A cientista de Harvard que quer mudar de nome depois de investigar a origem da covid-19
Alina Chan, uma cientista de 33 anos, está a pensar em mudar de nome. Porquê? A sua investigação de 18 meses sobre uma teoria segundo a qual o vírus da covid-19 poderá mesmo ter saído de um laboratório em Wuhan. Uma reportagem de Rhys Blakely para o The Times.

Alina Chan tem uma lista de afazeres invulgar. Ao longo das próximas semanas vai promover o seu primeiro livro. Depois planeia mudar de nome. O objetivo, diz, é desaparecer na escuridão para salvar a sua carreira e manter-se em segurança. Se isto lhe parece uma estratégia estranha para uma autora estreante, convém saber que o dito livro, que Chan escreveu em parceria com o autor de ciência britânico Matt Ridley, é sobre a origem do Sars-CoV-2, o vírus por detrás da pandemia.
Não é que Chan tenha a certeza absoluta de que sabe de onde o vírus veio. Em vez disso, o que ela defende desde maio de 2020 – e é uma linha de argumentação que lhe granjeou ameaças de morte online, insultos furiosos por parte da comunicação social controlada pelo estado chinês e palavras ferozes de condenação de eminentes cientistas ocidentais – é que não podemos ter a certeza de que ele não emergiu do Instituto de Virologia de Wuhan, um laboratório especializado em coronavírus de morcegos, situado a poucos quilómetros do local onde surgiram os primeiros casos documentados de Covid.

Quando a verbalizou pela primeira vez, a teoria do laboratório foi menosprezada – pelo menos, em público - por virologistas sénior, que a consideraram uma fantasia de políticos populistas e maluquinhos da internet. O Facebook e a Wikipedia proibiram qualquer referência à possibilidade de o vírus ter escapado de um laboratório de Wuhan, classificando-as como teorias de conspiração.

Hoje em dia, em parte graças a Chan, a possibilidade de fuga de laboratório é amplamente reconhecida como bastante plausível. Foi difícil reformular a discussão. "Escrever o livro foi a minha maneira de tentar encerrar este capítulo da minha vida. Tem sido muito gratificante faze este trabalho, mas também tem sido assustador e cansativo e acho que não aguento mais" diz-me, via Zoom, a partir da sua casa em Massachusetts.

Os amigos avisaram-na que que estava a criar demasiados inimigos na área da ciência. Que o livro – Viral: the Search for the Origin of Covid-19 – lhe iria cortar o acesso a fundos de bolsas de estudo e impedi-la de ter o seu trabalho publicado. "E depois havia o governo chinês. É uma preocupação concreta e tira-me bastante o sono: devo estar em alguma watch list. Por isso, é mais seguro para mim mudar de nome."
The pandemic has cost millions of lives—and countless more lives put on hold.

Finding the true #OriginOfCovid is the most important issue facing the world.
It was a privilege to help @ayjchan write Viral which, if successful, will help us find it. https://t.co/ZetDkjA8fx
A cientista não trabalha na atraente Pequim. Chan, de 33 anos, é investigadora de pós-doutoramento no prestigioso Broad Institute em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts, e mantém relações profissionais com Harvard e o Massachusetts Institute of Technology. O seu trabalho envolve examinar como os vírus podem ser modificados de modo a transportarem material genético útil para o organismo de um paciente para tratarem uma doença: um campo conhecido como terapia genética. Quando surgiram os primeiros relatos sobre uma pneumonia misteriosa "de etiologia desconhecida" em Wuhan, Chan era uma cientista em início de carreira sem qualquer perfil público.

No entanto, não tardou a interrogar-se sobre a forma como um pequeno número de investigadores influentes parecia estar a embalar os seus pares, levando-os a aderir a determinado raciocínio de grupo. Artigos publicados em revistas científicas de alto calibre – The Lancet, em fevereiro de 2020, e a Nature Medicine, no mês seguinte – descartavam a ideia de que o vírus poderia ter sido originado num laboratório em Wuhan.
Pareceu-lhe tudo demasiado precipitado. Em particular, Chan achava intrigante a estabilidade do material genético do coronavírus. O Sars-CoV-2 é um parente bastante próximo do vírus Sars original, que matou quase 800 pessoas em 2003. Contudo, quando o "Sars 1" começou a infetar os seres humanos saltando dos morcegos através de uma criatura chamada civeta da palmeira asiática, passou por uma fase em que acumulou rapidamente uma série de novas mutações, à medida que se adaptava para infetar as células humanas de forma mais eficiente.
O Sars-CoV-2, o agente da Covid, não parecia ter passado pelo mesmo período frenético de adaptação. Em vez disso, parecia ter surgido de lado nenhum, perfeitamente ajustado para entrar a abrir na população humana. Como Chan disse em maio de 2020, era como se estivesse "pré-adaptado" para se espalhar entre nós, para se infiltrar nas nossas células. Num artigo divulgado online, mas nunca revisto por pares ou aceite por uma revista científica, ela e dois colegas seus traçaram três potenciais explicações.




Era possível, admitiam, que o vírus tivesse efetivamente evoluído em morcegos ou noutra criatura até um ponto em que, por puro acaso, fosse já altamente capaz de saltar de ser humano em ser humano. Ou talvez tivesse estado a propagar-se, sem ser detetado, entre pessoas algures na China, adquirindo as mutações essenciais de que precisava. Ou talvez, disseram, tivesse estado a multiplicar-se num laboratório algures. Era plausível, sugeriram Chan e os seus colegas, que o Sars-CoV-2 tivesse sido posto a replicar-se em células humanas cultivadas numa placa de Petri ou, possivelmente em "ratos humanizados" – roedores contendo genes humanos. As probabilidades de um vírus modificado por seres humanos se ter "adaptado" enquanto era estudado em laboratório", disseram, "deveria ser considerada, independentemente de quão provável fosse".
Chan diz agora ter sido ingénua, que não fazia a menor ideia da tempestade que se seguiria. "Eu só queria questionar como este vírus se adaptara tão bem à propagação entre seres humanos. Afinal, tudo isto foi motivado unicamente pela minha curiosidade. Além disso, tenho o péssimo hábito de não pensar bem nas consequências pessoais." Os seus colegas disseram-lhe que deveria partilhar uma versão condensada "tweetorial" do artigo no Twitter. "Depois disso, foi como uma bola de neve. Apareceram toneladas de pessoas interessantes. E não digo isto de forma negativa, porque foi mais ou menos assim que se criou a primeira versão do Drastic – o Seeker apareceu no thread e eles começaram a conversar um com o outro." Para quem não acompanha o debate labiríntico sobre as origens da Covid, esta parte carece de tradução. O "Drastic" é um grupo de detetives amadores que coordenaram os seus esforços online e tentaram defender a teoria da fuga laboratorial. O "Seeker" é um dos seus primeiros membros. O seu nome verdadeiro é Prasenjit "Jeet" Ray e vive em Bhubaneswar, na Índia. Foi acusado de trabalhar para a CIA ou as forças secretas indianas. Na verdade, segundo Chan e Ridley, que o localizaram, é simplesmente "um jovem muito inteligente", com excelentes conhecimentos de pesquisa na internet.


Nem todas as conclusões do grupo seriam aprovadas num teste, mas o Drastic desenterrou material que faria as delícias de qualquer repórter de investigação. Recorrendo aos próprios registos do Instituto de Virologia de Wuhan, incluindo uma tese de mestrado obscura escondida num website chinês, o Drastic revelou como o instituto reunira uma coleção de coronavírus – recolhidos em morcegos – que pertencem à mesma subfamília que o Sars-CoV-2.
A pandemia da Covid já assolava o mundo há um ano quando os investigadores do Instituto de Wuhan admitiram que as descobertas do Drastic estavam certas. Uma das leituras possíveis das provas é que o instituto tentou esconder os locais onde os seus cientistas tinham recolhido estes vírus: uma mina de cobre na província de Yunnan, a cerca de 1.600 quilómetros de Wuhan. De forma sinistra, seis trabalhadores enviados para recolher excrementos de morcego nessa mesma mina em 2012 foram posteriormente hospitalizados na capital de província de Kunming com tosse, febre, dores de cabeça e no peito e dificuldades respiratórias. Três vieram a morrer com uma doença pulmonar misteriosa. Os acidentes acontecem. O Sars 1 escapou de laboratórios pelo menos seis vezes. Poderia a atual pandemia ter começado assim: com uma amostra transportada 1.600 km desde uma gruta cheia de morcegos para a movimentada cidade de Wuhan?
Chan não sabe. Ninguém sabe. "De momento, existem poucas provas que defendam, de forma definitiva, qualquer cenário em particular", escreveu no seu artigo original, em maio do ano passado. Isso não mudou. No mês passado uma investigação conduzida por agências de serviços secretos dos E.U.A. concluiu que as origens do Sars-CoV-2 poderão nunca vir a ser determinadas. A transmissão animal-para-humano e a fuga laboratorial são ambas hipóteses plausíveis, concluiu. A Organização Mundial da Saúde partilha a mesma opinião. Uma equipa de investigação original da OMS, que viajou até à China no passado mês de janeiro, foi amplamente criticada por não ter obtido acesso aos laboratórios de Wuhan, bem como por ter recrutado a participação de Peter Daszak, um polémico cientista britânico que lidera um grupo chamado EcoHealth Alliance que tem laços profissionais estreitos com o Instituto de Wuhan. O Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS, diz que que a "hipótese do laboratório deve ser examinada de forma cuidadosa", com enfoque nas instalações que trabalhavam com coronavírus em Wuhan antes de a Covid ser identificada pela primeira vez. Ele descarta como "prematura" a conclusão da primeira investigação da OMS, segundo a qual uma fuga laboratorial era "extremamente improvável".


No seu livro, Chan e Ridley documentam muitas outras voltas e reviravoltas que parecem, no mínimo, estranhas. Em fevereiro de 2020, por exemplo, quando o Instituto de Wuhan divulgou uma primeira descrição do vírus, esqueceu-se de mencionar uma característica invulgar conhecida como local de clivagem pela furina – uma pequena sequencia de código genético potencialmente suspeita porque torna o vírus muito mais transmissível entre os seres humanos e não foi observada em nenhum outro coronavírus estreitamente aparentado com o Sars-CoV-2. É impossível saber se foi ali inserida por um cientista – pode ter surgido naturalmente. No entanto, Chan acha que o facto de os especialistas em vírus quirópteros não terem salientado esta característica fundamental e altamente invulgar foi prejudicial, comparando o sucedido com "descrever um unicórnio sem mencionar o corno".
Existem outras provas circunstanciais: os primeiros médicos chineses que detetaram o vírus foram silenciados; a coleção de vírus quirópteros do Instituto de Wuhan mais estreitamente aparentada com o Sars-CoV-2 mudou estranhamente de nome; uma base de dados essencial desapareceu; jornalistas foram proibidos de se aproximarem na mina de cobre de Yunnan; uma investigadora sénior do Instituto de Wuhan disse que, quando o Sars-CoV-2 foi identificado originalmente, o seu primeiro pensamento foi: "Poderá ter vindo do meu laboratório?"

A campanha de Chan para chamar a atenção para estes assuntos não passou despercebida na China. Um artigo publicado no Global Times, que pertence aos órgãos de comunicação social controlados pelo estado chinês, acusou-a de "comportamento obsceno e falta de ética académica básica". "Depois de aquele artigo ser publicado, recebi uma tonelada de mensagens de pessoas que falavam chinês a chamarem-me traidora da raça, a mandarem-me morrer. Eu não quis falar nisso porque assusta imenso a minha família", diz Chan.
Detentora de passaporte canadiano, Chan nasceu em Vancouver e os seus antecedentes são parcialmente chineses. Os seus pais regressaram à sua cidade natal de Singapura quando ela era pequena, mas Chan voltou para o Canadá depois de concluir o ensino secundário, tendo obtido um doutoramento em genética médica na University of British Columbia. Aos 25 anos, era bolseira de pós-doutoramento em Harvard. Em 2020, o ambiente político dos E.U.A. dificultou as discussões sobre a origem do vírus.
Como disse uma revista de Boston, "Instalou-se um absolutismo nada saudável… Ou se insiste que todas as questões relacionadas com um envolvimento laboratorial são absurdas ou somos instrumentos da administração de Trump e do seu desespero por culpar a China." Essa ideia ficou suficientemente presa na cabeça de Chan para ela a partilhar no Twitter. Por volta dessa altura, porém, se o Sars tivesse emergido numa cidade de um país ocidental, teria sido muito mais fácil investigar a ideia da origem laboratorial.

É evidente que os cientistas chineses não são livres para explicar e revelar tudo o que têm estado a fazer com vírus quirópteros, diz Chan. "Se fosse nos E.U.A., acho que imensos jornalistas americanos teriam afluído àquela cidade para investigar. As pessoas iriam fazer aquilo que tivessem a fazer porque não teriam medo de ir parar à prisão e de serem torturadas," continua. "Não deveríamos poder investigar fugas laboratoriais apenas nos países ocidentais e não nos asiáticos só por termos medo de sermos considerados racistas. Acho que isso não é científico e até é um bocado hilariante."
Contudo, ela defende que, se a teoria da fuga de laboratório vier a revelar-se verdadeira, o Ocidente não estará isento de culpa. "Acho que esta coisa toda foi transformada numa questão de ‘a China estar a fazer trabalho de investigação imprudente’. Mas não acho que o problema seja só da China. É um problema muito internacional. Estes cientistas [do Instituto de Wuhan] não estavam a trabalhar no vazio. Estavam a trabalhar com colegas de África, da América, da Europa. Por isso, era uma colaboração global." A figura mais óbvia dessa equação é Daszak, o chefe da EcoHealth Alliance. O trabalho da sua vida, bem como os milhões que a sua organização já recebeu em bolsas de estudo, incluindo do governo dos E.U.A., tem revolvido em torno da ideia de que recolher vírus de animais em estado selvagem para, depois, os estudar – e modificar – em laboratório pode contribuir para preparar a humanidade para futuras pandemias. Não é difícil perceber por que ele pode querer afastar a ideia de que tal trabalho acabou, efetivamente, por dar origem a uma praga.
"Não quero mencionar nomes porque, quando o fiz no passado, isso fez com que as pessoas fossem bastante assediadas", diz Chan. "Acho que deve ser organizada uma investigação credível, para que uma comissão de investigação equilibrada e justa possa contactar esses indivíduos, entrevistá-los, descobrir o que sabem e obter quaisquer comunicações ou documentos que tenham trocado entre si."
Depois de o seu primeiro tweetorial ser explorado por órgãos de comunicação social de todo o mundo, Chan ficou nervosa com toda a atenção que recebeu. "Acho que não dormi mais do que duas horas naqueles cinco dias, sei lá. Pensei que tinha cometido suicido profissional em grupo: meu e de todos os meus coautores." Contudo, ela parece ter conseguido seguir em frente graças ao seu idealismo e ao seu vício em trabalho. Quando a pandemia eclodiu, o seu próprio laboratório de investigação foi afetado. É difícil imaginar Chan sentada, parada, sem fazer nada. Ela conta-me uma história sobre como, alguns anos antes, ela e o marido se casaram, basicamente durante a hora de almoço. "O meu chefe perguntou-me: "onde é que se meteram esta manhã?" E eu disse: "Casámo-nos.’. Foi bonito, simples, sem frufrus."
O que disse a sua família sobre isso? "Eles só descobriram mais tarde e gostavam que eu fizesse um casamento a sério um dia destes, mas andam a chatear-me por causa disso há mais de quatro anos e eu nunca o fiz. Estou demasiado ocupada a trabalhar."
Em Harvard, ela fez uma queixa sobre as condições de trabalho num laboratório. (Recusou-se a dar-me mais pormenores sobre o assunto.) E numa entrevista anterior com o MIT Technology Review, descreveu-se como "uma agitadora nata". Ela tem um amigo que a descreve como "a encarnação de ‘Ver Algo, Dizer Algo’, uma referência a uma campanha de longa duração do Departamento de Segurança Nacional dos E.U.A. para convencer as pessoas a fazerem soar o alarme se virem algo suspeito, de modo a impedir ataques terroristas.
"Tendo a pensar mais nas consequências de longo prazo do que nas consequências de curto prazo", diz-me. "Sim, estou a pagar um preço por ter levantado esta questão da origem laboratorial. Mas se ninguém o fizer, se ninguém denunciar um erro flagrante de conduta ou como um vírus que matou milhões de pessoas poder ter resultado de um acidente de laboratório, então vão acontecer mais coisas destas. Estamos apenas a criar um precedente para mais erros de conduta ou outros acidentes de laboratório causadores de pandemias."
Durante muitos meses, ela disse ter-se equivocado em relação à origem da pandemia. Disse que a sua intervenção inicial fora no sentido de garantir que uma teoria menosprezada demasiado depressa recebesse alguma atenção. "A razão pela qual insisti tanto na [hipótese da fuga laboratorial] foi porque os cientistas insistiram tanto contra ela – e com isto quero dizer que alguns cientistas com muita visibilidade insistiram com muita força. Se tivessem insistido contra a [teoria] da origem do tráfico de vida selvagem, eu insistiria a favor da origem do tráfico de vida selvagem. Para mim, é tudo uma questão de trazer algum equilíbrio e honestidade à questão."

No passado mês de setembro, porém, ela diz que um artigo com nova informação publicado pelo site The Intercept sobre uma candidatura a uma bolsa de estudo a fez inclinar-se mais para a explicação da fuga de laboratório. "Já enviámos o livro para a editora e ainda nos sentimos assim um bocado 50/50, talvez um pouco mais inclinados para a fuga. Falámos com os editores e dissemos que tínhamos de pôr isto no fim do livro porque acho que isto pesa na balança – faz a balança pender mais para o lado da origem laboratorial." A candidatura à bolsa mostra que, numa data tão precoce como março de 2018, a EcoHealth Alliance e colaboradores seus, incluindo o Instituto de Virologia de Wuhan, tinham planos para criar novos genomas de vírus semelhantes ao Sars. O objetivo era introduzir aquilo a que um especialista chamaria "novos locais de clivagem pela furina" – pedaços de material genético que poderiam melhorar dramaticamente a capacidade do vírus para infetar células humanas. Por outras palavras, estavam a pedir dinheiro para criar vírus bastante parecidos com o Sars-CoV-2. A candidatura, dirigida a um departamento de investigação das forças armadas dos E.U.A., foi rejeitada. Mas Chan continua a achá-la relevante. "Mostra-nos que os cientistas daquela cidade, talvez até dois anos antes de a pandemia começar, estavam a desenvolver preparativos para gerar um vírus destes", diz.
Não se trata de uma arma a deitar fumo. É antes, nas palavras de Chan: "Uma arma quente ao toque. Não há bala. Não temos provas definitivas de que o Sars-CoV-2 foi concebido naquele laboratório. Mas conseguimos ver que poderia ter sido. Parece altamente plausível que possa ter resultado do trabalho que estava a ser desenvolvido em Wuhan."
O que parece mesmo irritá-la é que os cientistas que submeteram a tal candidatura não disponibilizaram imediatamente aquela informação. "É muito chocante pensar que, quando este vírus foi detetado, os cientistas que sabiam dos preparativos para este trabalho não disseram nada sobre isso. Não disseram nada durante quase dois anos até alguém divulgar a candidatura," diz. "Acho que isto mostra que algumas das pessoas que mais sabem sobre de onde este vírus pode ter vindo não têm sido muito cooperantes quanto a partilhar aquilo que sabem. Ocultaram informação que poderia ter levado muitas pessoas a especular que isto veio de um laboratório." Se a teoria da fuga laboratorial estiver correta, é provável que exista um grupo de cientistas na China com duas coisas: conhecimento de exatamente aquilo que aconteceu e, presumivelmente, uma sensação de culpa inimaginável.
"Não os considero culpados de homicídio involuntário. Vejo-os como indivíduos metidos no meio de um furacão, sem capacidade para impedir o vento de soprar", diz Chan. Ela falou com um colega sobre as opções que estariam disponíveis para estes cientistas. "A nossa família pode ser toda presa. Toda a gente pode desaparecer. Por isso concordámos que, nessa situação, não diríamos nada durante décadas."
A confirmar-se a fuga laboratorial, como seria o dia seguinte? As repercussões geopolíticas seriam enormes, como é evidente. Haveria dimensões legais, morais, éticas. Matt Ridley, coautor de Chan, já denunciou a arrogância da ciência enquanto instituição. Os jornalistas que escrevem sobre ciência, que não costumam ser conhecidos por colocar em causa os cientistas, poderão reavaliar a forma como fazem o seu trabalho.

No entanto, Chan parece mais interessada em medidas práticas. Há passos que o mundo já deveria ter dado, na sua opinião, seja qual for a verdade por detrás da Covid. Isto inclui pôr fim a práticas que ela considera imprudentes: implicaria não só refrear a chamada pesquisa de "ganho de função", em que os cientistas tentam deliberadamente alterar vírus em laboratório para os tornar mais perigosos, na esperança de recolherem informações que possam ser úteis em caso de pandemia. Para Chan, isso também implicaria desistir do tipo de caça ao vírus empreendida pelos cientistas de Wuhan, um trabalho que implica recolher amostras de sangue ou fezes de morcegos, ou outras criaturas, e levá-las para laboratórios em grandes centros urbanos para as examinar em busca de patógenos ameaçadores. "Não sei por que os cientistas ainda estão a fazer isto", diz. "Por que não levamos esses laboratórios de pesquisa de patógenos para locais mais isolados, onde haja um bom protocolo de quarentena antes de os cientistas poderem regressar a uma área metropolitana? Cientistas altamente proeminentes já estão a dizer que deveríamos começar a tomar medidas preventivas com base no pressuposto de esta pandemia poder ter saído de um laboratório – para eles, já quase nem interessa se realmente saiu. Eles dizem que deveríamos mesmo tomar medidas para regular este tipo de pesquisa arriscada e eu concordo. Há milhões de vidas em jogo. Precisaremos de uma segunda pandemia de origem ambígua para darmos passos para tornar este tipo de pesquisa mais transparente e segura?"
Rhys Blakely / The Times / Atlântico Press
Tradução: Érica Cunha Alves
