Artes.

Portanto tu estás a tornar-te num símbolo? Isso é muito forte.

Eu detesto esse termo, "o símbolo". Porque um símbolo parece implicar uma posição solitária. Eu não sou de todo um símbolo, eu falo em nome próprio e ao mesmo tempo o facto de aparecer e de existir é algo político. Eu sou demasiado neurótica para ser um símbolo, estou só aqui, e ao meu lado há outras pessoas. Espero que a gente deixe algo, e espero que o facto de estarmos aqui permita a outros avançar mais rápido. O símbolo é um lugar de solidão que é completamente falso. Ninguém é o símbolo de nada. Existimos graças aos outros.

Precisamente, fazer cinema é algo de coral, há trabalho de grupo. A atriz que escolheste para fazer de juíza no processo fez de Medeia no teatro em França - é curioso, isso. Dizes ser muito instintiva na forma de dirigir as tuas atrizes, e dizes ter cortado o momento em que esta juíza começou a chorar durante um take. Porquê?

Tentei só ser uma gestora de emoções. É verdade que no final do filme é a atriz Valérie Dreville que chora mesmo e não é a personagem de juíza que chora, nem a atriz. É ela. Eu tentei só travar ali qualquer coisa para aquilo poder ter algum sentido quando elas aparecem no final do filme. 

"É verdade que no final do filme é a atriz Valérie Dreville que chora mesmo e não é a personagem de juíza que chora, nem a atriz. É ela." Foto: SRAB FILMS - ARTE FRANCE CINÉMA

 

E há uma posição dela que acho magnífica, e que não era de todo um momento de representação. A certa altura a juíza tem uma atitude de abandono, como se renunciasse. E há uma tal graça nos seus gestos, há um plano no momento da alegação em que parece estar perdida nos próprios pensamentos. É um momento de quase documentário entre dois takes, algo que quase lhe roubámos enquanto a filmávamos.

E faz sentido neste filme porque é como se ela estivesse a abandonar a sua postura de autoridade. É a mulher que aparece para lá da juíza, como se ele estivesse a entrar dentro dela própria. Isso aconteceu ao longo de toda a rodagem, as cenas de confrontação no tribunal deixavam-nos a todas quebradas, espremidas e devastadas. Estávamos contaminadas por tudo o que o filme nos fazia e como ele entrava em nós e convocava as nossas mães. Não estávamos de todo num espaço profissional, estávamos cada uma de nós entregue a si própria. Eu tive de tentar controlar essas emoções depois, quando fiz a montagem do filme. Portanto há muita emoção na retenção que explode depois no fim.

Estavam, então, ultrapassadas por isso?
Estávamos sempre ultrapassadas sim. E não podia ter montado isso no filme final. Foi preciso construí-lo e dominá-lo. Os atores e técnicos dizem-me que nunca na vida deles viveram uma experiência de plateau assim em rodagens. Houve uma contaminação na intimidade deles por causa do trabalho. Estávamos sempre a chorar

"As cenas de confrontação no tribunal deixavam-nos a todas quebradas, espremidas e devastadas." Foto: SRAB FILMS - ARTE FRANCE CINÉMA

Ensaiavam muito? 

Nunca ensaiámos. Fazíamos dois takes, mas o segundo era só mesmo por segurança. Aquilo foi como se eu fosse fazendo um levantamento de emoções reais, aquilo não podia ser representado. Nada foi fabricado.

Nós quisemos reviver o julgamento e nós filmámos logo na continuação do processo, por isso era como se fossemos lá todos os dias. Caímos assim numa espécie de transe. Era como se eu fosse ao mesmo tempo realizadora e espectadora de um julgamento real. As palavras ditas pareciam atravessar-me mais que as que eu tinha ouvido no julgamento real. Como a Rama, eu via-me enquanto mãe, via a minha vida e pensava nas coisas da minha infância. Estávamos entre o real, o teatro ou o documentário. Penso que nunca mais vou viver algo assim. 

À história verídica, Diop decidiu juntar uma personagem fictícia - Rama, uma professora universitária que pensa escrever um romance inspirado no que ouve e vê naquela sala de julgamento.
À história verídica, Diop decidiu juntar uma personagem fictícia - Rama, uma professora universitária que pensa escrever um romance inspirado no que ouve e vê naquela sala de julgamento. Foto: SRAB FILMS - ARTE FRANCE CINÉMA

A tua personagem Rama, que assiste ao processo dessa mãe que mata a filha, volta a certa altura para o hotel onde está hospedada e vê o filme Medeia de Pasolini com a Maria Callas – cantora de Ópera que nunca foi mãe. Há aqui uma ambivalência não? A tua personagem Rama parece querer destruir esse símbolo da Medeia que a Callas encarna ou será que querias dizer que todas as mulheres podem ser a Medeia?

Bom, isso pode ficar em aberto. Cada pessoa que vê o filme tem direito de o interpretar como quiser. Sim a Medeia é a figura da mãe infanticida, mas é também uma reflexão sobre o poder, a loucura e a monstruosidade que podem ser as mães. As mães que somos. O que é uma mãe, afinal? O filme é sobre isto. É sobre como nós enquanto filhos passamos a vida a tentar reparar-nos da violência e loucura das nossas mães. Há um amor gigante nessa violência e loucura. 

Não estou longe de achar que todas as mães são loucas e eu também sou (risos) e que os filhos têm de trabalhar, resistir e habituar-se às loucuras das suas mães. Para mim quem encarna a mãe no absoluto é a figura da Medeia. No meu filme Saint Omer não me interessava o fait divers ou a monstruosidade do ato, o que me fascinou foi como esse ato me permitiu refletir, de forma muito incómoda, sobre a maternidade. 

Não é por acaso que este processo apaixonou as mulheres em França, é uma experiência que quase todas as mulheres têm. A mulher que estava a ser julgada estava a contar algo sobre nós. Estava a contar algo demasiado violento para ser dito, mas que é algo que tem de ser contado. Quando eu ouvi o texto que disse a Fabienne Kabou e a maneira extremamente lírica que ela tem para descrever o assassinato, percebi que ia ser possível contá-lo. Por causa da maneira lírica. Se ela tivesse contado os factos de maneira diferente não teria sido possível. 

A questão da maternidade, que é interrogada a partir desse ato monstruoso, só é possível pela distância que é criada pelo relato dela.

Uma mulher que usa uma linguagem básica para contar como matou o seu filho é inaudível. Só que a Fabienne Kabou falava como a Marguerite Duras e de repente ela permite ouvir (e faz-nos tentar perceber) o que há por trás desse ato, e como ele pode falar de nós próprios. Conta também a complexidade que é ser mãe. Quando eu vi a cena do Pasolini quase pensei, "uau será que ela não plagiou? Para definir uma história que torne audível aquele ato." 

"A questão da maternidade, que é interrogada a partir desse ato monstruoso, só é possível pela distância que é criada pelo relato dela." Foto: SRAB FILMS - ARTE FRANCE CINÉMA

Sim, durante esse processo era a forma que ela tinha de contar as coisas que fascinava os média em França. Foi como se ela tivesse tornado o crime em algo teatral?

Sim, é porque ela o torna teatral que ele nos permite ouvir. Neste ato ela permite-nos ouvir algo que nos diz respeito.

O teu filme de fim de curso era sobre o teu pai imigrante.

Filmaste-o a ver imagens de forma obsessiva dos locais da sua infância, aos quais ele não pode voltar. Tudo o que fazes é um gesto político? Em França, sobretudo, como vives com isso?

Tudo está nos filmes. As pessoas gostariam que eu fosse uma porta-voz, e assim passaria o meu tempo a fazer discursos. Só que eu faço cinema para não ter de fazer discursos políticos. As questões políticas que me agitam estão ligadas aos meus filmes. Podem ser coisas que me dão esperança de reparar a História, ou até limpar o olhar que temos uns sobre os outros. É um olhar que é ainda moldado por uma herança colonial da qual não nos livramos. Muitas vezes os jornalistas usam os meus filmes como uma porta de entrada para falar de coisas políticas. E eu digo que se tivesse vontade de ocupar esse lugar teria feito estudos sociais (que por acaso comecei a fazer), e deixei para estudar cinema. 

O que me interessa é falar a partir da forma, a forma transporta consigo todas as questões políticas. Falar do plano sequência que abre o Saint Omer é falar só de política. É uma sequência de uma mulher negra que eu peço ao espectador para ouvir intensamente, para mim é um ato político, retratar essa mulher cuja complexidade foi invisível. Pensar que as pessoas a vão ver durante 25 minutos a ser filmada num plano em sequência é político. É óbvio que eu podia ter um discurso sobre a representatividade, aliás toda a gente o pode ter, mas não me interessa. É quase como um lugar-comum. 

"Para mim, foi um prazer imenso poder tornar visíveis estas mulheres. E não são mulheres negras que trabalham como empregadas de limpeza." Foto: SRAB FILMS - ARTE FRANCE CINÉMA

Posso perguntar-te onde encontras momentos de descanso ou devaneio, entre as viagens que tens feito para apresentar o teu filme

(A assessora de imprensa francesa diz que temos de acabar a entrevista)

Acabo de chegar de uma semana magnífica onde estive na Universidade de Columbia e em Harvard a falar deste filme num cenário muito diferente do habitual. E sinto que de repente consegui abrir um espaço para o devaneio de que você fala. Leio muito, documento-me para um próximo projeto.

Que lês?

Leio Viaje Al Congo de André Gide. E leio muitos discursos sobre o colonialismo, coisas que já tinha lido há 20 anos. 

Portanto, a juventude de Boston inspirou-te?

Genial, foi genial. Foi como estar numa incubadora intelectual intensa. Limpou-me. Essa troca intelectual alimentou-me, preciso disso.

Estreou no dia 4 de maio nos cinemas portugueses onde se encontra atualmente em exibição.

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