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Entrevista Maria João Vaz. Uma conversa de mulheres

“Mais empatia, por favor”, pede a atriz e ativista LGBTQIA+ Maria João Vaz. Assume-se como uma mulher trans porque defende que o mais importante é “vivermos a nossa verdade”.

Foto: Mariline Alves
14 de junho de 2023 às 07:00 Maria João Veloso

Parece que nos conhecíamos de outra vida. Não dá para saltar o "pormenor" de Maria João Vaz ter tido outra vida. Trazia t-shirt branca justa, calças de ganga e um fio de ouro que resgatou da idade da inocência.

O regresso à origem

"Quando entrei neste processo de transição, perguntei à minha mãe se ainda tinha o fio de ouro que usava na primeira infância, porque simboliza a minha inocência". Disse isto quase no fim da entrevista. Foram mais de três horas de conversa e não fosse o frio ainda estaríamos ali. Duas mulheres adultas num cafezinho perdido no meio do verde da Gulbenkian.  

Foto: Mariline Alves

A atriz concretizou a mulher que tinha dentro de si no segundo semestre de 2018. Não sabe precisar o dia, o mês, a hora, mas o renascimento aconteceu naquela época. "Estava numa relação com uma pessoa que me interessava muito" e que defende que "foi a responsável por me libertar daquela maneira". Embora aceite quem possa ter outra opinião. Aliás, uma das caraterísticas de Maria João é aceitar o(a) outro(a) como este/a quiser ser. "A sensação da epifania foi inacreditável", mas quis ter a certeza. Até aquele dia guardou um segredo. Sempre que podia vestia roupa da mãe ou da mulher com quem casou. 

"Não é fácil viver um segredo. Sempre que alguém me chamava ficava toda corada. Pensava: descobriram. Deixei uma peça de roupa não sei onde." Depois da revelação, houve um alívio enorme

Diz-se uma "mulher feliz e realizada". Contudo, tem consciência que tem um "passado muito pesado" e há coisas que não se vão apagar. Por mais que queira andar para a frente, haverá sempre alguém que se lembrará de um anúncio a uma marca de telemóveis que protagonizou em 1995. É esse passado que faz dela, em 2023, uma mulher trans. "A essa experiência que tive como outra pessoa que não era eu, chama-se trans." Em janeiro deste ano, ao substituir André Patrício, o ator cis que interpretava uma personagem trans na peça Tudo Sobre Minha Mãe, Maria João foi entregue à curiosidade da opinião pública.  

Antes de Keyla Brasil subir ao palco do São Luiz, a atriz trans já andava a fazer pela vida. Com o Teatro de Praga fez a Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, que se estreou em junho do ano passado e que passou no fim de abril no Teatro Rivoli, no Porto. Aliás, não poupa elogios a André Teodósio, um dos fundadores do grupo cujo método de trabalho é inclusivo. "Amo o André porque para ele é irrelevante o género da pessoa", defende.   

Foto: Mariline Alves

"Somos humanos" 

Como a sociedade em que se vive está longe de ser como o Teatro de Praga, a atriz concede estas entrevistas para dar visibilidade à comunidade trans. "Assumo a minha faceta de ativista para as pessoas trans lerem, mas sobretudo para as pessoas não trans. Para perceberem que somos humanos como outras pessoas quaisquer. O que causa a transfobia é o medo do desconhecido."      

O método do autoconhecimento

Para não cair em armadilhas, Maria João seguiu um método que criou para si própria. Em 2019, ano que se seguiu à epifania/renascimento, estudou tudo o que encontrou sobre a temática trans. Descobriu, por exemplo, que a hipersensibilidade que lhe tinha sido diagnosticada em criança estava associada à disforia de género. "Na altura mutilava-me e não dormia. O meu pai tinha estado na Guerra na Guiné e eu achava que não dormia por causa das histórias que ele contava." Afinal, as insónias tinham outra explicação. Hoje vive bem com esta característica: "sei que a pessoa hipersensível é organizada e perfecionista. É como sou".

A artista plástica

Longe vai o tempo em que estava do lado errado da barricada. Que era do contra, que sentia que as professoras lhe reprimiam a criatividade. Agora não. Desde 2017 que faz esculturas em vários materiais, desde papel maché à argila. Também "parte pedra". Uma metáfora boa para sua vida, que é o que faz quando convoca as pessoas para a palavra empatia. 

Foto: Maria João Vaz

Numa ida à FIL (Feira Internacional de Lisboa) ficou encantada com umas esculturas feitas com pasta de papel e pensou experimentar. "Fui incentivada a exprimir-me porque no passado as coisas que fazia eram sempre muito criticadas. Há uma imagem de mulher que me representa. A que tem cabelo arruivado. Quando estão duas mulheres juntas são sentimentos que expresso."

Começou a dedicar-se mais à escultura ao longo do processo em que se assumiu mulher. A própria sequência das peças parece contar a sua história.

"O ideal para mim era viver dos meus bonecos. Sei que não têm grande qualidade, nem são nenhuns Picassos. Mas é uma expressão minha, que aprendi que é válida". Já vendeu peças suas, assim como criou os troféus Arco Íris da ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo.

A vida como ela é

Como uma mulher adulta e independente, tem contas para pagar no fim do mês. E está sempre a inventar projetos novos que possam contribuir para a sua subsistência. Quem disser que o dinheiro não é uma questão no que toca a profissionais da cultura está a mentir. Nos últimos anos já teve que trabalhar fora da zona de conforto para pagar as contas. Quando fala de sonhos, Maria João assume que uma das suas prioridades é pagar as dívidas.

Ainda casada com a mãe das três filhas teve vários ataques de pânico. Um deles, mais grave, levou-a até ao hospital, e achou que estava a ter um ataque cardíaco. O médico disse-lhe que o problema não estava no coração, mas sim na cabeça. Sugeriram-lhe uma psicóloga que, oito sessões depois, a fez sentir que não precisava de psicoterapia. "Naquela altura falei da minha relação conjugal. Não me abriu os olhos para nada. Acho que ela devia ter sido mais perspicaz. Aquilo era caro e estava a ter ajuda financeira da pessoa com quem vivia". Quando teve a epifania voltou a procurar ajuda. Deram-lhe o contacto de uma Associação que dá apoio a LGBT. "Foram as primeiras pessoas com quem falei sobre essa parte da minha vida. Foram elas também que deram o início ao processo no Serviço Nacional de Saúde." 

Foto: Mariline Alves

Mais uma vez chocou com as instituições. "Não continuei com o SNS porque era mais moroso." Se o tivesse feito não tinha gasto um tostão. Havia muita burocracia pela frente, avaliações, juntas médicas. Aí, concluiu: "vou ter um grupo de homens, hétero, cis a avaliar-me? Não. Eles não sabem nada sobre a minha vida. A condição de ser trans não se aprende em livros, nem em vídeos. É-se trans." A venda do carro, do trompete, as dívidas todas que contraiu, têm a ver com o dinheiro que investiu na mudança de género.      

Antes disso, na primavera de 2019, contou às filhas e ao irmão. No Outono revelou à mãe. Disseram-lhe:"Se é o que queres, tens o meu apoio". Sabia, no entanto, que mais tarde ou mais cedo iam perceber que a transição seria permanente. Meticulosa, recebeu formação. Soube como abordar o assunto em família. "Cá em Portugal não havia muita coisa. Mandei por email panfletos em inglês a explicar que não somos bichos. Era importante que não fosse eu a vender o meu peixe". 

Foto: Mariline Alves

Em nome da mãe

A transição foi feita em 2020, durante a pandemia. O Mundo fechou-se. Durante esse período criou um guarda roupa novo e livrou-se do velho. Muito mais do que um simples mudar de pele. As cirurgias fê-las em 2021. "Aproveitei essas férias para furar as orelhas", desarma com um sorriso.

As filhas quiseram ser suas cuidadoras. A mais velha mostrou-lhe um filme com uma atriz trans e tomou conta dela quando esteve acamada durante cinco semanas. A do meio viajou com a atriz para Barcelona e acompanhou-a nas cirurgias. A filha mais nova preparou-lhe refeições especiais. Qualquer uma das três a trata por Maria João ou MJ. "São as minhas melhores amigas. Posso sempre contar com elas. As minhas filhas têm duas mães, e por isso celebro o dia da mãe. Adorava que me chamassem mãe, mas não me vou impor." Uma delas disse-lhe há pouco tempo: mudei o teu nome no telefone. "Não perguntei o que pôs, mas fiquei muito contente". A ex-mulher passava muito tempo fora de casa. E, neste contexto, Maria João criou as filhas. Instinto maternal era coisa que não lhe faltava. 

Foto: Maria João Vaz

Aula de expressão de género  

Define a comunidade LGBT como uma "espécie de galeria de arte" onde todos os géneros são possíveis. "Cada pessoa trans é diferente da outra". Para Maria João o mais importante é a forma como cada pessoa se afirma. "Não vou fingir que não sou uma mulher trans, porque é o meu percurso. Tive que fazer modificações para chegar ao meu nirvana, à minha perfeição".

Representatividade  

Neste momento está a gravar uma série sobre mulheres para a RTP. "É sobre violência doméstica. Vou ter um papel válido e interessante." A atriz revela também que integrará o elenco da série Morangos com Açúcar 2023. Da vida antiga traz a capacidade de lutar por aquilo que quer. Recorda-se de ter mandado um e-mail a Jorge Silva Melo disponibilizando-se para participar na peça Morte de Danton, de Georg Büchner. Jorge ter-lhe-á dito: "Não, porque quando trabalhar contigo quero que seja um papel como deve ser." E cumpriu a promessa. Participou em várias peças nos Artistas Unidos. Destaque para Penélope, do dramaturgo irlandês Enda Walsh. "Estava em plena transição quando o Jorge me convidou para fazer a Morte um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Fiquei feliz, precisava do trabalho, mas já não pude fazer. Agradeço-lhe para a vida."

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Recentemente acabou de escrever a sua autobiografia, que sairá em agosto. "Pedi a um dramaturgo para me escrever uma peça. Ele, branco, hetero, cis, disse que não. Argumenta que as pessoas da minha realidade devem contar as suas histórias. Sentei-me ao computador e comecei a escrever. Escrevi o livro completamente sozinha." 

O credo dela  

Maria João Vaz acredita que houve um problema na formação genética dentro do útero da mãe. "Nasci com um cérebro feminino e genitália masculina." Se esta condição não influenciasse tudo o resto, teria seguido a sua vida. "A questão é que quando se nasce com sexo masculino ou feminino isso vai influenciar a forma como as pessoas te veem. "

Hoje gosta de se arranjar e de se sentir bonita. É vegan, tem cuidados especiais com a alimentação e anda 45 minutos de bicicleta estática por dia. Coisas simples como um duche matinal, ou passar creme hidratante na pele, são pequenos prazeres que não descura. Pôr unhas de gel para o próximo trabalho em televisão ou herdar um vestido das filhas são pequenas, grandes vitórias.   

Maria João tem urgência de viver coisas que não viveu. Sair, jantar fora, ir ao teatro e ao cinema. Viajar, porque duas das filhas vivem no estrangeiro. Gostava de voltar a encontrar o amor. "Venha ele de onde vier". Acima de tudo quer ter trabalho. É uma atriz, tradutora, dobradora portuguesa que quer viver a sua feminilidade às claras.  

Foto: Mariline Alves

Sobre a epifania

A primeira vez que viu uma mulher trans foi na revista brasileira Manchete, que o pai trazia do aeroporto onde trabalhava. Às vezes, nas últimas páginas, havia fotografias de travestis brasileiras. Tinham nascido homens e feito cirurgias para serem mulheres. Uma até era colunável, Roberta Close. "Ficava a olhar para aquilo e sentia uma coisa, mas não dizia sou isto. Fechei-me." Se quando era mais nova houvesse visibilidade trans certamente teria tido a epifania mais cedo. Nela "visualizei o meu ramo feminino, contínuo, sem interrupções. A namorar, casada, com filhas, nunca deixei de fazer aquilo que fazia. Ser mulher em privado. Vi que esse era o lado principal da minha vida, o outro era secundário. A mulher Maria João sempre existiu". Agora é deixá-la voar.  

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