Atual

Mutilação Genital Feminina. “De cada vez que falo da prática é como se estivesse a ser submetida novamente”

No Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, 6 de fevereiro, a Máxima foi ouvir Fatumata Djau Baldé, ativista e antiga Ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. Mutilada aos nove anos, explica como se tornou numa figura maior da luta pela erradicação da prática que lhe deixou marcas para a vida.

Grupo de crianças preparam-se para o carnaval na Guiné-Bissau, 2018.
Grupo de crianças preparam-se para o carnaval na Guiné-Bissau, 2018. Foto: Getty Images
06 de fevereiro de 2023 Rita Lúcio Martins

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que mais de 200 milhões de mulheres e raparigas já tenham sido submetidas à prática de Mutilação Genital Feminina, sobretudo em países africanos, asiáticos e do Médio Oriente. Mas não só. 

De acordo com o Centro de Regional de Informação para a Europa Ocidental das Nações Unidas, serão mais de 500 mil na União Europeia. Portugal não escapa à estatística. Segundo a Direção Geral de Saúde (DGS), entre 2018 e 2021 foram registados 433 casos – somando-se um total de 668, contabilizados desde 2014. A maioria destas mulheres, todas a residir em Portugal, é natural da Guiné-Bissau. Foi quase sempre em visita ao país de origem que foram mutiladas, maioritariamente durante a primeira década das suas vidas, algumas logo na primeira semana. Isto é o que dizem os números. Muito diferente é conhecer as histórias. E é isso que Fatumata Djau Baldé faz, porventura como poucas.

Presidente da Associação de Mulheres Alternativa e Resposta da Guiné-Bissau, Fatumata presidiu o Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança e esteve ativamente envolvida na vida política da Guiné-Bissau, primeiro como Secretária de Estado do Turismo, depois como Secretária de Estado da Solidariedade Social e, em 2019, como Ministra dos Negócios Estrangeiros. Na data em que se assinala o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, Fatumata expõe as várias camadas da prática e explica como a combate em várias frentes, da política à academia, mas sobretudo no terreno. 

Fatumata Djau Baldé, ativista e antiga Ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau.
Fatumata Djau Baldé, ativista e antiga Ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. Foto: D.R

Foi "dada" em casamento aos 9 anos. A mesma idade com que foi submetida à prática da mutilação genital feminina. Aliás, defende que as duas práticas estão muito associadas. De que forma?

Na medida em que uma condiciona a outra. Nas comunidades praticantes de mutilação genital feminina (MGF), a prática é tida como uma condição para a menina ser aceite pela comunidade, podendo participar em todos os outros rituais, inclusive poder casar. Uma menina não submetida à MGF, para os praticantes dessa tradição, não reúne as condições necessárias para isso. Uma mulher que não venha dessa cultura, acaba por ser submetida à MGF para poder ultrapassar várias formas de discriminação que a limitam na sua vida quotidiana - como por exemplo, não poder cozinhar para o marido e para a família, mas vai além disso. Ela é um alvo de troça.

Falamos sobretudo de comunidades islâmicas? 

Sim, ainda que existam outras comunidades a praticar a MGF nas mesmas condições. A verdade é que há uma grande ligação com a tradição islâmica, apesar do Alcorão e dos ensinamentos do profeta [Maomé] não a recomendarem. Na Guiné-Bissau, quer os praticantes, como quem se converte ao islamismo, acabam por adotar esta postura de discriminação das mulheres que não foram submetidas à MGF, mas também de preocupação com as suas filhas, na medida em que consideram que a mãe não cumpriu o seu papel. Há aqui diferentes ordens de objetivos: em primeiro lugar fazer com que a mulher seja aceite pela comunidade mas, ao considerar que a MGF é uma forma de reduzir o prazer sexual da mulher, acreditam que tal vai libertá-la da promiscuidade, evitando relações fora do casamento. Uma menina que chega virgem ao casamento é um motivo de satisfação e de alegria para família e de respeito e consideração para a sua mãe que, naquele momento, é reconhecida como alguém que sabe educar de acordo com os princípios tradicionais. É essa a sua maior responsabilidade. 

Ainda há uma forte expressão da MGF na Guiné-Bissau?

Hoje, podemos dizer que a prática reduziu bastante, sobretudo nas faixas etárias mais jovens e mais escolarizadas – pela escola "normal", mas também pela escola religiosa, corânica. Quem justifica a prática recorrendo ao islão são os mais antigos. A maior parte dos jovens que sabe interpretar o Alcorão já não advoga a continuidade da prática. No entanto, ela continua a acontecer, mas às escondidas. A "mera" existência das leis não chega para terminar com práticas seculares, é preciso muito trabalho no terreno. Mas hoje quem continua a fazer MGF sabe que está a insistir numa prática proibida.

E já há criminalização. 

Sim, desde 2011. Na sequência dessa lei já houve penas, até de três anos de prisão. Quer para familiares das crianças submetidas (pais e mães), mas também para a família mais alargada, porque a lei pune todos os atores envolvidos, inclusive quem teve conhecimento e não tomou nenhuma medida para impedir a sua realização. Hoje a prática é realizada poucos dias após o nascimento da bebé, ao final da primeira semana de vida. Há a tradição de furar as orelhas da criança e, nesse momento, faz-se também a MGF. Assim, atribui-se o choro ao furo das orelhas e não ao fanado.

"Uma menina que chega virgem ao casamento é um motivo de satisfação e de alegria para família e de respeito e consideração para a sua mãe que, naquele momento, é reconhecida como alguém que sabe educar de acordo com os princípios tradicionais." Foto: D.R

Fanado é uma forma de designar a MGF.

Sim, na língua crioula, significa mutilação e circuncisão. Depois existem ainda outras designações consoante os diferentes grupos étnicos. A fanateca é a mulher que realiza a prática. No passado, não era qualquer mulher que podia desempenhar esse papel, tinha de pertencer a uma família de praticantes. E a faca ia passando de geração em geração. Há sempre alguém da família a aprender com a fanateca, não apenas o corte, mas tudo o resto, porque esta mulher é encarada como alguém com poderes superiores. A dada altura, acreditou-se que as motivações económicas também pesavam muito e fez-se um trabalho junto a estas mulheres, em que lhes foi dado dinheiro para que depositassem as facas. Mas não se atuou sobre o aspeto tradicional e cultural da prática, por isso, muitas aceitaram o dinheiro, mas continuaram a exercer a prática, como houve outras que começaram nesse momento, mesmo quando não vinham dessa tradição, mas que aí viram uma oportunidade. No Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança [que presidiu de 2009 a 2021] temos conhecimento de várias antigas fanatecas e até trabalhamos com algumas, que já participam em ações de formação e sensibilização, mas é difícil ter conhecimento de novas, precisamente porque se escondem.

Recebem muitos pedidos de ajuda, por parte de quem queira escapar à prática? 

Não é frequente. Vivemos num regime patriarcal em que a criança pertence mais à família paterna do que à própria mãe. Por isso, mesmo quando a mãe não está de acordo, a voz dela não é ouvida e a criança acaba por ser submetida à prática. Muitas vezes sem que a própria mãe saiba.

Ao contrário do que aconteceu consigo, as suas filhas não foram submetidas à MGF. Que consequências é que isso teve a nível familiar?

Num primeiro momento, os familiares do meu marido reagiram mal, foi muito duro. Mas o meu marido foi claro na sua posição. Tradicionalmente, sobretudo no interior do país, quando um jovem casal casa, vai viver com a família do homem e isso facilita as condições para que a MGF aconteça. O nosso caso era diferente. Estávamos a viver em Bissau e estávamos os dois de acordo. E tomámos precauções, nunca deixámos as crianças sozinhas com a família paterna. Com a minha família era diferente. Porque, segundo o entendimento comum, as minhas filhas não pertencem a mim, pertencem ao meu marido, logo a vontade dele teria de ser respeitada. 

"Vivemos num regime patriarcal em que a criança pertence mais à família paterna do que à própria mãe." Foto: D.R

Como é que a menina que foi mutilada aos nove anos se torna uma ativista?

A mutilação acontece dentro de uma barraca, onde as meninas completam um período de reclusão. Foi logo nesse momento que manifestei os primeiros sinais de discordância com aquela tradição. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica quatro tipos de MGF, na Guiné-Bissau, o tipo II é o mais prevalecente, mas também existe o tipo III, em que a menina é selada para que não possa ter relações sexuais antes do casamento, altura em que volta a ser submetida a outra prática, para abrir de novo o orifício vaginal. É muito doloroso. São os pais que decidem qual o tipo de MGF praticada. No meu caso foi o tipo II, mas como na primeira intervenção não conseguiram o resultado desejado, dias depois fui novamente intervencionada. Durante a fase do tratamento concluíram que ainda havia necessidade de uma terceira intervenção. Depois, existem aspetos que acompanham o ritual. Recordo-me de vários. No momento da reclusão, cada menina tem uma mulher que, naquele período, é a sua "mãe da barraca". Ela tem, entre outras funções, a de ir buscar comida a casa dos pais da menina de quem está a cuidar, e ajudar a passar os ensinamentos relacionados com o ritual. Às vezes mandavam-nos dormir e sonhar com coisas boas, com comida, por exemplo. Diziam-nos que se sonhássemos com um determinado prato, as nossas mães teriam de o confecionar para nós. Recordo-me de ter dito que tinha sonhado com um prato de frango, muito tradicional. Quando a comida chegou, as responsáveis comeram-na toda e deram-nos os restos. Na segunda vez que me mandaram sonhar, disse-lhes que tinha sonhado que o meu pai entrava ali com uma arma e as matava a todas. Era uma criança e era a minha forma de manifestar a injustiça. Nesse dia bateram-me muito e nunca mais fui posta a sonhar. São momentos que recordo e que me marcaram. Por outro lado, comecei desde cedo a familiarizar-me com questões dos direitos da mulher e da criança, por exemplo, na juventude daquele que, na altura da independência do país, era o partido único, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Em 1994 integrei a Linha Guineense dos Direitos Humanos e tudo isso me transformou na ativista que sou. Alguém que, em cada momento decisivo, se recorda do que passou em criança, na barraca. Existem vários tipos de violência exercidos contra as mulheres no seu dia a dia, mas consequências como as da MGF acompanham a vítima para o resto da sua vida. Uma criança mutilada nunca vai deixar de o ser, até morrer. De cada vez que falo da prática, é como se estivesse a ser submetida novamente. Ainda que tenham passado quase 50 anos... 

"No momento da reclusão, cada menina tem uma mulher que, naquele período, é a sua "mãe da barraca". Ela tem, entre outras funções, a de ir buscar comida a casa dos pais da menina de quem está a cuidar, e ajudar a passar os ensinamentos relacionados com o ritual." Foto: D.R

Há uma multiplicidade de camadas, culturais, religiosas, familiares. É por isso que a prática subsiste?

A tradição cultural de várias etnias da Guiné-Bissau é a de que uma mulher sofredora gera filhos fidalgos. E que mãe não sonha com filhos bem-sucedidos? São expressões deste tipo que perpetuam uma cultura de violência. Recordo-me do caso de uma mulher violentada pelo marido que foi apresentar queixa na polícia e o polícia não só admitiu fazer o mesmo à sua mulher como a ameaçou, dizendo que iria chamar o seu marido e ela seria novamente espancada. Hoje já há uma lei que previne estes casos e pune a violência doméstica. Mas ainda há muitos casos em que a mulher desiste da queixa. E a ideia de que uma mulher que apresenta queixa não é uma boa mulher, logo corre o risco de depois ser abandonada e estigmatizada, por ser o tipo de mulher que leva o marido à justiça. A cultura e a tradição continuam a ter um peso enorme, mas felizmente hoje a violência doméstica é crime público. No entanto, os casos demoram muito tempo a chegar à justiça e assim a lei perde o seu efeito dissuasor. 

Em 2003 assumiu o cargo de Ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. Como é que se deu esta incursão na política?

Foi uma evolução natural. Além de ativista, fui cofundadora do Sindicato dos Professores e, a dada altura, comecei a trabalhar bastante com organizações de mulheres e conheci a Filomena Tipote, atual embaixadora da Guiné em Marrocos, mas que, no passado, foi Secretária de Estado de Solidariedade, Ministra da Administração Pública, Ministra dos Negócios Estrangeiros e Ministra da Defesa. Foi ela quem me convidou para ser Presidente do Instituto da Mulher e da Criança, instituição com a responsabilidade de adoção de políticas públicas na área da igualdade de género, mas também no que respeita aos direitos da criança. (...) Naquela altura, não pertencia a nenhum partido político, mas na restruturação governamental seguinte, fui convidada para Secretária de Estado do Turismo e, mais tarde, Secretária de Estado da Solidariedade Social e, por fim, Ministra dos Negócios Estrangeiros. Senti que tinha de entrar na política partidária porque estava a ser feita já muita coisa ao nível da sociedade civil, mas não havia expressão a nível político. 

Em 2018 ingressei num partido político e, em 2019, voltei ao Governo como Ministra da Administração Pública e Modernização do Estado. O meu objetivo é fazer chegar a voz das mulheres a instâncias de decisão e fazer com que o próprio governo se comprometa com as causas da mulher, se engaje. O combate à MGF não pode ser feito apenas pelas mulheres, pelo Comité de Práticas Nefastas ou pela sociedade civil. O Governo tem de adotar e garantir a aplicação das políticas públicas. Em algumas partes do mundo, qualquer criança dos zero até aos cinco anos que chegue a um hospital, seja por que razão for, é vista no sentido de perceber se foi vítima de MGF. E se tiver sido, são acionados procedimentos legais. Isso podia ser feito na Guiné. Não há ninguém que possa combater a MGF de forma mais eficaz do que a própria justiça e os profissionais de saúde. Mas, para isso, é preciso o engajamento do Estado. É essa a minha motivação para ingressar na política. Para que esta luta suba de degrau. É com essa convicção que vou concorrer para deputada nas próximas eleições. 

E qual foi a motivação para fazer o doutoramento em Estudos de Género, que começou em 2020?  

Costumamos dizer que as ações de formação e de informação no terreno são fundamentais para sensibilizar a população. Mas as pessoas com quem nos cruzamos já submeteram as suas filhas à prática, já as deram para casamentos precoces. Essa luta terá mais resultados quando os jovens se apropriarem dela. E os jovens estão na academia. É por isso que quero ser uma professora universitária. Continuar no terreno, mas chegar também à academia. 

Está a promover uma angariação de fundos para construir uma escola... 

Sim, há muitas dificuldades, sobretudo nas zonas mais afastadas da capital. Por isso é tão importante que todas contribuamos. Eu e a minha mãe pertencemos à mesma comunidade. Somos ambas fula, fomos educadas da mesma forma, com uma única diferença: eu fui escolarizada e ela não. E isso permitiu-me dizer não à violência e ela mandou-me mutilar, porque acreditou que estava a preparar-me para que eu fosse aceite. Ser escolarizada tornou-me diferente. Por isso é essa a minha grande aposta. Quando uma mãe é escolarizada os benefícios para a sua família e para a sua comunidade são enormes.

De onde vem essa energia?

De ver tantas pessoas com esperança em mim. Enquanto puder tenho de continuar. 

Saiba mais
Mundo, Atualidade, Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, Fatumata Djau Baldé
As Mais Lidas