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Dormimos uma noite no museu. Isto foi o que aconteceu

Carsten Höller convida o público a dormir nas suas Two Roaming Beds, no piso subterrâneo do Maat até ao fim de fevereiro. A arte como casa ou experiência íntima onde a Máxima mergulhou entre o sono e a vigília numa espécie de insónia feliz.

Foto: Per Kristiansen
02 de fevereiro de 2022 às 07:00 Patrícia Barnabé

Desde outubro de 2021 que a Fundação EDP/ MAAT, Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, nos apresenta esta exposição DIA, de Carsten Höller, com curadoria de Vicente Todolí. São cerca de 20 obras sobre a luz e a escuridão e criadas desde 1987 quando o artista, nascido em Bruxelas de pais alemães e formado em Fitopatologia, resolveu deixar a Ciência e pensar esculturas e instalações. Nesta dicotomia entre luz e escuridão, que a torna tão transversal e entendida por todos - tem sido muito visitada e elogiada por famílias - algumas peças  encantam-nos e ofuscam-nos em doses iguais. Quase nos desorientam pela sua luz estridente e/ou intermitente ou, precisamente pelo seu contrário, pela sua total e inusitada ausência. Assim, no meio de uma exaltação de sensações fortes e contrárias, Hóller convida-nos a ir mais fundo, a ver para além do que a aparência festiva e invasiva proporcionam - como uma metáfora de vida e dos dias que correm. 

Foto: Per Kristiansen

A apresentação da exposição avisa que a arte de Carsten Höller propõe "interacções subversivas entre corpos e espaços sempre recorrendo a uma atitude participativa" e é mesmo aqui que entram as suas Two Roaming Beds, de 2015, traduzidas para português como Duas Camas Itinerantes, camas  que vagueam no andar subterrâneo da exposição. Já em 2008, o artista tinha criado o Revolving Hotel Room "num quarto de hotel totalmente operacional à noite", e que esteve patente na exposição theanyspacewhatever no Guggenheim de Nova Iorque. Como não aceitarmos o convite de experimentar dormir nesta camas insone e levarmos alguém que partilhe a experiência connosco? (O que também não é nada inocente.) Depois do chove não molha pandémico e dos isolamentos constantes, é "um convite para sintonizarmos os nossos sentidos, abrirmo-nos novamente a processos de cognição que são activados em estados de desorientação, incerteza e ambiguidade." 

E a Máxima não resistiu.

Chegamos antes da hora do jantar e fazemos uma visita guiada pelas peças, olhando-as nas suas intenções e sentidos vários com a ajuda do Guilherme, um jovem guia do museu. Deixamos os valores num cacifo, recebemos todas as informações práticas e o curioso kit Insensatus, um conjunto de quatro pastas de dentes "para induzir e influenciar sonhos" concebidos pelo artista: uma maior que se diz "ativadora" e três tubos mais pequenos que contêm "substâncias  que evocam os sonhos relacionados com o mundo feminino, o masculino e o infantil." E podemos combiná-las e ajustar a sua intensidade à nossa medida. (Claro que não vamos ser spoilers e contar tudo) Vamos ser só um bocadinho: a experiência custa 300 euros.

De regresso ao museu depois de jantar (aconselhamos abandonar o carro no parque e ir a um dos restaurantes de peixe na doca), o silêncio e as luzes apagadas ajudam ao mistério desta curiosa experiência de dormir num espaço expositivo que se enche de pessoas durante o dia. Além da nossa companhia, só um segurança e mal se dá por ele. As camas vagueiam pelo espaço à velocidade de 0,7 metros por minuto controladas por sensores, raramente se aproximam entre si e das outras peças do artista que compõem a sala da exposição, e atrás de si deixam um rasto colorido feito por canetas que acompanham e traçam o nosso percurso durante toda a noite. São munidas de um candeeiro, um cacifo para pertences, um ficha para carregar o telemóvel e lençóis de algodão crispy impecáveis. Há um botão de emergência para quem queira sair da cama, mas vai acontecer-lhe o contrário: não querer sair quando, às 8.00 da manhã, todas as luzes se acendem a convidar-nos a sair.

Foto: Per Kristiansen

O resto é deixar-se levar, literalmente, das coisas que mais temos dificuldade em fazer. Imagine-se a flutuar em mar alto ou suspenso no espaço sideral, como uma centelha perdida na imensidão do universo, mas em pertença e segurança profundas. Dormir numa cama que se move lentamente pelo espaço, uma espécie de berço-ninho transparente em acrílico que contém o nosso descanso, os nossos sonhos e, por isso, à sua maneira, visita questões profundas sobre a intimidade, e a orientação no espaço, ao mesmo tempo que nos transporta numa espécie de reflexão meditativa: o que é público e o que é privado? Qual a linha que divide o descanso e o alerta? O nosso caminho é sempre solitário ainda que acompanhado? Ou, pelo contrário, estaremos sempre juntos a vaguear pela vida, nesta busca incessante de um lugar na imensidão que é a existência? 

Na era da informalidade em que vivemos, e onde todas as estruturas sociais parecem estar postas em causa, passar a noite num museu é uma forma de desacralizar, até de questionar, o lugar institucional e distante que os museus ocupam na cidade e na sociedade em geral. E este lugar de alguma fragilidade relembra-nos a questões maiores, existenciais, mas convocadas pelo lado mais fácil e divertido da vida: o da leveza e da sensorialidade, o da evasão e da brincadeira. Somos quase embalados num berço, coisa que a maioria nunca mais experimentou desde que chegou, nu e indefeso, a este mundo. Às vezes sentimo-nos mesmo no útero. Afinal trata-se do sono e dos nossos sonhos, aqueles lugares só nossos de conforto e segurança e reflexão onde se aninham os nossos medos, mas também a nossa esperança. 

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