Alana S. Portero, escritora. “A direita está a crescer, as vidas trans são a porta de entrada para violar os direitos das outras pessoas.”
As ruas de Madrid, e os passos de uma menina trans à procura de um lugar no mundo, apresentam-nos a uma sociedade misógina, patriarcal e religiosa, onde não há espaço para a diferença. A fantasia consegue superar o ódio e a violência? “Maus Hábitos” é um romance de estreia, poético e dramático, a literatura de Alana Portero, com quem conversamos.

Alana tem as unhas pintas de um verniz azul-claro. Está no seu escritório em Madrid, rodeada de estantes e livros, o azul das suas mãos poderia ser um pedaço de céu no mundo poético que habita o seu romance Maus Hábitos. Fala-nos numa videochamada, há um pouco de luz natural a iluminar-lhe o rosto. As ruas e os bairros da capital espanhola na sua escrita ganham uma dimensão religiosa, no seu léxico; os toxicodependentes que foram apanhados na espiral negativa da classe operária podiam ser anjos de um santuário pintado a folhas de ouro.
A menina com excesso de peso, protagonista desta história, vai dar-nos a conhecer personagens que há muito não encontravam o lugar merecido na literatura contemporânea. Escreve sobre donas de casa, vizinhas abusadas e espancadas, cuidadoras informais que dedicam uma vida a lutar pelo fim de outra, empregados de bares gay que leem Truman Capote. Há também estrelas da música pop que se intrometem no quotidiano madrileno, são elas o sopro de esperança na existência desta protagonista que procura a verdade do seu corpo e não segue as regras da masculinidade ditadas pelos anos 80, época em que se passa parte da ação do livro. Maus Hábitos saiu há menos de um ano em Espanha, encontrou de imediato traduções em francês e inglês, tem sido defendido pelo cineasta Pedro Almodóvar.


Alana S. Portero agradece agora os elogios que fazemos à sua história, parece comovida. Diz-nos ter escrito excertos e pequenas notas ao longo de cinco anos. Fechou-se depois em casa a escrever 14 horas por dia, durante um mês. A família apoiava-a tratando das refeições."Foram 298 horas de escrita", diz a rir. Os seus artigos, como freelancer, têm encontrado lugar nas páginas de revistas como a Vogue Espanha ou o jornal espanhol digital Público. Através da videochamada olhamos para o seu escritório fascinados, naquele pequeno espaço nasce uma voz absolutamente necessária.
Queria começar por ler uma citação do teu livro que me parece poderá dar ritmo à conversa. "Ouvir os adultos a falar das pessoas diferentes deixava marcas que nunca se apagavam." (pág.39). Lembro-me, assim, que a personagem principal do livro é uma jovem rapariga trans. Achas que o mundo está pronto para seguir os passos de uma rapariga trans? O que tem acontecido até agora na forma como o teu livro tem sido recebido?

O mundo tem demonstrado estar mais do que preparado para seguir os passos desta protagonista. O livro tem tido uma tiragem extraordinária. As realidades trans, como quaisquer realidades que não são normativas (ou que não pertencem à sociedade cis heterossexual capitalista), têm sido apresentadas ao mundo através de estudos e de ensaios numa observação fria. Isso não funciona. É ótimo para acumular conhecimento, mas não funciona. As pessoas incorporam-se no universal através das narrativas. Acho que assim nos entendemos melhor. Assim percebemos que a narração da vida de uma personagem, que neste caso é uma mulher trans, se parece muito com a realidade de qualquer outra pessoa.
É quase mais importante a situação da sua classe social, e todas essas coisas que também fazem esta personagem, que para além de ser uma mulher trans, é uma miúda de um bairro da classe operária. Isso é tão importante como a sua condição trans.?Nós temos direito a ser universais e somos. Só temos de o contar. Temos de contar as nossas vidas e quebrar também a ideia de que são muito diferentes das dos outros ou que somos outra coisa. E não somos outras coisas. Ser trans é intrinsecamente humano.
Gosto muito quando falas de universalidade. Nas ruas de Madrid, que descreves no livro, encontrei também muito da Lisboa dos anos 80 na qual cresci. São quase os mesmos bairros, existem os mesmos problemas com a heroína. Há momentos em que descreves algumas personagens e parece que estás a utilizar termos religiosos. Qual a importância da religião na tua própria vida, e na vida desta personagem que nasceu em Madrid?

Eu acho que é fundamental. Tive uma educação católica, e as minhas primeiras referências estéticas e sexuais veem do imaginário católico. Por exemplo: a religião para a minha mãe é importante, e ela a mim transmitiu-me a importância da fé. Acredito que a fé opera de um modo muito primário nos seres humanos e não consigo abstrair-me disso. Eu nunca quis ter uma aproximação cínica da fé, o cinismo é algo que não me interessa aqui. A fé é parte fundamental da construção humana, podemos assimilá-la ou rejeitá-la, mas ela constrói-nos, e insisto... as minhas primeiras referências estéticas foram feitas através da fé, através do imaginário dos anjos, através dos santos e das santas. Depois veio a mitologia, que é o testemunho de outras fés que existiram há muito tempo.
Como a mitologia das peças de teatro que estudaste em tempos?
Sim, a mitologia grega ou latina. E os contos populares, e todo esse mundo que é o mesmo que construiu a minha imaginação e a minha forma de ver o mundo. As estrelas pop que aparecem no livro funcionam também como um santuário, como algo sublime no qual nos projetamos. Algo em que se deposita a esperança, ou uma fantasia de transformação e beleza que não pode ser tocada. Em suma, isso é a religião, é o lugar onde vivem as coisas bonitas e sublimes, acima do humano, e nas quais não podemos tocar. Isso ensinou-me a ver o mundo. É inevitável que escreva com muitas referências religiosas.
No livro dizes que a Madonna é mais profunda e vai além das interpretações que os adultos lhe davam na altura em que chocava o mundo com os seus concertos de música pop (Blond Ambition Tour 1990). Ao dizer isso, a personagem olha para ela com esperança. É como se Madonna fosse realmente uma santa?
É como a Virgem Maria. É uma figura feminina sublime e maternal que funciona como uma companhia. No livro diz-se que é a padroeira das existências tortuosas, das existências desviadas. E era uma figura que de um disco para outro mudava completamente a sua imagem, parecia outro ser completamente diferente do que tinha sido antes. Isso não é humano, não é palpável, não é real. Sobretudo quando és muito jovem. É possível ver uma fantasia maravilhosa numa figura como a Madonna. E mesmo pessoalmente, fora deste livro, para mim Alana... A Madonna foi uma presença que esteve na minha vida numa altura em que não havia nada. Quando ninguém podia acompanhar o meu próprio trajeto interno ela acompanhava-me.

Dialogava contigo?
Em tudo sim. Através das suas canções, através dos seus posters.Eu podia pedir-lhe o seu amparo e ela nunca me o negou. E além disso a Madonna sempre esteve rodeada de pessoas LGBTQI+. Ela era uma presença que me dava segurança.
Há outra coisa importante no teu livro – os vizinhos e as vizinhas. E há a violência doméstica que se ouve no prédio. A mãe da protagonista para de chamar a polícia quando ouve o vizinho Aurélio bater na mulher, não servia de nada chamá-los. Isso lembrou-me também a minha infância em Portugal e os anos 80. Quando existia violência doméstica num lar e se fazia queixa na polícia a resposta costumava ser, "não há nada a fazer, ele é seu marido, volte para casa". Nesta espécie de mapeamento humano que fazes dos bairros parece que tentas chegar a algo muito real e próprio dessa década, era esse o objetivo? Abordar estas violências alimentadas e normalizadas pelo patriarcado? E como foi essa construção pensada para a ficção?
Ultimamente começou a olhar-se para os anos 80 com uma nostalgia que me parece perigosa. Porque foram tempos de mudança e algumas vezes foram tempos maravilhosos, mas foram tempos muito duros. E há coisas que damos atualmente como assentes ou seguras, tais como a atenção que é dada hoje às mulheres que são maltratadas. Nos anos 80 isso não existia de maneira alguma. No livro, isso foi construído através das minhas memórias e sobretudo as personagens que eu criei para contar a década de 80 não podiam mentir. A mim preocupa-me a nostalgia mal interpretada, preocupa-me que a literatura pinte cenários que me parecem ser reacionários. E era realmente assim. As mulheres que eram espancadas pelos maridos não eram ajudadas por ninguém. (pausa) Ninguém as ajudava. A polícia ia a essas casas, falavam com o marido, diziam "não deves fazer isto" e iam-se embora. A porta fechava-se. Havia esta sensação de que nada podia imiscuir-se nas outras casas, ou entrar na vida das outras pessoas.

Havia restos da ditadura ainda nesse tipo de comportamento?
Completamente. Madrid tinha um movimento cultural a fervilhar que queria romper com tudo, mas isso era só uma parte. Os bairros de Madrid eram bairros da ditadura, vivia-se exatamente da mesma maneira que nos últimos anos da ditadura, a mentalidade não tinha mudado. No livro eu queria contar isso de forma precisa, usei os meus conhecimentos enquanto historiadora e as minhas recordações. A fantasia, a qual recorre o romance, não podia servir para encobrir problemáticas muito graves. Insisto... Os problemas de classe e os problemas económicos e a vida nos bairros têm o mesmo peso no romance que a experiência trans. Levei isso muito a sério.
Atualmente no Instagram há um sem fim de personalidades não binárias. Algumas são figuras latinas que têm milhares de seguidores, como a cantora venezuelana ARCA. Há 20 anos seria impossível isto acontecer, não existiam estas plataformas.Digo-te isto a pensar também nos filtros do Instagram que ajudam a criar todo um imaginário. Talvez sirvam para camuflar a classe operária no mundo virtual? E como vês esta possibilidade de expressão comparada aos tempos em que cresceste?
É óbvio que agora é mais fácil, há mais conhecimento. Primeiro sabe-se que estas pessoas existem, sabe-se que não são uma desgraça e que podem ter uma vida a ser quem são realmente. E depois há uma grande visibilidade e um sem fim de ferramentas estéticas que podem ajudar a desabrochar, isso é maravilhoso.

Não podemos confundir a visibilidade com direitos alcançados. Acho que avançámos muito, mas a nossa presença no mundo continua a ser muito frágil e é um terreno que ainda está por conquistar. Este grande leque de possibilidades, estéticas e mediáticas, podem dar uma imagem de progresso enganadora. Convém que o estético e o mediático esteja acompanhado de um trabalho de base que consiga reforçar as nossas vidas em todas as classes sociais. Ainda há miúdos e miúdas de classe operária que simplesmente só têm acesso às coisas de uma maneira estética, e os seus direitos básicos continuam a estar muito frágeis. Vocês em Portugal sabem-no bem... vivemos um momento que é politicamente complicado. A direita está a crescer por toda a Europa, os direitos LGBTQI+ e as vidas trans são a porta de entrada para derivar e violar os direitos das outras pessoas. Cuidado para não confundir visibilidade com realidade porque não é exatamente o mesmo.
A tua personagem esconde-se na casa de banho para se maquilhar, como num ritual secreto, ela esconde-se para ser ela própria. Queria misturar estas imagens do livro com as tuas vivências pessoais, pois como jornalista tens escrito muito para revistas de moda. Qual é a tua relação com esta área?
Tem sido uma relação constante ao longo da minha vida. Devo às revistas de moda parte da minha formação intelectual. A alta-costura tinha algo do mundo dos santos pop de que falava há pouco. A alta-costura era um lugar de sublimação, onde sempre se experimentou muito. E o mundo da moda, como eu o via na minha infância, era um mundo onde existiam masculinidades femininas... existiam homens femininos. Eu pensava que isso era o máximo ao qual podia aspirar ser. Eu sabia quem era... e sabia que não era um homem (pausa). A moda dava-me exemplos de que se podia ter algum reconhecimento, fosses tu o que fosses. Por outro lado, a construção de quem somos, as saídas do armário trans por exemplo, estão muito ligadas ao estético, isso é inevitável por causa do nosso contexto cultural. A moda permitia-me a possibilidade de fantasiar com o que tinha vestido, em algo tão material e mundano como a roupa, eu encontrava um espaço de fantasia. Sempre que me pedem textos para revistas de moda sinto um enorme prazer. Sei que há alguém do outro lado a ler o que eu escrevo. Gosto que essas revistas contem comigo para poder abrir essa janela a alguém que pode estar a precisar. Óbvio que a moda tem muitos problemas de classismo, é uma indústria muito problemática. Mas a fantasia é inegável. E poder estar do outro lado do papel dá-me muita felicidade.

Como é passar para o outro lado? Estás habituada a entrevistar e agora entrevistam-te?
A exposição é estranha, mas sei que falo de um lugar de privilégio que me foi concedido e tenho de o usar em benefício da minha obra que quero defender. Mas também me sinto obrigada a usar esta posição de privilégio para poder falar de tudo o que acabámos de falar. Quero defender posições que não têm tanta representação. (pausa). É uma situação ambivalente que me dá algum medo, não é assim tão fácil. No fundo esta exposição significa que o meu romance me abriu portas que estavam fechadas, e isso faz parte de um êxito...então, quando sinto medo e percebo que tudo isto é uma consequência de um êxito, tento acalmar-me. (risos)
Vi entrevistas tuas em que dizes que a literatura deve lutar contra os rótulos. Porque se encaixam os livros em secções, como a LGBTQI+ ou literatura feminista ou ativista? E porque queres alertar-nos para esse combate?
Se eu quiser reclamar esses rótulos tenho de ser eu a fazê-lo. Não vou permitir que sejam pessoas de fora. A literatura de mulheres ou LGBTQI+ é etiquetada numa tentativa de ser reduzida. Fazem-no para que seja colocada na estante do queer ou do feminismo, para que leitores concretos a encontrem... Eu não vou permitir que reduzam a minha obra. A minha vida é política. (pausa) É óbvio que escrevo literatura que pode ser catalogada, mas eu tenho direito de ser universal e não vou permitir que diminuam o meu trabalho com fins comerciais ou políticos. Isso seria entrar no jogo deles, seria permitir que continuassem a fazer o que nos fazem sempre. Tentam reorientar-nos e dar-nos um espaço limitado para viver. E isso não é verdade, eu não sou marginal... não o sou. E se eu for marginal, a minha margem é o centro de muitas pessoas. A literatura que escrevem as pessoas LGBTQI+, as pessoas trans ou as mulheres sem apelido... é literatura universal.
Como e quando começaste a escrever?
Comecei a escrever poesia com 15 ou 16 anos. Eu amava os The Doors e os The Velvet Underground, as letras do Jim Morrison ou do Lou Reed foram extremamente importantes para mim. Com o meu inglês muito mau fui capaz de as traduzir e fiquei impressionada. Eu imitava aquelas letras, tentava escrever poemas parecidos... e também fui muito influenciada pelos poetas românticos como o Byron, Shelley e o John Keats. Essa mistura ganhou forma na minha cabeça e comecei a experimentar coisas com a minha própria voz. Até hoje nunca mais parei de escrever.
Gostas da capa portuguesa do teu livro?
Muitíssimo, é uma das minhas favoritas. Parece uma fotografia minha de quando tinha 18 anos, tenho algumas fotografias muito parecidas.
