Vicente Alves do Ó: “O Amadeo hoje em dia seria cancelado, por muito bem que pintasse! Todo ele é uma contradição e isso é bonito.”
O realizador português estreia a 26 de janeiro Amadeo, o filme sobre a vida de Amadeo de Souza-Cardoso. Na manhã seguinte da antestreia rodeado de amigos, colegas e jornalistas, sentou-se com a Máxima para revistar o filme e, também, parte da sua própria vida.
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20 de janeiro de 2023 às 07:00 Rita Silva Avelar
Vicente Alves do Ó chega ao nosso encontro poucos minutos depois da hora combinada, visivelmente enérgico. "Eles bem queriam que eu os acompanhasse nos copos, ontem à noite, mas eu disse que ia ter uma jornalista à minha espera logo muito cedo!" diz, rindo-se ao mesmo tempo, imediatamente antes de pedir um café e sentar-se. Estamos numa esplanada em frente à Cinemateca, em Lisboa. Na véspera, a 10 minutos do seu filme Amadeo estrear no São Jorge, Vicente beijava ruidosa, frenética e quase aleatoriamente toda a gente que encontrava, apertando as bochechas dos convidados, igualmente divertidos, com as suas mãos entre as faces.
É neste mood festivo - e meio embriagado pelo carinho e apoio que sentiu há escassas horas - em que se encontra, quando começamos a conversar. Vicente, que tem 51 anos acabados de fazer e uma boa mão cheia de filmes celebrados pelo público português, começa precisamente por contar como estava "a suar em bica" quando o filme começou a rodar, num misto de nervosinho e êxtase, perante uma multidão curiosa e expectante. Afinal, esperou (esperámos todos) três anos para ver Amadeo chegar às salas de Cinema a 26 de janeiro e é o culminar de uma trilogia de biografias iniciada em Florbela (2012), sobre uma parte da vida da poetisa portuguesa, com Dalila Carmo, Anabela Teixeira e Ivo Canelas, e continuada em Al Berto (2017), sobre o poeta com o mesmo nome e um verão de 1975 em Sines, com Ricardo Teixeira, José Pimentão, Raquel Rocha Vieira e José Leite.
Amadeo de Souza-Cardoso, não reconhecido em vida como o grande pintor que hoje Portugal celebra e cuja obra, quase completa, está em exposição na Gulbenkian (excepto ultimamente, com as obras a que o CAM está sujeito), é interpretado por Rafael Morais, ao lado de Ana Lopes (sua mulher, Lucie), Lúcia Moniz, Mariana Pacheco, Carolina Amaral e os já desaparecidos e talentosíssimos Rogério Samora e Eunice Muñoz. Em Amadeo (Ukbar Filmes), o realizador e argumentista nascido em Sines, em 1972, revisita uma parte da vida breve do pintor, que desapareceu em 1918 vitimado pela gripe espanhola, e cuja história continua envolta num certo mistério que Vicente, propositadamente ou não, também não esclarece por completo.
Comecemos pelo evidente: em Amadeo retratas a gripe espanhola, e no mês em que terminas as filmagens o mundo muda radicalmente com as notícias da pandemia. O que te passou pela cabeça?
As filmagens terminaram em dezembro de 2019. A ideia era estrear em novembro de 2020, no aniversário do Amadeo, mas quando explode a pandemia e se dão os confinamentos, e a relação com as salas de espectáculos se torna complicada…. Percebemos que não ia dar. Cheguei a ir ao cinema e éramos 3 a 4 pessoas numa sala. Eu não estava preparado para a pandemia, mas na primeira vaga às vezes acontecia-me não levar tão a peito o que estava a acontecer, o que lia e ouvia. Porque tinha acabado de passar três anos da minha vida a estudar aquilo [a gripe espanhola]: na parte final do filme, sobretudo, queria mostrar o desconhecimento total que as pessoas tinham há 100 anos e que faz com que as pessoas estejam isoladas em casa e toda a gente se toque. Alguém me dizia ontem [16 janeiro] no visionamento: "Ai, que confusão que me estava a fazer ele [Amadeo] a pegar nas mãos dela [Lucie], porque é que ele não lavou as mãos?!" - por isso é que morreram famílias inteiras, naquela altura.
Foto: DR
Este é também o fecho de um ciclo, a terceira biografia que fazes. Em que momento percebes que és fascinado por contar a vida das pessoas, ou pelo menos narrar-lhes uma parte da vida? E como te cruzas com a história do Amadeo? Num post de Instagram dizes que te fascinou ele querer perceber a criação humana…
É o que mais me fascina, é o mistério que a Ciência nunca vai conseguir explicar. Pode explicar-te a origem do universo, mas nunca te conseguirá explicar porque é que uma pessoa descobre, a uma determinada altura, que tem uma vocação, ou um desejo profundo, ou uma obsessão, e é capaz de dedicar a vida e a morte àquilo. Fascinam-me as pessoas - porque sinto isso na pele - que sinto terem uma imagem deturpada sobre elas [na ótica dos outros]. A tentativa que faço nos meus filmes não é a de celebrar a imagem cristalizada que o público e os académicos têm [sobre a pessoa retratada]. Só vale a pena se existir uma perspetiva diferente, ou nova, sem trair a verdade da pessoa, para mostrar. No Florbela, aquilo que descobri, e que me fascinou, não foram os poemas da morte, nem a sua poesia depressiva, amorosa, arrebatadora, mas sim que havia uma mulher para a qual a escrita é uma coisa visceral e que percebe que isso atrapalha a sua vida real - os seus casamentos, as suas emoções - ela já não sabe onde começa uma coisa e acaba a outra, e há um momento na vida dela em que ela tenta fazer uma coisa que certamente todos os artistas já terão pensado: "eu vou deixar de escrever, quero ser uma mulher ‘normal’, quero ser uma ‘boa’ esposa, filha, irmã. Ela esteve quatro anos sem escrever. Só com a morte do irmão, quando a tragédia lhe bate à porta, ela volta a escrever, escreve num sopro a maior parte da sua obra e depois morre.
É um poeta essencialmente conhecido pelo seu lado mundano, pela noite, pela depressão, pelo Frágil, pelo corpo, pelo sexo, nunca se olha para ele como um romântico, como um apaixonado, como um homem que constrói pontes, que liga pessoas, que tem sonhos e quimeras e "sonha com". Eu tinha acesso a uma parte da sua história extraordinária, que ninguém tinha, em Lisboa ninguém tinha. Eu tinha de pôr isso no Cinema. Muita gente ficou chateada…
Gostas quando essas reações menos boas sucedem?
As pessoas têm direito às suas opiniões, eu adoro quando dizem: "não o revi nada". Pergunto-lhes: "não reviste nada dele ou não te reviste a ti? Porque é isso que tens de descobrir." Eu também tenho uma imagem das pessoas que admiro, que ainda estão vivas… No caso do Amadeo, para quem o estuda é um herói à posteriori.
Senti um sufoco tremendo. Ele queria muito viver uma coisa, e os acontecimentos em volta dele começaram-se a fechar, a fechar… Em 1916, nada lhe corre bem, ele não quer ir para a guerra, não quer morrer, ele não consegue viver em Manhufe, o casal Delaunay não se resolve com os projetos… e, com 28 anos, Amadeo decide fazer uma exposição com 114 peças, género retrospetiva que alguém faria aos 70. Ele quis mexer com o Porto, conservador na altura, cidade que teve imensos problemas de aceitação da obra. Depois, [acontece-lhe] a doença. Todo o processo foi muito debatido. As pessoas diziam-me que era pesado, perguntavam-me se tinha de contar tudo de forma tão detalhada. Senti que as pessoas tinham de saber como é que este homem desaparece. A mulher pega nos quadros [após a morte] e volta para Paris, e só nos anos 80 é que finalmente se começa a fazer qualquer coisa porque a Gulbenkian compra o espólio… 90 anos depois de morrer. Foi preciso um centenário. Em conversa com o Rui Poças [cinematografia], dizia-lhe que o meu plano favorito do filme é quando a Lucie aparece na sala: os dois já são fantasmas, o rosto dele já está no escuro.
Na antestreia, dizias que querias que as pessoas levassem o filme para o mundo.
Como realizadores temos de estar preparados. Se a minha vida passasse pela validação dos outros daquilo que eu faço, tendo em conta aquilo que já se escreveu sobre mim, já tinha desistido há muito tempo. Não são os outros que me validam. O que me valida é aquilo que eu acho que faço com a minha vida. É nisso que eu penso quando me deito.
Falava mais na questão artística, da celebração da Arte.
Eu gostava que as pessoas quisessem saber mais sobre ele. Que saiam dali [da sala de cinema] com vontade de ir comprar uma biografia, reler coisas na internet, ver documentários, ir aos museus procurar a sua obra…Ao CAM [Centro de Arte Moderna Gulbenkian], que agora por acaso está fechado. O Cinema vive de uma forma muito imediata, hoje. Até numa plataforma de streaming é possível ver um filme. Um filme nunca é um fim, é um princípio, especialmente para o grande público.
No filme, retrata-se um Portugal muito religioso, muito crente. A família era muito conservadora, mas tanto o tio como o pai de Amadeo fugiam um pouco à regra…
Era uma família muito religiosa, ele também o era - e conservador - nalgumas coisas, é uma das características que me fascina nele. Ele caçava, ia às touradas, o Amadeo hoje em dia seria cancelado por muito bem que pintasse! Mas tinha o outro lado. Todo ele é uma contradição, e isso é bonito. É um homem em constante formação. Há uma curiosidade tão grande nele, que ele está sempre a refazer-se. Cada obra que faz tenta que seja melhor.
Eu acho que ele ia acabar a fazer Cinema. Quando ele faz uma exposição em Lisboa, a única pessoa que se interessa a sério por ele, e que vem entrevistá-lo do Diário de Coimbra, deve-se ter metido no comboio, é um miúdo. Os grandes jornalistas, uns falaram bem, outros mal, mas ele foi o único que se interessou. Essa entrevista haveria de se tornar essencial para perceber muita coisa sobre a sua forma de pensar. Quando estão a descer o Chiado, a chegar ao Rossio, o movimento de luzes e carros, ele diz qualquer coisa como: "O que eu tenho de conseguir um dia pôr numa tela é isto, esta velocidade, este movimento, este frenesim." Ao ler aquilo, pensei: "Oh, querido, isso é o Cinema" (risos). Ele teria voltado a Paris, nos anos 30 iria para Nova Iorque, e depois ainda se meteria no comboio, ia para Los Angeles e ia fazer Cinema…
A passagem por Paris é retratada vagamente, mas vê-se que há um envolvimento na comunidade.
A comunidade portuguesa em Paris com quem ele se dava era blasé, achavam chique estar em Paris, mas viviam em entropia, muito fechados neles. No fundo, no fundo, não estavam lá para aprender nada, tinham belíssimas mesadas e estavam lá para viver. Pelo contrário, ele está sempre à procura. Quando o [André] Derain aparecia naquelas festas, entretinha-se a atirar aviões de papel de folhas de livros (tanto que não o filmo, mas é uma private para quem sabe). Ele chegou às Belas-Artes, esteve lá nem um ano, e disse-lhes [aos professores] que não ia aprender ali nada. Ele era um homem vaidoso, soberbo. Quando eu lia pedaços das cartas à minha psicóloga, ela dizia que ele devia ter um grau de [Síndrome de] Asperger. Porque ele era muito self-centered. As cartas à mulher expressam isso, são cheias de recados e diretrizes. Ele tanto era o conservador, como a seguir ia ao MNAC com o Santa-Rita e o Almada Negreiros, e (com eles) fazia uma promessa e rapavam as sobrancelhas. Quando ele se cruza muitas vezes com o Almada, foi uma vez à praia vestindo uma camisa, umas sandálias com meias, um smoking e um fio de pérolas. Era super punk.
Replicaram o atelier de Amadeo e as casas que filmas não correspondem aos sítios reais. Não foi possível? Onde filmaram?
Não fomos a Amarante, não conseguimos o apoio da Câmara. Foi um processo muito complicado, acabámos por filmar nas redondezas. Fomos ao Marão, mas filmámos essencialmente em Sintra, onde fizemos o atelier. A casa dos pais é num palacete nos Olivais, a estação de comboios, que seria em Vila Meã, é em Óbidos. É uma colagem. O Passos Manuel já não existe e é onde funciona o Coliseu, era sala de cinema, parque, sala de exposições e de baile, cafés, ringue de patinagem (que era no salão de festas!) e chegou a ter estúdios de cinema da Invicta Filmes, os portuenses iam todos para lá. Para recriá-lo fomos para o ginásio do Liceu Pedro Nunes em Lisboa - dos quadros para baixo é real, para cima é tudo digital.
E os quadros?
Todas cópias feitas a partir dos originais, trabalhados por um grupo de artistas extraordinário, com cópia em tela e pintura por cima. Tudo foi bastante orquestrado, conforme o percurso da lente da câmera, sabíamos quais eram os que tinham de estar completamente acabados, pintados com verniz, para dar rugosidade. Foi a equipa do Artur Pinheiro. Eu desatei a chorar quando entrei no atelier. Emocionei-me com o detalhe. Podíamos perfeitamente fazer freeze na imagem e estudar tudo: dos objetos, às coisas que o inspiravam, a relação com o exterior através das encomendas e das cartas, a música…
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Assim como o Amadeo foi descobrindo a arte dele, como é que fizeste o teu caminho, como argumentista e realizador? A ideia do movimento desenvolve-se em que momento?
Eu tinha 10 anos quando vi o E.T. [1982]. Tinha a idade do Elliott. Vivia só com a minha mãe, os meus pais não tinham relação, a minha mãe era amante do meu pai, e eu nasci fruto desse amor. Quando a minha mãe soube que estava grávida cortou relações com o meu pai, não queria que eu nascesse com essa sombra. Um puto ao crescer faz na mesma muitas perguntas… Quando eu me apercebi da minha realidade familiar, que não era propriamente fácil e numa terra pequena somos olhados de lado, foi tudo há 40 anos… Hoje em dia ser pai de pais divorciados é normal, naquela altura ser filho da amante de um senhor casado que tem outros filhos e outra família, era uma coisa que me era apontada. Quando fui ver o E.T, fui ver duas vezes, da segunda vez fui à sessão da noite (roubei dinheiro à minha mãe para comprar o bilhete, era terrível), e quando cheguei a casa levei uma coça. Lembro-me de me sentir protegido dentro daquela sala. O Elliott também não tinha pai, a identificação e a solidão foram imediatas. Aquilo para mim começou a fazer tic-tac, lembro-me de ir para a varanda da minha casa, olhar para o céu horas a fio a ver se aparecia uma nave (risos). O Cinema começa aí. O lado fantasista, escapista, imaginativo e da construção de uma realidade alternativa.
Escrevias muito, nessa altura? Para ti?
Comecei primeiro com os livros, começo a ler e a escapar através dos livros. Começo a encontrar esquemas para crescer e para sobreviver à minha própria história. As Artes tornaram-se esse mundo. O Cinema era uma coisa lá longe, nas Américas, via-se na televisão, era impossível de alcançar. Com o VHS ele aproxima-se um bocadinho, de repente posso ver as minhas cassetes e são minhas. Eu podia ter o meu mundo, começa aí a vontade de querer contar as minhas histórias. Eu lembro-me de fazer Teatro - eu via o palco como uma tela de Cinema - estar como ator, e havia um encenador que dava imensas ordens. Eu achava tudo errado, das peças à encenação (risos). Percebi que gostava de ser uma espécie de mastermind… Comecei a querer escrever e a encenar os outros.
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Quando começa a escrita a sério?
Tentei o Conservatório e não consegui entrar. Os meus amigos diziam-me para escrever argumentos, até que o António da Cunha Telles leu um argumento meu e me disse que eu tinha de ir viver para Lisboa, aos 27 anos.
Como era a vida em Sines, até aí?
Tinha uma vida normalíssima, casa, trabalho, à noite ia para casa escrever. Trabalhei muito na área da cultura, inclusive com o poeta Al Berto, e depois do Centro Cultural fechar voltei para a Câmara Municipal, era funcionário público. Tinha entrado aos 18 anos para lá, não sabia bem o que podia fazer. Foi bom porque estava na área da Cultura e da Comunicação. E é engraçado como a pior coisa que nos podem fazer pode ser a coisa que nos salva. O Centro fecha, o Al Berto zanga-se com aquilo tudo, vai para Lisboa, morre em 1997, e o Presidente da Câmara coloca-me na secção de obras, a bater as descrições dos arquitetos contendo as descrições dos projetos, rodeado de senhoras com mais de 50 anos. Aquilo era o inferno! (risos). Eu adorava-as, eram todas minhas mães, mais ou menos, mas é engraçado que é nessa altura, quando me começam a fechar, um pouco como o Amadeo faz em 1916, que eu vou para uma direção contrária. Saía dali às 17h, passava no supermercado, jantava e a seguir ao jantar trabalhava sobre as ideias, sobre os argumentos, aprendi a escrevê-los vendo filmes e escrevendo sobre o que estava a ver…Rapidamente estava a viver em Lisboa.
Como foi chegar a esta cidade?
A primeira coisa que me perguntaram quando aqui cheguei foi: "Mas você quer ser o quê? Argumentista?". Disse que não. Eu queria ser argumentista dos meus filmes porque tinha a cabeça cheia de ideias, mas eu queria era realizar. "Ah, mas sabe que o que faz falta são argumentistas", disseram-me. "Olhe, mas eu acho que também há falta de realizadores porque não há assim tantos cá em Portugal…" disse. "Olhe que você vem para Lisboa tem de ter tento na língua!" foi a resposta. Disse-lhe: "Não tenho nada que ter tento na língua, sou alentejano e digo o que penso!" É assim até hoje (risos). Às vezes arranja-se imensos problemas, então no meio [artístico], ui…
A partir daqui, traças um caminho muito à tua maneira.
Sim, tudo é muito meu. Até as duas comédias que fiz, que deram azo a muita conversa. Escreveu-se muito sobre isso, gostava que as pessoas antes de escreverem (sobre) me perguntassem coisas (risos). Perguntem-me! A primeira foi feita com os meus alunos da ACT, desafiei-os a fazer um filme com a prata da casa, convidámos a Maria Rueff. Ela aceitou logo. Nos jornais: "Vicente vende-se ao sistema, faz umas comédias para fazer pipocas!". Como se eu me tivesse vendido… Ninguém me pergunta, é que eu posso ter feito porque me apeteceu!
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Os rótulos, a experimentação, os testes… as pessoas esperam sempre coerência?
Eu acho que as pessoas não sabem lidar, obriga-as a pensar, e no que toca à crítica, a crítica gosta de ter ascendente sobre os artistas. Viram um bocadinho o Oráculo de Bellini, parece que sabem mais sobre o que o artista faz do que ele próprio. A mim já me disseram coisas que eu (supostamente) faço e que eu quero (risos). Basta ler a crítica. Parece que há sempre uma necessidade de nos encerrar dentro de um espaço, dentro de uma ideia, engavetar-nos. Ou és o gajo das comédias palermas ou do experimental, por exemplo. O mais assustador é que muitos dos artistas assinam por baixo de tudo isso, vivem uma vida terrível. Vende-se tanto essa ideia de que se tem de cumprir a expetativa que, muitas vezes, estão a criar não para eles, mas para os tais que disseram "isto e isto" sobre eles. Há um sistema. É por isso que acho que o Amadeo se foi embora para Paris: percebeu como é que o meio cultural funcionava cá, e não mudou. Ele precisava de ser mais livre que o meio.
Sente-se essa falta de apoio à Cultura, ainda, quando a Cultura nos salva todos os dias.
Porque há várias coisas a funcionar ao mesmo tempo. A partir do séc. XX surge o mercado, e o mercado tanto produz copos como peças de teatro e livros, a vida melhora muito, as pessoas tornam-se mais letradas, as obras de arte nascem como entretenimento. O Cinema nasce como uma curiosidade técnica. Depois, surge uma mercantilização e começa a haver uma subdivisão dos produtos. Em países pequenos como Portugal, onde não há 50 grupos de influência, há um ou dois, ou estás dentro ou estás fora. Eu estou na área há mais de 20 anos e sei que há gente que olha para mim como um tipo que está fora da bolha protegida pela crítica, pela imprensa, por pessoas da classe política, pelos curadores… Depois, há uma politização das Artes.
Isso nunca te assustou? Não teres feito o caminho direto à bolha?
Não. Eu nisso sou um bocadinho Amadeo, o Amadeo não quis fazer parte de nada, ele mandou os Delaunay à fava, e eles tinham muita influência em Paris. O meu caminho tem de ser sempre livre de armadilhas e favores para eu poder expressar-me como eu gosto, fazer o que quero, e não ter medo.É chato e difícil quando abres um jornal e vês que o teu filme tem uma estrela e te destroem em meia dúzia de palavras. Eu já fiz sete filmes, e em 20 anos nunca nenhum deles [críticos] pensou: "e se fizéssemos uma entrevista ao gajo para saber o que é que ele pensa?" É o caminho mais fácil. É uma forma de proteger o meio, que é pequeno e há pouco dinheiro. É preciso assassinar determinados artistas publicamente. O objetivo final, acredito, é esse.
Pensas em quê, para combater esse tipo de situação?
Penso que a história não é sobre eles. [No filme, Amadeo lê uma crítica má à sua exposição e o nome do crítico é irrelevante para o realizador]. Em última análise, o que fica são os meus filmes. Quando eu morrer, há-de haver um curioso, alguém que possa crer analisar, cruzar com o que ele disse nos jornais, nas revistas, onde é que ele se situava? Há gente que diz que não me consegue perceber porque eu não sou uma coisa nem outra. Em Portugal há esta divisão muito clara: ou és Curral de Moinas [o filme Curral de Moinas - Os Banqueiros do Povo] ou és Vitalina Varela. Ou és arte e ensaio puro e duro para os festivais, ou queres fazer 300 mil a vender pipocas? Há um espaço no meio, que no panorama mundial até é o maior, em que se está a fazer filmes para o público funcional. Eu gosto desse público funcional, estou aí no meio. Classificar tudo à partida como: é tudo mau, é tudo bom - não funciona. É preciso olhar com atenção. Todos nós queremos ir a Veneza, ir a Cannes, ir a Berlim, para os produtores é fantástico, ganha-se um prémio em Berlim vende-se o filme para 50 mercados. Aqui [Portugal], ganha-se currículo e prestígio, já se está a ganhar o apoio do ICA... Cannes é o mundo representado em oito pessoas. Se três delas mudassem, o resultado já seria outro. O que interessa sempre é se o filme perdura no tempo. Para mim, um grande filme é um filme que, volta e meia, me apetece rever. Que conseguiu criar comigo uma relação muito forte. Esses são os filmes que interessam, e às vezes esses filmes não ganham absolutamente nada.
Como vês o Cinema de hoje?
Nós fazemos muito cinema realista, o cinema do dia-a dia, da dificuldade da vida das pessoas. Mas a verdade é que a vida das pessoas não é feita dessa realidade, essa realidade é o que elas fazem para sobreviver, a vida é feita dos sonhos e das aspirações das pessoas, o que as transcende. Filmam-se muito pouco as emoções das pessoas (...). O punk é fazer filmes em que os pobrezinhos não são sempre bonzinhos. Há sempre uma coisa moralizante, mas de uma forma muito twisted, deturpada. Os ricos são sempre maus, os pobres são sempre bons. Os filmes sobre pobres ganham sempre prémios, os filmes sobre os ricos nem sequer se fazem. Eu gosto muito de anti-heróis. Na Gulbenkian, dizia às pessoas que achava que o Amadeo era um anti-herói, e isso chocava as pessoas. Ele lutava contra o sistema, contra toda a gente, estava sempre noutro sítio.