Ottessa Moshfegh, escritora. “Não te assustes por não conseguires ser aquilo que todos querem que sejas”
A fascinante história de uma rapariga que se fecha em casa a hibernar voluntariamente, para esquecer os males do mundo contemporâneo, ganha novas camadas sobretudo depois dos lockdowns da Covid-19. Conversa exclusiva com a autora americana sobre saúde mental e a perceção da sátira na época em que as redes sociais ditam o quotidiano.

Mais vale tarde que nunca. O livro tornado culto, da americana Ottessa Moshfegh, ganhou no final de 2022 uma edição portuguesa. Há muito que queríamos falar com esta mente brilhante, e ouvir a sua voz serena ao telefone, diretamente do seu lar californiano, é motivo de entusiasmo. Desde que foi publicado, em 2018, O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento não parou de fascinar, primeiro a crítica, depois os leitores notáveis como Bret Easton Ellis ou Pedro Almodóvar. Evocavam a protagonista do romance, personagem sem nome que organiza a vida e mete as contas a ser pagas em débito automático para se fechar em casa a tentar dormir. A busca é espiritual, tenta esquecer o mundo em que vive. Aproxima-se a crise dos trinta, questiona o rumo da sua vida. Deixa assim um trabalho numa galeria de arte contemporânea na baixa de Nova Iorque. Através do sono tenta ultrapassar o luto dos pais que perdeu recentemente e uma relação amorosa que a torna obsessiva. A única pessoa que a visita é Reva, uma amiga dedicada que a acha bonita e se projeta no seu corpo magro, nos seus cabelos loiros de burguesa perfeita.


Na busca de sono seguimos as visitas desta jovem a uma psiquiatra que lhe cede os medicamentos sem grandes questões, as consultas com a Dra.Tuttle mergulham-nos num léxico de calmantes e anti-depressivos (alguns com nomes inventados) e diálogos lapidares. A escrita de Ottessa é visceral. Entramos no ritmo frenético dos dias em que acorda e sai à rua. A ação desenrola-se em Nova Iorque, no ano que antecede o 11 de setembro de 2001. E assim Ottessa fala de uma época em que ainda existem gravadores de chamadas, conta quem são as celebridades que a fascinam analisando também a cultura de massas e as referências que agitam o quotidiano de uma protagonista inesquecível, num mundo que ainda não viu as gigantescas torres do World Trade Center cair, como se de um filme de ficção científica se tratasse.
Esta filha de imigrantes (mãe croata, pai iraniano), diverte-se aos 42 anos a criar para cada um dos seus romances estilos diferentes, O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento é a sua segunda grande obra, O Meu Nome Era Eileen, primeiro romance, tem apenas em comum uma personagem feminina invulgar, a escrita é completamente diferente.
Eileen teve direito a uma adaptação para o cinema, agitou o último festival de Sundance, deverá estrear em breve, a atriz Anne Hathaway sentiu-se empoderada pela narrativa.

Dos EUA chegam relatos entusiasmantes relativamente ao seu último romance, Lapvona, no qual Ottessa conta a idade média e uma sociedade completamente corrupta (a ser publicado pela Relógio D’Água brevemente).
Na conversa que tivemos com a escritora, tentamos perceber a sua reação ao fenómeno que invadiu o TikTok e deu novas camadas à sua hibernação satírica e poética do Meu Ano de Repouso e de Relaxamento. Consegue o mundo virtual perceber uma ficção que tenta ser amoral?

O teu livro saiu em 2018 nos EUA e na Europa, e começou a ser lido durante o primeiro lockdown da covid-19, em 2020. É estranho continuar a ter feedback de novos leitores e novas interpretações?
É estranho sim. Quando acabas de escrever um livro há um período muito demorado até o livro sair (que parece uma eternidade). Nesse tempo de espera tu acabas por desligar-te, deixas que o livro comece a andar pelos próprios pés. E sei que esta ideia também é real para muitos escritores. E na verdade, tirando as entrevistas ou apresentações que faço para falar do livro, não há nada que possa fazer para convencer alguém a olhar para o livro de forma específica.
O livro acaba por ser como uma pessoa com vida própria. O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento tem tido uma vida interessante, saiu em 2018 e teve bastante atenção quando saiu... provocou conversas interessantes sobre a sátira, Nova Iorque, a juventude e a desilusão.

Eram conversas sobre as expectativas que temos para a vida?
Sim.
Na Europa o livro acabou por sair quase ao mesmo tempo que o primeiro lockdown da covid-19 e o mundo estava também a viver um pouco num estado de hibernação. As pessoas talvez não estivessem a tomar comprimidos para dormir, mas estavam isoladas como ela, como a personagem sem nome d’ O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento. O livro ganhou uma dimensão nova com a pandemia?

Exatamente, o livro teve uma espécie de renaissance em 2020. As pessoas ou leram o livro mal saiu ou leram-no no lockdown (risos). Havia dois clãs. Sinto que os jovens estavam à procura de algo que refletisse o estado de espírito deles. Isto talvez tenha acontecido por causa da pandemia, e da maneira como a cultura mudou por causa da pandemia. Pelo menos nos EUA, havia toda esta geração de miúdos que estava a descobrir o livro pela primeira vez e se identificava e falava do livro nas redes sociais... Penso que a reação deles ao livro foi diferente. Já não era uma conversa sobre sátira e uma depressão narcísica que muitos jovens têm tendência a atravessar, esses leitores focavam-se em aspetos mentais e emocionais do percurso da personagem principal.
Li algures que te preocupavam com esses grupos de fãs do teu livro. No TikTok batizam-se de "sad girls", é assim que se definem. Achas que é algo específico desta geração mais nova, que se exprime na internet? Há também uma quantidade de miúdos fãs do personagem do Bret Easton Ellis no Psicopata Americano, que parecem reagir a esse personagem sem ver o lado satírico do livro. A tua irmã disse-te que o teu livro devia ter um aviso? (risos de Ottessa) Que pensas disto?
Eu estou um bocado exterior a isso tudo (ri-se). Penso que para compreender a sátira é preciso ter a sabedoria que vem da experiência de vida. E precisas de ter conseguido ver-te a ti próprio, precisas de conseguir rir-te de ti próprio. Sei que isso aconteceu comigo por volta dos meus 30 (risos). Não penso que tenha percebido o que era a sátira até ao final dos meus vinte anos. Quando és jovem levas-te muito a sério, naquilo que és. E é assim que deve ser.

Quando és jovem andas normalmente à procura de uma vocação ou algo assim?
Sim, é o período de formação em que se descobre como se quer viver. Descobres onde pertences - e será que pertences? São todas essas coisas. A sátira não soava muito real para mim até me tornar mais velha, por isso consigo perceber um leitor com 19 anos possa ler o livro como realismo puro. Parece-me que o sentido de sarcasmo está a mudar para as pessoas. Para mim o sarcasmo e a sátira têm uma relação muito importante, e eu sou uma pessoa muito sarcástica. O meu humor é muito sarcástico e não sei se os jovens estão a crescer com os mesmos critérios com que eu cresci, não sei se isso lhes permite entender o sarcasmo.
Vivemos um tempo que está a ressentir-se de si mesmo. Muito do humor das pessoas e aquilo que lhes parece ser engraçado vem de um humor memético, feito através de memes da internet.
E há uma rapidez também muito grande na forma como as coisas se consomem.
Sim, certo. (pausa) Portanto, não tenho a certeza de como posso interpretar isso.
Podemos dizer que o teu livro é sobre aceitar o destino?
O destino?

Sim, o teu romance fala também da importância de um acontecimento como o 11 de setembro de 2001. Li uma crónica tua na GQ em que contas ter conhecido um pintor de rua, em Nova Iorque, um dia antes da queda das torres... Nesse texto dizes que tiveste um ano horrível em 2001, e que ao mesmo tempo percebeste que no mundo estavam a acontecer coisas piores. Nesse ano, de certa forma, decidiste também que querias estar viva, percebi bem?
Sim, parece-me correto dizer isso. Mais uma vez, isto aconteceu há muito tempo na minha vida. Capturar essas memórias, ainda que elas tenham sido manipuladas na escrita, foi a forma que tive de perceber o que aconteceu comigo. A vida, em diversas ocasiões, parece ser muito aleatória. Muita gente diz que quando olhamos para o nosso passado as coisas podem fazer sentido. Uma tragédia pode transformar-se numa bênção. Podes dizer que acabas de encontrar o amor da tua vida e que tudo aconteceu porque estiveste no sítio certo, à hora exata... Se for algo bom podemos dizer que foi o destino, e se for mau dizemos que o nosso destino está condenado ou amaldiçoado. Isso quer dizer que a vida é cruel e aleatória. Escrever, para mim, é uma maneira de tornar esse caos numa narrativa que inspira fé.
É onde consigo encontrar alguma ordem na minha história, isso também porque sou uma pessoa obcecada em ter controlo sobre as coisas. (risos) Não consigo suportar a ideia de que não haja um propósito para todo o meu sofrimento.
Ficaste surpreendida por as pessoas não abordarem as questões de saúde mental presentes no teu livro, no momento do seu lançamento? No entanto, a personagem principal parece querer desligar-se da sua aparência física e a sua melhor amiga, a Reva, tem distúrbios alimentares gigantes, faz-se vomitar entre outras coisas. Este livro foi uma maneira de abordares temas que conheceste bem na tua vida? Sei que perdeste alguém próximo por sofrer de anorexia.
Acho que foi a maneira que tive de deixar entrar essas coisas na minha escrita. Escrever para mim nunca foi a terapia para uma adição... Dou-te um exemplo, se eu tiver de deixar de fumar (e deixei no passado, um pouco como num milagre) eu posso na mesma escrever dez livros sobre fumar e não vão ser sobre o meu vício de fumar. Às vezes a escrita até pode tornar as coisas piores. Enquanto escrevia sobre esta personagem deprimida em O Meu Ano de Repouso e Relaxamento eu ia ficando cada vez mais deprimida. (risos) Eu conheço muitas pessoas que sofreram de distúrbios alimentares.
Há alturas em que nos sentimos abertos e que podemos partilhar de forma vulnerável as coisas da nossa vida que são incontroláveis e como elas nos chateiam. E há alturas em que sentimos que não nos apetece abordar esses temas. E eu sinto que agora não quero falar da minha própria saúde mental. Mas é uma parte importante das vidas de todos os seres humanos que estão neste planeta. E acho incrível que a cultura aqui na América esteja agora hiper focada na saúde mental das pessoas.

Talvez agora se fale de saúde mental, mas na altura do 11 de setembro de 2001, não era tanto esse o tópico. A geração que viveu esse acontecimento no início da sua vida adulta parecia estar mais preocupada em pertencer...
Tem muito a ver com as gerações dos nossos pais. A minha mãe costumava dizer, "ninguém tem depressões". O que é obviamente impossível, mas na cultura em que cresceram não lhe davam este nome.
Os teus pais são ambos imigrantes, a tua mãe croata e o teu pai nasceu no Irão. São a primeira geração de imigrantes a viver na América?
Sim são. Mas os meus avós da parte do meu pai também se mudaram para cá ao mesmo tempo que o meu pai. Eu sou da primeira geração que nasceu nos EUA.
Sentes que por teres crescido com imigrantes te desligaste da cultura americana? E que isso te tornou numa melhor observadora?
Afirmar algo assim faz sentido sempre que te sentes diferente. Várias coisas podem acontecer para que assim seja. Se a tua família não se sente fluente na cultura em que estás a viver, tens de perceber as coisas por ti próprio. Há uma grande parte da vida em que estás de fora, a olhar à tua volta. Ninguém percebia a minha família porque a minha família é completamente única e tinha um passado único, diferente das famílias dos meus colegas de turma. Por isso, eu olhava à minha volta de uma maneira muito protetora da minha diferença também. As paredes à minha volta sempre pareceram muito altas, por dentro e por fora. Nós não nos misturávamos muito.
Ainda estás ligada ao Irão? Tens família lá?
Não tenho parentes a viver no Irão e nunca lá estive. A minha conexão com o país é só através das histórias que o meu pai partilhou comigo, fotografias que vi. O meu pai deu-me um tapete que trouxe quando partiu. Estou a olhar para ele neste preciso momento. Essas relíquias são importantes, mas relativamente ao que está a acontecer agora no país eu sinto-me um pouco de fora, e apoio-me nas coisas que persas americanos a viver em Los Angeles me vão contando.
As tuas personagens são sempre mulheres muito poderosas e parece estar a haver uma revolução feita por mulheres no Irão, nestes últimos 6 meses...
(silêncio)
Estás muito ligada a escritores da tua geração na América? O teu companheiro é escritor (Luke Goebel, escreveram juntos o argumento do filme Passagem com Jennifer Lawrence). Sentes fazer parte de uma geração de escritores, ou algo parecido?
Não diria isso. Tenho tendência a ser amigável com escritores de qualquer género ou não género (risos). Tenho alguns amigos próximos que são escritores, mas parece quase ser uma coincidência, ainda que se fale de trabalho sempre que estamos juntos. Eles não são meus colegas. Mas sendo uma autora publicada e tendo a sorte de ser enviada pela editora em digressões promocionais, acabamos por nos encontrar todos e falar uns com os outros. Portanto cruzamos caminhos, há relações que se criam.

No Meu Ano de Repouso ou Relaxamento a protagonista hiberna e deixa de se depilar. A Eileen do teu primeiro romance muitas vezes não toma banho. Pergunto se não estás a desafiar a visão daquilo que pode ser uma heroína feminina? Queres levar as tuas personagens para outras dimensões?
O que queres dizer com as outras dimensões?
Falo da aceitação. Há leitores que podem resistir à ideia de imperfeição que pareces defender. A tua personagem no Meu Ano de Repouso e Relaxamento é muito sarcástica com todas as questões da aparência física. É como se as tuas personagens estivessem num desafio daquilo que são os clichés das heroínas femininas. Há leitoras que reagem às tuas personagens umas pouco assustadas...
Bem, ainda bem, elas devem ter medo. Devem ter medo porque ela não se depila, sim… Oh meu deus, há tantas guerras a acontecer agora (risos). Só me apetece dizer, "por favor, vá lá" ... Se calhar têm medo porque não querem que ninguém saiba que se peidam durante o sono... Eu costumava achar tipo, "ó coitadas das raparigas que estão sempre a ser pressionadas para ser magras, bonitas, simpáticas e populares…" Nesta altura acho que já evoluímos e ultrapassámos isso. A minha mensagem para o mundo é a seguinte: "Tenta ter a certeza do que queres fazer e assusta-te se não o conseguires concretizar. Não te assustes por não conseguires ser aquilo que todos querem que sejas."
Pode ser uma mensagem forte. Na maioria das vezes as pessoas podem estar perdidas naquilo que são as expectativas às quais querem responder. Não?
Atualmente não damos muito espaço à nossa imaginação, cada momento livre que temos é passado na internet, isso impede a divagação da mente. E precisas de imaginação para perceber o que queres para ti, na tua vida. Temos imenso tempo livre, e sinto que se ele for preenchido pela internet não nos estamos a oferecer as oportunidades necessárias para perceber do que gostamos realmente.
O que é realmente importante agora? E és muito disciplinada com a tua escrita? Escreves todos os dias?
Eu sou uma pessoa um pouco estranha e posso abstrair-me e ser muito consumida pela minha própria existência sem sentido... (risos) E o tédio que existe nisso. Para mim isso é um alívio, caso contrário poderia ir para outra galáxia. Portanto eu escolho focar-me no que me liga ao planeta, e isso é cuidar dos meus cães, cuidar da minha casa, cuidar de mim e também cuido muito do meu trabalho. Cuido das minhas amizades... (pausa) E sim, eu escrevo todos os dias.
Pareces quase nostálgica ao dizer isso.
(Ottessa ri-se.)
Temos de acabar. Obrigado pela conversa.
De nada. Boa sorte para a escrita do artigo.
