Dia Internacional da Mulher

Literatura, um clube de cavalheiros?

Em 120 anos de História do Nobel da Literatura, apenas 17 prémios foram entregues a mulheres, o que ajuda a demonstrar as dificuldades que as autoras tiveram de enfrentar para conseguir escrever, ser publicadas e levadas a sério, em pé de igualdade com os homens. A propósito do Dia Internacional da Mulher, que se assinala esta quarta, 8, retrato de uma realidade em mudança mas que ainda está longe de chegar à paridade.

As escritoras Maria Judite de Carvalho, Virginia Woolf e Colette.
As escritoras Maria Judite de Carvalho, Virginia Woolf e Colette. Foto: Cofina Media/Getty Images
08 de março de 2023 Maria João Martins

Imagine uma irmã de Shakespeare tão dotada para o Teatro e para a Literatura como ele próprio. E que, em vez de ficar em casa a ajudar a mãe nas tarefas domésticas, correu atrás do seu sonho. O que lhe teria acontecido, no século XVI, nessa Inglaterra  em que a própria rainha Isabel I teve de se transformar quase numa casta sacerdotisa para assegurar o trono que herdara do pai?  É bem possível que a jovem encontrasse, não a glória perpétua do irmão William, mas uma morte solitária e precoce na valeta, depois de inumeráveis sofrimentos e humilhações. Esta foi a hipótese que a escritora Virginia Woolf (1882-1941) colocou no ensaio Um Quarto que Seja Seu, publicado em 1928, em que reflete sobre as condições que explicam a pouca representatividade feminina na vida cultural ao longo dos séculos, nomeadamente na História da Literatura: "Judith era tão aventureira, tão imaginativa, tão curiosa para ver o mundo quanto William. Mas ela não foi mandada à escola. Ela não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, ainda mais de ler Horácio e Virgílio. Ela pegava num livro de vez em quando, um dos de seu irmão talvez, e lia algumas páginas. Mas aí vinham os seus pais e mandavam-na ir remendar as meias ou cuidar do guisado, e não ficar sonhando acordada com livros e papéis. […] Talvez ela rabiscasse algumas páginas num sótão às escondidas, mas era cuidadosa ao escondê-las ou queimá-las", escreve Virginia Woolf, no que é considerado um dos textos mais influentes do século XX.

A escritora Virginia Woolf, 1933.
A escritora Virginia Woolf, 1933. Foto: Getty Images

A questão da autoria feminina (e do modo como ela foi condicionada cultural e socialmente) colocada de forma tão veemente por Virginia Woolf remete para o próprio papel da mulher numa sociedade persistentemente patriarcal. Numa iniciativa inédita, a Penguin Random House acaba de lançar uma edição especial intitulada Em Nome da Mulher, em que se reúnem textos de autores nacionais e estrangeiros mas assinados com o apelido materno, e não com o paterno. Assim, teremos, entre outros, William (Shakespeare) Arden, Fernando (Pessoa) Nogueira, Cesário (Verde) dos Santos, Jane (Austen) Leigh, João (Tordo) Branco ou Helena (Magalhães) Vilas Boas.

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À parte o valor simbólico de iniciativas como esta, a descriminação não é coisa de épocas há muito passadas. Em pleno século XX, muitas foram as escritoras de grande qualidade, cuja obra ficou na sombra dos maridos e companheiros. Foi o caso de Maria Judite de Carvalho (1921-1998), casada com o também escritor e professor universitário, Urbano Tavares Rodrigues, desde 1949. Discreta e reservada, fez carreira como jornalista, primeiro na revista Eva, onde foi sucessivamente secretária, redatora e chefe de redação. Em 1968 ingressou no vespertino Diário de Lisboa, com as funções de redatora. Mas mais do que jornalista, Maria Judite foi sobretudo uma escritora de exceção, com uma sensibilidade particular à solidão vivida no feminino. Entre os seus livros publicados em vida contam-se Tanta Gente, Mariana; Paisagem sem BarcosOs Armários VaziosAlém do Quadro ou Seta DespedidaA título póstumo, foram publicados A Flor Que Havia na Água Parada (poemas); Havemos de Rir! (teatro) e Diários de Emília Bravo. A sua obra completa tem vindo a ser publicada desde 2018, mas o seu nome e trabalho continuam a ser bastante menos conhecidos do que os do marido.

A escritora e cronista Maria Judite de Carvalho.
A escritora e cronista Maria Judite de Carvalho. Foto: Cofina Media

Fenómeno idêntico terá acontecido com Isabel da Nóbrega (1925-2021), figura cimeira da vida cultural portuguesa na 2ª metade do século XX. Jornalista, escritora, divulgadora cultural (foi autora de vários programas literários na rádio e televisão), é hoje bem mais conhecida por ter sido a segunda companheira de José Saramago, a mulher a quem ele dedicou Memorial do Convento, para depois retirar a dedicatória quando assumiu o romance com Pilar del Río. No entanto, importa conhecer a obra literária de Isabel da Nóbrega, nomeadamente o romance Viver Com os Outros (Prémio Camilo Castelo Branco, 1964), mas também os livros de contos Solo para Gravador As Magas e as várias histórias que escreveu para crianças. Para além disso, fez parte do grupo fundador do diário A Capital, mas a sua colaboração dispersa por alguns dos mais importantes títulos portugueses da época atinge os milhares de crónicas. São saborosas, cultas, esclarecidas e bem mereceriam uma edição em volume. Um esquecimento não muito diferente do conhecido por mulheres escritoras como Zelda Fitzgerald (mulher de F. Scott Fitzgerald), Martha Gellhorn, terceira mulher de Hemingway ou em época mais remota com Mary Wollstonecraft Shelley (autora de Frankenstein) e seu marido, o poeta Percy Shelley.

Fotografia da escritora Isabel Nóbrega.
Fotografia da escritora Isabel Nóbrega. Foto: Duarte Roriz/Jornal de Negócios/Cofina Media

Mais do que a descriminação, a consciência aguda do julgamento preconceituoso dos outros levou muitas escritoras a optarem por adoptar um pseudónimo masculino, pelo menos durante algum tempo. A lista é extensa e surpreendente já que inclui alguns dos nomes hoje fundamentais no cânone literário ocidental. Comecemos por Karen Blixen, que o mundo conhece como a mulher que contou a sua vivência na colónia britânica do Quénia, no livro África Minha. O que poucos saberão é que essa mulher, toda ela determinação, começou por publicar sob o pseudónimo Isak Dinesen, com o qual apresentou, por exemplo, os livro Sete Contos Góticos, A Festa de Babette ou Contos de Inverno. Mas usou também o nome de Pierre Andrézel.

A escritora Karen Blixen, 1959.
A escritora Karen Blixen, 1959. Foto: Getty Images

Opção idêntica fez Amantine Lucile Aurore Dupin, que começou a usar o pseudónimo George Sand em 1831, depois de se divorciar do marido e se mudar para Paris. Mas ela também aproveitou a oportunidade para começar a usar roupas masculinas, o que lhe permitiu caminhar pelas ruas parisienses em liberdade e ter acesso a lugares onde a entrada de mulheres era proibida. Só dessa forma conseguiu estabelecer contacto com alguns dos mais notórios intelectuais franceses de sua época, nomeadamente Victor Hugo e Flaubert. Quando morreu, aos 71 anos, o seu funeral foi um acontecimento nacional. O autor de Os Miseráveis escreveu: "George Sand foi uma ideia. Teve um lugar único na nossa época: foi uma grande mulher."  

Do outro lado do Canal da Mancha, também uma George se fez a si mesma. Falamos de Mary Ann Evans, que foi jornalista, poeta e autora, e que publicou o seu primeiro romance, Adam Bede, em 1859. Para evitar ser vista como uma simples escritora de histórias românticas, Mary Ann usou o pseudónimo George Eliot, já que considerava que só seria levada a sério se usasse um nome masculino, evitando também um escrutínio público que seria diferente se revelasse a sua identidade. Também em Inglaterra, pela mesma época, as irmãs Charlotte, Emily e Anne Brontë usaram respetivamente os nomes masculinos Currer Bell, Ellis Bell e Acton Bell. Com eles, publicaram alguns dos mais importantes títulos da História da Literatura britânica como Monte dos Vendavais, A Paixão de Jane Eyreou Agnes Grey.

Zelda Fitzgerald com o marido Scott Fitzgerald e a filha Frances em Paris, 1925.
Zelda Fitzgerald com o marido Scott Fitzgerald e a filha Frances em Paris, 1925. Foto: Getty Images

O caso mais dramático foi, no entanto, o da francesa Colette que permitiu que os seus primeiros quatro (e muito bem sucedidos) livros (a série Claudine) fossem publicados em nome do marido, o também escritor Henry Gauthier-Villars (1859–1931). Quando se divorciaram, depois de um processo tão lento como conflituoso, foi vedado à escritora o acesso aos direitos de autor sobre essas obras. Para sobreviver, a escritora começou a atuar nos palcos de musicais pela França, algumas vezes interpretando a sua própria personagem Claudine, ganhando tão pouco que mal dava para viver. Mais tarde retrataria este período da sua vida no livro La Vagabonde (1910). 

A escritora Colette, pseudónimo de Sidonie-Gabrielle Colette.
A escritora Colette, pseudónimo de Sidonie-Gabrielle Colette. Foto: Getty Images

Hoje, a realidade é bem diferente. Mas ainda estamos bem longe da paridade no acesso à publicação e no modo como a escrita é julgada pelo olhar alheio. Duvidam? Basta olhar para os números do Nobel (ou de qualquer prémio literário importante): 102 homens premiados para 17 mulheres.

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