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Polémica no São Luiz. "Desenganem-se, não há revoluções mansas"

Foto: D.R
24 de janeiro de 2023 às 18:38 Cláudia Lucas Chéu

Não sou hipócrita, não escrevo com o coração nas mãos sobre este tema porque não me tira o pão da boca, como acontece com muitas das pessoas envolvidas nesta polémica que tem inundado as redes sociais e criado diversas facções antagónicas dentro do sector da cultura. Pensei várias vezes antes de escrever sobre isto, sei que o risco de levar pedradas em qualquer um dos lados da barricada é enorme, mas farei como ditam os versos populares, guardarei todas as pedras para fazermos um castelo mais tarde, idealmente uma Torre de Babel. Contudo, se não me tira o pão da boca, tira-me do sério e toca-me directamente a falta de empatia, a violência, a ignorância e a tacanhez que muitos e muitas têm revelado nos últimos dias. Por isso resolvi usar as mãos e manter o coração no sítio para tentar reflectir em voz alta convosco. Quem não me quiser ler tem bom remédio, pode parar de ler, este é o meu único aviso à navegação.

Sou a favor da causa trans, obviamente, e subscrevo o que se passou no Teatro São Luiz. Como a maioria deve saber, há dias assistiu-se neste teatro à invasão de palco no decorrer do espectáculo Tudo Sobre a Minha Mãe. Uma encenação de Daniel Gorjão com texto do célebre filme homónimo de Pedro Almodóvar. A actriz travesti brasileira Keyla Brasil interrompeu o palco em fúria pedindo visibilidade e dignidade, e contestando o facto de um dos personagens trans da peça ser interpretado por um actor cis. Para muitos e muitas parece difícil entender esta revolta, até podem defender a posição de Keyla, mas queriam-na polida, limada; ora tentem lá falar normalmente quando vos deixam dias à espera no hospital com uma dor aguda. A analogia é simples, mesmo que vos possa parecer descabida. Muitos e muitas, mesmo do meio artístico, contestaram a violência da forma, eu própria também fiquei perturbada quando vi as imagens, e o facto de se interromper abruptamente um espectáculo numa era em que assistir ao teatro continua a ser maioritariamente um privilégio dos burgueses, esquecendo que a verdadeira violência é a da vida real. Comparar a violência de interromper um espectáculo com a violência de quem tenta sobreviver reivindicando um papel na sociedade é perverso e leviano. Muitos e muitas no sector cultural, nomeadamente no teatro, mostraram-se empáticos em relação ao actor que foi criticado, e que obviamente é lamentável que tenha sido apanhado no meio do fogo, mas mostraram-se indiferentes em relação a uma causa que tenta afirmar uma coisa basilar, simples − a dignidade e a liberdade de todas as pessoas, um lugar digno para todos os corpos.

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Quem não entende este pormenor, que a muitos parece estapafúrdio, chamado respeito pela vida de toda a gente, talvez não consiga entender o que estou a dizer. Perpetuarmos a prática do blackface, hoje, é algo impensável. Querermos que um actor branco ou uma actriz branca pinte a cara de negro para fazer o papel de alguém negro, quando há inúmeros artistas negros que o podem fazer, é, actualmente, impossível. Levou tempo, mas a maioria das pessoas já percebeu porquê. Dizer que isto é a morte do teatro é ignóbil. Recuemos mais na História, vamos até ao tempo de Shakespeare, por exemplo, em que as mulheres não tinham direito a participar nos espectáculos. Os papéis femininos eram interpretados exclusivamente por homens. Vejam como seria hoje o teatro se tivesse permanecido estanque a essa convenção. O teatro, tal como a vida, evolui, muda, por isso, quando vejo algum ou alguma colega bater-se porque tem medo da "morte da ficção", que o teatro deixe de ser teatro, fico perplexa. Querer manter seja qual for a convenção teatral face à sobrevivência de um ou de vários grupos é assustador. Dar visibilidade a corpos trans ou não-binários é urgente, sim; lutar por um mundo melhor fora e dentro do sector cultural é a única convenção universal que se deve impor. E para todas as pessoas que ficaram melindradas com a nudez e a voz em fúria da artista brasileira, relembro que não há revoluções mansas.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990. 

Quem não entende este pormenor, que a muitos parece estapafúrdio, chamado respeito pela vida de toda a gente, talvez não consiga entender o que estou a dizer. Perpetuarmos a prática do blackface, hoje, é algo impensável. Querermos que um actor branco ou uma actriz branca pinte a cara de negro para fazer o papel de alguém negro, quando há inúmeros artistas negros que o podem fazer, é, actualmente, impossível. Levou tempo, mas a maioria das pessoas já percebeu porquê. Dizer que isto é a morte do teatro é ignóbil. Recuemos mais na História, vamos até ao tempo de Shakespeare, por exemplo, em que as mulheres não tinham direito a participar nos espectáculos. Os papéis femininos eram interpretados exclusivamente por homens. Vejam como seria hoje o teatro se tivesse permanecido estanque a essa convenção. O teatro, tal como a vida, evolui, muda, por isso, quando vejo algum ou alguma colega bater-se porque tem medo da "morte da ficção", que o teatro deixe de ser teatro, fico perplexa. Querer manter seja qual for a convenção teatral face à sobrevivência de um ou de vários grupos é assustador. Dar visibilidade a corpos trans ou não-binários é urgente, sim; lutar por um mundo melhor fora e dentro do sector cultural é a única convenção universal que se deve impor. E para todas as pessoas que ficaram melindradas com a nudez e a voz em fúria da artista brasileira, relembro que não há revoluções mansas.

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