A história ultrassecreta das espias que combateram Hitler  

Pareciam-se pouco com Mata Hari mas foram decisivas para o esforço de guerra aliado durante a Segunda Guerra Mundial. No filme 'As Espias de Churchill', que acaba de chegar à Netflix, conta-se a história real de três mulheres que combateram o nazismo com as armas da inteligência.  

A CALL TO SPY Trailer (2020) Stana Katic, Thriller Movie.mp4
25 de setembro de 2021 às 07:00 Maria João Martins

Posta diante do pelotão de fuzilamento, a agente X-27 não chora, suplica ou sequer vacila. Benze-se e retira da liga o bâton com que compõe a maquilhagem, disposta a seduzir a eternidade. A cena, extraída do filme Dishonored em que Marlene Dietrich interpreta o papel de uma espia austríaca durante a Iª Guerra Mundial, ajudou a construir o estereótipo da mulher ao serviço das agências de informação dos mais diversos Estados ao longo do século XX: alguém de beleza estonteante, mas com muito pouco a perder, que usava esse trunfo para extrair segredos políticos e militares a homens que não conseguiam resistir-lhe. Não raro, pagava com a própria vida o ardil, até porque Hollywood sempre gostou de dar lições de moral à custa do sacrifício feminino.

Foto: IMDB
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E, no entanto, embora perigosas, às vezes mesmo trágicas, as vidas das mulheres que trabalharam para os serviços secretos nomeadamente durante as duas guerras mundiais, raramente tiveram qualquer relação com esta imagem de letal sedução popularizada pelo Cinema Clássico.  Vem isto a propósito do filme britânico As Espias de Churchill (A Call to Spy) que acaba de estrear na Netflix. Dirigido por uma mulher, Lydia Dean Pilcher, baseia-se nas histórias bem reais de três mulheres que não hesitaram em partir para França, dispostas a sabotar os nazis que ocupavam grande parte daquele país, incluindo Paris, desde Junho de 1940. A ação inicia-se no Verão de 1941, quando a Grã-Bretanha praticamente sozinha diante do inimigo, ainda no auge do poderio, aposta no reforço dos serviços de informação e inteligência. Por decisão de Winston Churchill, será constituído o Special Operations Executve (SOE). Objetivo? Nas próprias palavras de Churchill, "incendiar a Europa ocupada", através de uma muito bem montada rede de espionagem, sabotagem e apoio aos movimentos de resistência local. Para isso, serão recrutados milhares de voluntários, entre os quais várias dezenas de mulheres. Como escreve a historiadora Ann Kramer no livro Mulheres Espias em Tempo de Guerra, "Houve alguma oposição a esta medida, mas o coronel Gubbins estava decidido: acreditava que as mulheres tinham capacidades para desempenhar aquelas funções tão bem como os homens e havia ainda a grande vantagem de, na França ocupada, estas passarem mais despercebidas do que os homens ao realizarem tarefas do quotidiano".

Foto: IMDB

O filme de Lydia Dean Pilcher centra-se em três destas mulheres, de destinos bem diversos: Vera Atkins, a chefe de operações em Londres, responsável pela seleção e formação das agentes, a norte-americana Virginia Hall e a indo-britânica Noor Inayat Khan, ambas enviadas para a França ocupada. À partida,  Virginia era a mais improvável das mulheres no terreno. Filha de uma família da alta sociedade de Baltimore, sofrera a amputação de uma perna na sequência de um acidente de caça mas, nem por isso, se resignou a um destino na sombra da História. Depois de lhe ser recusada várias vezes a hipótese de uma carreira na Diplomacia, optou por colaborar no esforço de guerra britânico como podia. E podia muito mais do que se supunha. Embora o seu handicap físico tivesse causado algumas reticências no Quartel-General, Virginia conseguiu convencer Vera e partiu para França, onde foi responsável pelo apoio logístico aos agentes no terreno. Mostrar-se-ia tão eficaz nessa tarefa que a Gestapo não tardaria a considerá-la a mais "perigosa espia aliada em França", dando-lhe caça implacável. Não obstante esses quatro anos de vida no fio da navalha, Virginia sobreviveu à Guerra e regressaria aos Estados Unidos, onde morreu de causas naturais, em 1982.

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Foto: IMDB

Menos sorte teve a sua companheira de serviço, Noor Inayat Khan. Nascida em Moscovo em 1914, descendia de uma família da nobreza muçulmana da Índia e convivera em criança com um meio cultural requintado: o pai fora músico e professor de filosofia sufista (vertente mística dentro do Islão, adepta da paz e da importância do auto-conhecimento) e a mãe era uma poetisa norte-americana, Pirani Ameena Begum de seu nome. Apesar de muito jovem à data do início da Guerra, a própria Noor já escrevera e publicara um livro para crianças e dedicava-se à música com afinco. Esse gosto e conhecimento seria, aliás, determinante para o seu recrutamento como radiotelegrafista. Nos meses que se seguiram à sua partida para França, o trabalho de Noor tornar-se-ia fundamental para as comunicações da resistência em Paris com Londres, nomeadamente na eficácia das ações de sabotagem dirigidas aos transportes alemães de tropas e munições. Noor seria traída, no entanto, pelos agentes duplos que, por essa época, já se tinham infiltrado  na rede. Presa em Paris, não teve tempo de destruir os códigos que utilizava, o que permitiu aos alemães enviarem mensagens em seu nome durante algum tempo, com funestas consequências para os aliados. Depois de várias tentativas de fuga, Noor foi transportada para o campo de Dachau e fuzilada a 13 de setembro de 1944, aos 30 anos. Já depois da Guerra, o antigo comandante da Gestapo em Paris revelaria que Noor fora de uma enorme coragem, já que, nem sob a mais brutal tortura, dera qualquer informação ao inimigo. Em 2012, a Princesa Ana inaugurou um busto de Noor no centro de Londres, em reconhecimento pelos seus bons e leais serviços.

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A terceira mulher deste grupo é Vera Atkins (interpretada no filme pela atriz Stana Katic, popularizada pela série policial, Castle), o cérebro de toda a operação. Nascida Vera Maria Rosenberg na Roménia, tinha uma motivação particular para o combate, já que era judia. Estudante de Línguas Modernas em Paris na década de 1920, compreendeu, desde cedo, o risco que os movimentos fascistas emergentes representavam para a Europa e tornou-se próxima de vários diplomatas britânicos, que, já durante a Guerra, a ajudariam a obter a nacionalidade britânica. 

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Apesar de algumas reticências devido às suas origens (como o filme mostra, também havia correntes anti-semitas nas elites britânicas), Atkins juntou-se, em 1941, à secção francesa do SOE, primeiro como secretária, depois como braço direito do responsável pelos serviços de inteligência, Maurice Buckmaster. Em breve, Atkins era responsável pelo recrutamento de agentes e era o elo de ligação com as 37 mulheres que foram enviadas para o terreno como correios ou operadoras de comunicações. Era ela que tratava da logística da sua deslocação mas também quem estabelecia a ligação com as famílias. Grande entusiasta das capacidades femininas neste tipo de trabalho, dizia: "O simples facto de sermos mulheres dá-nos consideráveis vantagens, se soubermos aproveitar as oportunidades (...) Acredito que todas as raparigas , isto é, todas as mulheres que se aventuraram na guerra, sentiram o mesmo. Não levantavam imediatamente tantas suspeitas como os homens e tinham mentes muito ágeis e subtis que lhes permitiam resolver situações mais sensíveis. Tinham muito histórias de disfarce preparadas (...) Além disso, eram muito cautelosas. Eram excelentes operadoras de rádio, e muito amáveis e corajosas."

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Após a libertação da França e a vitória dos aliados na Europa, em Maio de 1945, Atkins sentia-se ainda responsável pelo destino dos seus agentes. Por iniciativa própria, rumou a França e depois à Alemanha, para tentar saber do paradeiro dos 118 (13 dos quais mulheres) dados como desaparecidos em território inimigo. Após a sua longa estadia numa Alemanha em carne viva, Atkins produziu relatórios detalhados das suas descobertas que enviou ao departamento de Crimes de Guerra do Exército britânico. As confissões que obteve (entre as quais, as de Rudolf Hess) foram usadas como elemento de prova durante os julgamentos de Nuremberga.

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