Entrevista. O lado sagrado dos The Kills
O duo apresentou recentemente God Games, um álbum criado durante a pandemia, no qual desbravam novos caminhos para uma música que continua tão crua como no primeiro dia. Falámos com Alison Mosshart e Jamie Hince numa soalheira esplanada lisboeta e percebemos porque é que continuam a banda mais cool (e sexy) do rock.

Já lá vão mais de 20 anos desde que os The Kills se apresentaram ao mundo com uma música tão honesta quanto visceral, feita apenas a dois, que cedo lhes garantiu um lugar de destaque no olimpo do rock. Desde então, o duo composto pela americana Alison Mosshart (voz) e pelo britânico Jamie Hince (guitarra), editou cinco álbuns que alargaram cada vez mais o seu universo sonoro, que nunca como agora, em God Games, foi tão expandido. Conforme explicaram à Máxima, este sexto trabalho de originais "surgiu após um longo período de experimentação", apenas "possível devido à pandemia". O resultado foi "algo completamente novo", que surpreendeu não só os fãs como os próprios músicos, pelo modo como lhes permitiu "encontrar novos caminhos criativos". A conversa, porém, não se limitou ao disco porque, afinal, não é todos os dias que estamos cara a cara com uma das mais importantes e influentes bandas do rock alternativo.


Como é que chegaram a este novo local onde estão agora, musicalmente falando? Trata-se de um álbum muito diferente daquilo a que os The Kills habituaram os fãs, com mais teclas e menos guitarras?
Jamie Hince – Nunca pensamos muito nisso quando estamos a fazer música, mas de facto, ao ouvir o álbum completo, não deixei de ter a sensação de que fomos um pouco mais além. Creio que teve a ver com o facto de termos tido muito mais tempo, porque começámos a escrever logo no início da pandemia, sem ter a noção da maldição que estava prestes a cair sobre nós. A primeira vez que ouvi falar de lockdown era para ser apenas de duas semanas e pensei: "Lockdown, what the fuck?" Ninguém, nos seus sonhos mais extravagantes, poderia imaginar o que aí vinha. A partir de dada altura, todavia, essa ausência de horizonte temporal tornou-se uma estrada aberta em termos criativos. Foi um momento quase eufórico, porque percebemos que teríamos tempo para experimentar tudo, podíamos gastar três dias a tentar fazer algo completamente bizarro e, se não funcionasse, a seguir tentávamos outra coisa.
A maldição, como lhe chamaram, transformou-se então numa bênção?

Alison Mosshart – Foi um dos períodos mais estranhos da minha vida, mas olhando para trás, sim, tento encarar esse tempo como positivo, que nos permitiu fazer um álbum de que me orgulho bastante.
JH – Na verdade, grande parte do meu trabalho passou por tentar impressionar a Alison e tentar obter alguma validação da parte dela para as merdas que estava a fazer [risos].
E o Jamie conseguiu impressioná-la, Alison?

AM – Bastante, fiquei não só muito impressionada como bastante entusiasmada com os novos caminhos que se estavam a abrir para a nossa música. Por exemplo, pela primeira vez na minha carreira, escrevi canções num teclado, o que abriu outras possibilidades ao nível melódico. Foi um processo muito divertido.

JH – Sempre tivemos um problema na nossa música, por não termos baixo ou bateria, que nos obrigou a preencher esses espaços de outras formas. No início até de forma muito rudimentar, comigo a fazer o som do baixo na guitarra, com o meu polegar. E agora, 20 anos depois, encontrámos um teclado midi que consegue fazer de baixo. Parece-me uma evolução natural, ainda que a alguns possa parecer estranha.

Vai ser desafiante transpor isso para um palco?
AM – Vai ser bastante desafiante, de certeza. Mas todos os nossos álbuns são sempre muito desafiantes de tocar ao vivo.
JH – Sim, mas neste há muitas questões que se colocam, tantas que até fico nervoso só de pensar nisso [risos].

O Jamie falou de ter tentado impressionar a Alison, mas como é realmente o vosso processo criativo, sendo apenas dois?
AM – Desafiamo-nos mutuamente de forma constante. E também damos muito na cabeça um ao outro [risos].
JH – Normalmente não compomos juntos e quando um de nós tem uma ideia, temos sempre espaço para a desenvolver. Ou seja, nunca trabalhamos juntos no início, apenas quando as ideias de cada um já tomaram uma forma. Gosto muito de receber as ideias da Alison e pensar: "Foda-se, isto é genial!" E a seguir tentar enviar-lhe algo que esteja à altura. Não de uma forma competitiva, mas antes para surfar a onda eufórica de criatividade que me invade sempre que isso acontece.

Pegando no título do álbum, God Games, onde é que está Deus nestas músicas?
JH – Bem, Deus na verdade não existe [risos].
AM – Mas não digas a ninguém [risos].

JH – E mesmo sabendo-o, não consigo imaginar a existência humana sem a invenção de Deus, que acaba por funcionar como uma espécie de pedra basilar para questões tão importantes como o sistema moral, por exemplo. E até eu o invento à minha maneira, quando estou a criar, portanto percebo perfeitamente a necessidade de Deus.

Como é que do alto dos vossos mais de 20 anos de carreira olham para todas as mudanças que a indústria tem sofrido nos últimos anos?
AM – Do ponto de vista dos músicos é preocupante, porque tudo mudou muito depressa e não para melhor.
JH – Quando começámos a fazer as primeiras canções para os The Kills, em 2001, ainda escrevíamos cartas para nos contratarem para concertos.
AM – Eu nem tinha telemóvel!
JH – Em apenas 20 anos a paisagem mudou completamente. Quando apareceu o streaming, parecia que estava a chegar um novo tempo, mas depois continuaram a aparecer tantas coisas, como o Snapchat...
AM – Creio que isso já nem existe.
JH – Exato, era essa a minha piada, para demonstrar como tudo se tornou demasiado efémero, incluindo a música. Era uma boa piada, mas assim vou só parecer um velho que não sabe do que fala [risos].
E essa rapidez é o problema?
AM – Não, o problema é que a rapidez retirou importância, significado e sentimento à música, deixando-a refém da máxima capitalista do "como poderemos fazer mais dinheiro". E os artistas foram completamente lixados por este novo sistema.
JH – A primeira vez que tive noção desta nova realidade foi quando, já há alguns anos, um membro da nossa equipa avisou que nos iam filmar. Perguntei para quê? E a resposta foi: "para criar conteúdos". Nunca tinha ouvido tal coisa [risos], mas percebei logo que íamos começar a desvalorizar tudo, de forma deliberada, para que alguns, muito poucos, ganhassem mais dinheiro.

Afinal de contas ainda acreditam que a música é o mais importante?
AM – Sem dúvida, mas não sei se as pessoas ainda se lembram disso, porque, nalgum ponto do processo, alguém decidiu que a música deveria ser de borla. Mas infelizmente não é, pelo menos para quem a faz. Acredito que a música continua a ser muito importante para as pessoas, mas atualmente, à maioria, falta-lhe estabelecer essa ligação emocional com os músicos.
Há sempre os concertos para estabelecerem essa ligação emocional com o público...
AM – Sim e adorava ter a possibilidade de andar para sempre em digressão, mas já se passa um bocado o mesmo nos concertos. É cada vez mais caro andar em digressão e já houve situações em que quase parecia estarmos a fazê-lo por caridade, mesmo com o concerto esgotado. Parece que depois da pandemia tudo ficou financeiramente lixado e nós estamos contra isso, porque não é verdade.
JH – E há outros pormenores, como quando nos dizem que temos de ter ecrãs LED em palco para tocar nos festivais, porque senão ninguém vai prestar atenção. Ou que não podemos tocar com o nosso próprio equipamento, porque é muito caro transportá-lo de avião. Nem levar a nossa equipa, pelas mesmas razões.
AM – É de loucos, qualquer dia nem sequer há dinheiro para ter os artistas a tocar e talvez venham a ter apenas algum "conteúdo", para entreter as pessoas enquanto consomem. O problema é que os festivais se tornaram uma máquina de fazer dinheiro e o que a maioria oferece às pessoas é realmente mau. Estão sobrelotados, em muitos não há sequer sítio para fazer chichi, as pessoas são tratadas como animais e ainda pagam muito para isso. Isso deixa-me triste, porque poderia ser uma experiência fantástica e torna-se apenas muito stressante.

Como é que os artistas podem combater isso?
AM – Não faço ideia, gostava de continuar a gravar discos e a tocá-los ao vivo, que é aquilo em que somos realmente bons.
*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.
