Eliane Brum: “Aquilo que me interessa mais é a forma como as pessoas resistem”
A jornalista mais premiada do Brasil é autora de Meus Desacontecimentos, obra autobiográfica que é uma declaração de resistência. Em entrevista à Máxima, falou sobre as dores da infância e o policiamento dos corpos das mulheres, mas também sobre a cultura machista das redações e a promessa de um jornalismo melhor, a partir da Amazónia. Uma conversa sem as amarras que Eliane dispensa.
Foto: @Lilo Careto14 de novembro de 2024 às 14:59 Rita Lúcio Martins
Não é o seu primeiro nem o seu último livro, no entanto, foi o título escolhido para marcar a estreia literária de Eliane Brum em Portugal. Meus Desacontecimentos (Companhia das Letras) conta a história da menina que nasceu em 1966 em Ijuí, Rio Grande do Sul, e que cresceu entre convicções e fantasmas, à procura de um lugar próprio. Nesta que é a sua obra mais autobiográfica, a escritora - jornalista consagrada - revisita episódios marcantes de uma vida resgatada pela escrita, explicando que é nas palavras que se resolve e apazigua. "Este é o livro em que vou para dentro, para buscar as palavras da menina que fez a mulher. Fiz esse retorno até à infância para achar esses fios, essa tessitura, esse desenho. Escrever esse livro foi libertador porque me pôs em movimento de novo".
Autora de nove obras, entre livros de crónicas e reportagem, mas também de um romance (Uma Duas), Eliane Brum colabora regularmente com publicações internacionais como os jornais El Pais, The Guardian e The New York Times. Em 2021 foi distinguida com o Prémio Maria Moors Cabot, atribuído pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. No ano seguinte, fundou a plataforma Sumaúma – Jornalismo do centro do mundo, na Amazónia, para onde fugiu, logo após esta conversa, em Lisboa.
A morte é uma presença muito palpável na minha vida. Tal como eu conto no livro, tinha dois túmulos: o da minha irmã [que morreu antes do nascimento de Eliane] e o da Luzia [a mulher que foi professora do seu pai e que nunca chegou a conhecer, mas cuja história teve um enorme impacto na sua vida]. Há um autor, de quem nunca lembro o nome, que diz que a morte não é o contrário da vida, mas que a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrário. Eu acho que é isso. A morte faz parte, tem uma função importante em todos os sentidos, até na força como a vida se impõe. Hoje vivo na floresta amazónica, onde a morte é uma constante. Ela está ali, entrelaçada, fazendo vida. Muito da minha vida é como uma travessia para entender a morte de outras maneiras, como parte de vários processos. A gente tem várias coisas morrendo em nós mesmos o tempo inteiro. A ideia de morte sempre me moveu. Aliás, durante uma parte da minha vida tinha até um certo flirt com ela, arriscava muito.
Outra sensação que perpassa no livro é a de que viveu rodeada de mulheres fortes, mas tristes.
Ainda hoje é muito difícil ser mulher. As mulheres da minha infância tiveram muito menos oportunidades do que eu tive. Eram determinadas para o casamento. Minha mãe saiu um pouco disso, tornando-se professora, mas na verdade não era isso que ela queria ser. Ela queria ser psicóloga. A minha avó casou com a cunhada, [porque as cartas que trocou durante um largo período com o homem com quem viria a casar, afinal eram escritas pela irmã dele]. Ela que amava livros ficou com um analfabeto, achando que estava casando com um literato. Há muito essa amarração do casamento, de mulheres confinadas em todas as amarras que ainda temos. Aquilo que procuro neste livro, e que faço no meu jornalismo, é ver onde está a resistência. Na minha avó, eram as histórias, os fantasmas. Na minha tia, era um jardim selvagem. Na minha mãe, era o trabalho. Busco sempre essa resistência. Apesar de falar das dores, aquilo que me interessa mais é a forma como as pessoas resistem, como é que se reinventam.
As mulheres no Brasil continuam a ter de habitar nesse lugar de resistência?
No Brasil e no mundo! Claro que cada lugar tem as suas particularidades, mas temos muito para nos envolver ainda. No Brasil, a violência sexual contra as mulheres foi crescendo. O patriarcado está completamente presente. Os mitos de maternidade ainda se amarram muito às mulheres. Ser mulher é muito difícil. Desde que a gente se percebe, a gente se percebe como um corpo sob ameaça. Como a gente se senta. Como a gente se veste. Como a gente anda. Os olhares. É um corpo sempre vigilante. Não tem como relaxar. Isso é brutal.
Essa tristeza de que falava passa de uma geração para a outra? É algo inevitável?
Acho que partilhamos as tristezas, mas aquilo que cada mulher faz dessa experiência é necessariamente diferente. Eu peguei essas experiências e fiz várias coisas com elas, entre elas esse livro. A escrita, pelo menos para mim, tem muito a ver com dar um lugar às coisas. É preciso pegar em tudo o que está cá dentro, escrever e deitar fora. Processar.
Foto: @Lilo Careto
Apesar dos seus desacontecimentos, cresceu numa família para onde podia sempre voltar. Essa ideia de lotaria social foi uma aprendizagem prematura?
Não sei explicar porquê, mas tive essa noção desde menina. Eu não sabia nomear, nem sabia se era uma questão de classe ou de raça, mas a desigualdade – em particular das crianças - era um tema que me chamava muito a atenção. Foi uma dor, desde pequena. Esse desacontecimento que relato no livro [o encontro com um grupo de crianças que a ameaçaram, entre elas uma menina da sua idade] foi muito marcante. Eles perseguiram-me durante muito tempo. E eu sentia muita raiva, mas, por outro lado, também conseguia sentir empatia porque conseguia ver, logo ali naquele momento, o desamparo. Lembro-me que essa menina, por vezes, tinha pouca roupa. Isso mexia comigo. Essa minha característica ajudou-me bastante no meu percurso no jornalismo, porque é o que me torna capaz de escutar violadores, abusadores, assassinos. Sempre tive essa conexão.
Em que momento e com que motivação decide ser jornalista ou, como a Eliane diz, a "escutadeira que conta"?
Eu não poderia ser outra coisa porque eu gostaria de ser todas as coisas, e é isso que o jornalismo me dá. Mas, na verdade, eu nunca quis ser jornalista. Eu fui para a inscrição do vestibular [exame de acesso ao ensino superior] para fazer informática. Eu vejo a possibilidade do jornalismo já no final da faculdade, através de um professor. Lembro-me bem de quando fui fazer a primeira entrevista, ainda durante o tempo de faculdade, um artigo que nem cheguei a publicar. Combinei um encontro com uma prostituta, na noite, na balada. Ela deu-me o seu endereço e no dia seguinte lá fui, mas ela não estava. Uma outra mulher abriu a porta e disse-me para subir. Ela estava nua e, na sua cama, tinha o cafetão [proxeneta], também ele nu. Perguntei se podia entrar, disseram que sim e entrevistei-os, sentada numa ponta da cama, num quarto onde não havia mais nada. Fiz essa entrevista, mas nem me lembro dela. Aquilo de que me lembro é, no final, de estar na frente do prédio, num dia frio, mas com sol. E pensei: com o meu bloquinho e a minha caneta eu posso entrar em qualquer lugar do mundo.
O seu entendimento do jornalismo tem sempre a ver com uma certa ideia de justiça, de indignação, de dar voz a quem não a tem. É um jornalismo ativista?
Sim, no sentido de procurar ampliar as vozes daqueles que não são escutados. Sempre fez sentido ser jornalista para contar histórias reais, para combater desigualdades.
E a objetividade, é um mito?
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É preciso fazer algumas diferenciações. A neutralidade jornalística é uma mentira. Se algum jornalista me quiser entrevistar e me disser que é neutro, eu não dou a entrevista porque vou saber que esse cara é um mentiroso. É justamente por conhecermos os nossos limites, por sabermos que temos os dois pés imersos numa cultura, numa visão de mundo, numa experiência de classe, de raça, de género, é por sabermos disso que precisamos de tomar todas as precauções. É isso que defendo. É preciso fazer esse movimento de se esvaziar de si, dos preconceitos, das visões do mundo, dos enviesamentos. Ir o mais vazia possível ouvir a história do outro. Com relação à objetividade, a minha experiência de 36 anos de jornalismo mostra que as subjetividades são muito mais determinantes para as decisões que tomamos do que a tal da objetividade.
Foto: @Lela Bertrão
Trabalhou em redações durante longos períodos até ter optado por se tornar freelancer. Tendo em conta que sempre se sentiu um andarilho, em algum momento fez da redação a sua casa?
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Não! A redação nunca foi casa, foi sempre um lugar de disputa. Sempre me vi como fazendo guerrilha dentro das redações para conseguir publicar aquilo que eu pensava ser importante. E sempre fiz uma diferenciação grande entre emprego e trabalho. Nunca me submeti a um emprego. O trabalho, o jornalismo, isso sim era importante para mim. E isso deu-me um norte. Saí há algum tempo das redações, eram lugares extremamente machistas. Hoje, quando olho para trás e penso nas coisas eu vivi... comentários, assédio, a própria forma de edição dos homens. Os cortes. O entendimento. As piadas. O modo de operação foi sempre extremamente machista. Ainda é assim. Hoje existem muitas mulheres nas redações brasileiras, mas não nos postos de chefia. Aí, continuam os homens e isso faz toda a diferença! Lembro-me de um episódio em que iam mandar um repórter para uma guerra e o editor veio ter comigo dizendo que tinham concordado que eu era a melhor pessoa, mas, como era mulher, ia outro. Não tem transformação sem ocupação de poder. Em Sumaúma somos 22 pessoas e maioritariamente mulheres.
Refere-se à plataforma jornalística que criou na Amazónia.
Sim, uma plataforma criada para ampliar as vozes da floresta, as vozes de povos que não se separam da Natureza. Em 2017 fui morar em Altamira, no Pará, por conta de uma convicção. Neste momento de colapso climático e de extinção em massa de espécies, eu defendo que é preciso fazer um deslocamento dos conceitos hegemónicos do que é centro e periferia. O centro do mundo é onde a natureza resiste e não onde estão os centros económicos e políticos, em que a destruição é decidida. O centro é a Amazónia, as florestas tropicais, os oceanos, os biomas e não Washington, Pequim, Londres, Frankfurt, São Paulo ou mesmo Lisboa. O centro é onde está a vida. E isso não é retórica. Então fui para lá por coerência. Durante a pandemia, eu e um grupo de amigos ativistas fizemos o movimento Liberte o Futuro, para contrariar aquela ideia do "novo normal". Começamos, com os nossos recursos, a disputar o futuro, para que as pessoas imaginassem o futuro onde queriam viver – ou seja, a imaginação como instrumento de ação política. Fizemos vídeos de um minuto (disponíveis na internet). Em 2022, eu e o meu companheiro, Jonathan Watts, que também é jornalista, imaginamos o Sumaúma em conjunto com outros jornalistas, com a ideia de fazer jornalismo a partir da floresta, re-centralizando o jornalismo, usando a linguagem dos povos que permaneceram com a natureza, que não a tratam como um corpo para extração de mercadorias. Somos uma equipa-ponte que, por compromisso de fundação, ficará durante dez anos. Assim, a redação vai crescendo dentro da floresta e, graças a esse programa de formação, no período de 10 anos será maioritária, ocupando inclusive os postos de comando. E então nós iremos fazer outra coisa.