Entrevista

Rafael Morais. "Atrai-me a crueza, a tristeza e o feio"

O filme 'Amadeo' está atualmente nos cinemas, mas esta entrevista com o ator começou a ser escrita há dois anos. Da pandemia silenciosa até aos dias de hoje, em vários encontros, Rafael falou com a Máxima da vertigem que sente enquanto artista. Entre Lisboa e Hollywood, não há céu onde não projete um pedaço de ficção.

Foto: Maria Rita
15 de fevereiro de 2023 Tiago Manaia

Outubro 2020. Lisboa está a meio gás, recolhida pela pandemia. No alto de um 7º andar Rafael abre a porta com uma garrafa de vinho tinto nas mãos. Os restaurantes e bares fecham pouco depois das 22h e por isso o encontro é na casa onde se recolheu na quarentena obrigatória, que começou logo em março de 2020. Precipitou-o de Los Angeles, onde vivia, para a cidade onde deu os primeiros passos como ator.

Do alto das suas janelas vêem-se as avenidas vazias perto do Marquês de Pombal, um bairro onde a capital se ensaia urbana. Nesta escolha residencial há restos da sua vida americana. Rafael ri enquanto mostra um terraço maior que o apartamento, há escadas de incêndio e anúncios em néon nos prédios à volta. Concorda: o sonho americano, que o fez partir de Portugal aos 18 anos, continua vivo neste novo lar.

Perto da mesa onde nos sentamos para falar há um livro com a cara de Kate Moss, que fuma um cigarro prazeroso com a cabeça inclinada para trás. Ao seu lado outra capa, com Amadeo de Souza-Cardoso, que usa uma boina e tem o olhar intenso. Beleza tenebrosa, há parecenças. Rafael aproxima o livro de Amadeo ao peito e pousa para uma polaroid.

"É a incerteza de não ter trabalho que me stressa, não é tanto quando vão ser vistos os filmes que fiz, é o não ter trabalho que me angustia." Foto: Maria Rita

O ator acaba de dar vida e voz ao pintor português para o Cinema, mas o filme ainda passará algum tempo na gaveta, pelo menos até que o quotidiano tome o seu curso normal num período pós-pandémico e as salas de cinema possam abrir (Amadeo, de Vicente Alves do Ó, acabaria por estrear em janeiro de 2023). "Tudo nos está a levar para esta ideia de ficção científica e sinto que no futuro tudo vai estar mais isolado, vamos trabalhar todos de casa numa realidade virtual." Rafael fala a um ritmo frenético, quase perde o fôlego, as palavras em inglês são pronunciadas na perfeição. Muitas vezes solta um "yeah, yeah" para rematar as frases, a vida americana forjou-lhe a linguagem. "É a incerteza de não ter trabalho que me stressa, não é tanto quando vão ser vistos os filmes que fiz, é o não ter trabalho que me angustia."

Enfrentar as despedidas

A pesquisa que fez antes de filmar e a partilha de vivências com a equipa de rodagens são o que mais o entusiasma, "há uma beleza naquelas famílias transitórias que se criam nas equipas de Cinema, é tudo tão intenso, ainda não me habituei a despedir-me." Aos 17 anos, a câmara de Marco Martins seguiu-o durante quase 365 dias, o filme Como Desenhar um Círculo Perfeito (2009) ao lado de Joana de Verona, revelava-o como protagonista ao público. "Dizer adeus à Joana por exemplo não foi fácil depois de tanto tempo juntos a representar", acrescenta pensativo. Acaba a Escola de Teatro de Cascais com 18 anos, e ruma a Los Angeles, "nunca mais me vou esquecer de ver a minha mãe a dizer-nos adeus, quando estávamos a ir para o avião com o meu irmão".

"Nunca mais me vou esquecer de ver a minha mãe a dizer-nos adeus, quando estávamos a ir para o avião com o meu irmão". Foto: Maria Rita

Rafael tem um gémeo, o realizador e ator Edgar Morais. "Se não tivesse ido com ele, acho que não tinha sido capaz, teria ficado apenas dois meses." A viagem durou mais de uma década, com muitas idas e voltas, veio filmar Sangue do Meu Sangue (2011) com João Canijo, ganhou uma bolsa da Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA) para estudar na Stella Adler (o estúdio onde Marilyn Monroe fez exercícios em frente a Jane Fonda há muitas décadas), e teve uma fase em que não pôde voltar a Portugal porque aguardava um visto de residência americano. "Nesses momentos em que me senti preso em Los Angeles, pensei muito no porquê de fazer este trabalho, mas a vida é demasiado curta, prefiro mil vezes ter de lutar por isto do que ir trabalhar para a Google ou fazer merdas só para ganhar dinheiro, e sim, sei que isto soa um bocado romântico." Quando chegou a Los Angeles ficou num hostel em Sunset Boulevard – e odiou - "Tinhas pessoas vestidas como nos Piratas das Caraíbas na rua, há quem queira ser fotografado com eles. A cidade está também saturada com talento, para seres o novo Marlon Brando precisas de sorte, há pessoal que larga tudo para ir à procura de uma oportunidade."

Da infância em Portugal, Rafael lembra-se dos filmes de Bertolucci que via já em miúdo, "a minha mãe é francesa por isso as escolhas tinham nível", diz a rir. Depois houve a separação dos pais, tempos em que foi viver para casa da avó, "as amigas dela achavam que ser ator era ser palhaço". Isso trouxe-lhe a consciência de que a Cultura não era reconhecida de forma justa em Portugal, "é estranho porque há realizadores na América que têm inveja da carta branca que é passada aos artistas na Europa, aqui fazes o que queres, não é uma indústria como lá. Mas em Portugal o maior problema é haver tão pouco dinheiro, é um bocado o Hunger Games no meio das Artes."

"A vida é demasiado curta, prefiro mil vezes ter de lutar por isto do que ir trabalhar para a Google ou fazer merdas só para ganhar dinheiro, e sim, sei que isto soa um bocado romântico." Foto: Maria Rita

Sente, assim, responsabilidade em fazer qualquer personagem, seja fictícia ou real. O pintor Amadeo de Souza-Cardoso foi um desafio entusiasmante, "como não há registos áudio ou vídeo dele, tive uma liberdade maior, o Amadeo é visto neste filme através dos olhos do Vicente (realizador) e através dos meus olhos. Tentei ir à sua essência – ver que medos ou paixões tinha e foi libertador... Quem era ele realmente?" Rafael faz uma pausa, continua o raciocínio. "Fiquei passado com as semelhanças que tenho com ele, na atitude que tinha relativamente à Arte em Portugal. Ele, como eu, também quis sair daqui (viveu em Paris) e não foi por não gostar do nosso país, não foi por isso. Se ele não tivesse morrido tão novo (morreu com gripe espanhola) seria como a Amália ou o Ronaldo, tenho a certeza que seria um ícone português." É a Arte no seu todo que motiva o fôlego da travessia artística de Rafael. Inspira-se todos os dias em algo novo para poder avançar. Depois de entrar na série da Netflix White Lines (2020) aguardava uma miragem de possibilidades novas, os projetos suspensos pela pandemia tiveram um sabor ainda mais amargo. "É muito complexo, mas sinto que o que faço tem a ver com a compaixão, quando estás a ler um livro ou a ver um filme estás a experienciar a vida pelos olhos de outra pessoa. Vês o mundo com outros olhos, e é isso que me fascina, o tentar perceber o outro ser humano sem estigma, porque no fundo somos todos o mesmo. Quando me meto a pesquisar uma época nova para um filme, a primeira coisa que procuro é a Arte dessa época. É isso que nos torna humanos, a Arte. E isso é ser uma criança, no fundo, porque na verdade toda a gente é um artista, pelo menos até crescer."

Quando George Floyd foi assassinado, meses antes da conversa que temos agora na cidade em silêncio, Rafael também sentiu a revolta que levou milhares de pessoas pelo mundo fora protestar na rua, já estava em Portugal quando começou o movimento Black Lives Matter. "Quanto mais velho fico e mais experiência tenho, fico mais soft, pensei que me iria tornar mais cínico com o tempo, só que não. Vejo as notícias e começo a chorar, e não é só pelas coisas más, choro pelas boas também, quando vejo que estamos juntos e que há pessoas a lutar por algo."

"Em Portugal o maior problema é haver tão pouco dinheiro, é um bocado o Hunger Games no meio das Artes." Foto: Maria Rita

Outubro 2021. Há uma festa de Halloween numa rodagem improvisada em casa de Rafael. O mesmo prédio com vista para as Avenidas que já têm carros a circular. Há uma equipa de som, um diretor de fotografia, um produtor que faz testes covid a todos os atores e atrizes que chegam aos poucos. Quem vai ser filmado mascara-se: sangue, olhos pintados de preto, luvas de boxe, chapéus de marinheiros, perucas loiras. Quem está para representar no filme bebe álcool e dança – há uma festa que se vive realmente para a ficção. Vem da imaginação de Rafael e de Francisco Mira Godinho com quem escreveu o guião. "Aprendi isso enquanto estive fora... Se queres fazer algo podes sempre agarrar num iPhone ou num grupo de amigos, escrever um guião e filmar. Eu tento sempre fazer acontecer as coisas nas quais acredito", diz-me.

Durante a rodagem está concentrado, um tanto tenso, agarra às vezes a máquina fotográfica analógica para tirar retratos aos amigos atores, nesses momentos sorri de novo. No elenco estão os gémeos descobertos no último filme de Leonor Teles, Vicente e Salvador Gil. A atriz Beatriz Godinho grita no terraço, luta e discute com uma nova inimiga francesa. Falam de gentrificação, há um conflito por causa dos preços das casas e diferentes atitudes na ocupação da cidade. Lisboa a ser Lisboa? O álcool exalta a conversa. Há uma quantidade de figurantes que são surpreendidos pela disputa, pede-se que não olhem para a câmara. Um estalo é repetido várias vezes.

Quando me cruzo com Rafael na cidade é frequente vê-lo rodeado de amigos que estão ligados às Artes. Ele diz que tenta misturar todo o tipo de pessoas na sua vida e que os amigos reais são mesmo próximos e poucos. Pergunto-lhe se conversam muito sobre a precaridade que assombra a sua profissão. Há a ausência de um estatuto profissional para artistas do espetáculo, ou até mesmo uma estranha superstição que parece fazer com que nunca se fale dos atores que abandonam o meio, desistindo da representação para enveredar por outros caminhos. "Acho que não é preciso falar, isso está presente. Mas eu quando estou nesse contexto procuro uma energia positiva e criativa."

"Se ele [Amadeo] não tivesse morrido tão novo (morreu com gripe espanhola) seria como a Amália ou o Ronaldo, tenho a certeza que seria um ícone português." Foto: Maria Rita

No entanto, sente ser necessário vincar que a realidade do meio não tem nada a ver com o glamour veiculado por cerimónias de prémios como os Globos de Ouro. "Sinceramente, pessoas como a minha avó acabam por ficar confusas, aquilo não é como nós vivemos." Antes desta rodagem no seu terraço, Rafael fintou a segunda fase da pandemia (onde o trabalho existente seguiu medidas de saúde rígidas), fez um pequeno papel na série Glória realizada por Tiago Guedes e dois filmes no norte de Portugal com João Canijo, Mal Viver e Viver Mal (2023). Canijo rescreve os guiões com os seus atores, ensaia durante meses antes de filmar. "Ser ator tem a ver com confiança e eu quero perder-me", o processo de Canijo é um remate certeiro no abandono que procura sentir. Os olhos de Rafael parecem muitas vezes acumular poucas horas de sono. As suas olheiras lembram as de James Dean.

Desenham maturidade num rosto que se torna adulto de filme para filme.

Guiado pelas emoções

7 de Outubro de 2022. "Eu e o meu irmão [Edgar Morais] recebemos muitas propostas para explorar o facto de sermos gémeos, mas sempre recusámos porque exploram só o cliché da piada e não estamos interessados, não queremos que seja apenas visual... Temos a parecença física, só que a nossa energia, como atores, é completamente diferente." Rafael fala do filme que rodou na Albânia, "em geral nós queremos manter as nossas carreiras o mais separadas possível."

"O que os fez mudar de opinião?", pergunto. A Cup of Coffee and New Shoes on conta a história de dois gémeos surdos-mudos que descobrem que vão ficar cegos por causa de uma doença degenerativa", explica-me sentado na Cinemateca de Lisboa, está um calor abrasador, bebe um gin tónico cheio de gelo. O trailer é imersivo, a narrativa é inspirada em factos verídicos, deverá estrear em Portugal em 2023. Antes de filmar aprendeu a utilizar língua gestual durante um ano. "O filme levou-me a sítios novos, foi muito duro. Com o meu irmão comunico quase sem falar, e isso também foi estranho num contexto profissional, o facto de ter tanta intimidade com alguém num plateau de cinema."

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Havia um lado trágico que lhe interessava neste projeto, era isso que o atraía? "Sim, atrai-me a crueza, a tristeza e o feio. Tudo isto faz parte desta coisa que é estar vivo. É o lado humano." Pergunto a Rafael se questiona muitas vezes o seu papel no mundo, responde sem pensar: "todos os dias, e sobretudo [questiono] o que é a vida? Não sou religioso e às vezes gostava de ser... Porque penso que deve dar algum conforto se acreditares mesmo. Eu não tenho medo da morte, gosto de estar vivo, mas e se eu morresse? Sinto logo uma sensação de FOMO (fear of missing out). Dou por mim a pensar nos realizadores que vão estar vivos e eu não vou conhecer."

Rafael sorri, dá um golo na sua bebida. Minutos depois chegam atores seus conhecidos ao bar da Cinemateca. É um acaso estarem ali juntos, a cumplicidade instala-se na troca de palavras. A travessia de Rafael continua. Num quotidiano que se idealiza como um filme.

Fotografia: Maria Rita

Maquilhagem: Joana Espargo

Amadeo de Vicente Alves do Ó em exibição

Mal Viver e Viver Mal de João Canijo em competição na Berlinale 2023
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