Manuela Ramalho Eanes: "Comigo e pela primeira vez houve um gabinete para a mulher do presidente"
Mais do que uma voz sonante e uma presença forte, Manuela Ramalho Eanes é – e continuará a ser – a primeira-dama das causas.

Na linha da frente das mulheres que contribuíram para mudar a sociedade portuguesa, ousou falar, sem filtros e com firmeza, de pobreza e de maus-tratos infantis, e de abuso sexual em crianças quando, no pós-25 de Abril, negavam que os mesmos existissem. Rompeu com tradições atribuídas à mulher de um presidente da república em prol de um bem maior: o da ação social. De uma intocável dignidade, de uma bondade evidente e de uma cativante delicadeza, percetíveis até nos gestos, Manuela Eanes tem uma vida repleta de muitos feitos. E de muitas alegrias.
Dos graciosos 80 anos de Manuela Ramalho Eanes (Almada, 1938), pelo menos mais de 50 foram dados à causa social. Seja ela de que forma for. Membro fundador e hoje presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), instituição fundada em 1983 e que deu existência a importantes projetos, como a Linha SOS Criança ou o Projecto Rua, mantém-se à frente dessa instituição que, em março passado, assinalou o 36.º aniversário de existência. Foi presidente da Juventude Universitária Católica Feminina, aquando da sua formação universitária em Direito, o que lhe aguçou o espírito de liderança. Foi também a mais jovem primeira-dama da democracia portuguesa, pois tinha 37 anos quando o marido, António Ramalho Eanes, foi empossado como Presidente, em 1976, mostrando ao país o que nunca se tinha visto desde o Estado Novo: uma primeira-dama jovem, licenciada, ativa profissionalmente, não sendo apenas mãe de família, grávida por duas vezes e, naturalmente, com dois filhos pequenos, Miguel e Manuel. Participou em campanhas políticas ao lado do marido durante uma década de presidência (de 1976 a 1986) e, tal como o general Ramalho Eanes, nunca baixou os braços e manteve-se sempre atenta à política e à economia do país. Era a única mulher de um presidente que prescindia da presença de profissionais de cabeleireiro ou de maquilhagem nas viagens oficiais ao estrangeiro. Tratava sozinha desses embelezamentos femininos e com um bom resultado. O estatuto que detinha proporcionou-lhe privar oficialmente com figuras históricas como a rainha Isabel II, Margaret Thatcher, Ronald e Nancy Reagan, Madre Teresa de Calcutá ou os reis de Espanha, tendo alicerçado uma relação amigável com a rainha Sofia, o que também sucedeu com os monarcas belgas, Balduíno e Fabíola. Foi distinguida com o Prémio Cidadão Europeu 2015 pela sua ação à frente do IAC. Mais recentemente foi-lhe atribuído o prémio Personalidade do Ano – Direitos Humanos e Cultura do Movimento de Arte Contemporânea. Continua a ter os olhos postos no futuro e uma vida repleta de conquistas.

Licenciou-se em Direito. Era um desejo seu ou aconteceu porque era o que fazia sentido naquela época?
Eu sempre me preocupei com os problemas humanos, sociais e culturais, e o meu pai foi um grande exemplo para mim. Foi um menino pobre de uma aldeia em Viseu [Penedono] e era um homem fantástico. Como sempre teve uma grande preocupação social, o meu pai quis deixar na aldeia dele, onde não tinha tido condições, uma obra extraordinária. Eu fui, assim, muito influenciada pelo meu pai porque ele era uma pessoa muito humana, ajudava toda a gente e tinha uma ação muito dinâmica. Na altura de escolher [os estudos superiores] e se escolhesse sozinha, eu iria para técnica de Serviço Social. E há 50 anos não havia tantos cursos… Mas o meu pai dizia, com muita graça, que se eu tirasse Direito daria para tudo, "menos para dizer missas e passar receitas". Fui para Direito e não me arrependi porque o curso deu-me uma visão muito global dos problemas políticos, económicos e sociais.
Que princípios regeram toda a sua vida?

Eu fiquei muito ligada ao movimento Humanismo Cristão com [Emmanuel] Mounier, Teilhard de Chardin e Jacques Maritain. Era Mounier que dizia aquele que é o pensamento fundamental na minha vida: "Nós só existimos quando existimos para os outros." Em segundo [lugar como pensamento fundamental], o que disse o bispo D. Hélder da Câmara: "Graça das graças é não desistir nunca." E as pessoas desistem facilmente. Por fim, como escreveu Ricardo Reis: "Põe quanto és no mínimo que fazes." No fundo, neste mundo globalizado as pessoas andam sempre com pressa sem nunca terem tempo para nada.
O que recorda dos tempos em que dirigiu a Pousada de Raparigas, em Albufeira?
Eu tive sempre a sorte de trabalhar na área social. Nessa altura eu estava no Instituto de Obras Sociais que tinha vários projetos em todo o país, como as termas, as creches, os jardins de infância e as pousadas de férias. Fui diretora desse centro durante três anos, em Albufeira. A cada 15 dias tinha 60 jovens, desde os 10 anos até [à idade de estudantes] universitárias. Naquela época usava-se muito os turbantes, como os da Grace Kelly, e eu punha todos os dias o meu turbante. Um dia fizeram-me uma partida: apareceram todas no refeitório com turbantes feitos com as toalhas. Íamos em traineiras de pescadores fazer passeios pela costa algarvia que é lindíssima. Fazíamos sardinhadas. Debatíamos sobre o namoro e o casamento. Aos serões eu levava de Lisboa livros de poesia de autores como Sebastião da Gama, Torga e Sophia. Foi um tempo de alegria, de juventude, de passeios e de poesia.

Aos 37 anos tornou-se a mais jovem primeira-dama da Democracia portuguesa. Continua a não gostar dessa definição?
O termo está tão implantado em todo o lado que não vale a pena contrariá-lo. Está institucionalizado de África aos Estados Unidos, passando pela Europa. Eu gosto de dizer que a mulher do presidente deve ser uma pessoa aberta e simpática, mas sobretudo deve ter uma grande dignidade e ser solidária com os problemas das pessoas. A herança mais importante que uma pessoa pode deixar aos filhos é a dignidade.
Quais passaram a ser as suas preocupações?
Eu sempre me dei aos outros e fui ativa. Achava que o mais importante para as mulheres, em Portugal, era sentirem que eu as representava e que eu estava com elas, solidariamente, nos seus problemas. Comigo e pela primeira vez na Presidência da República houve um gabinete para a mulher do presidente porque as outras senhoras [primeiras-damas] apenas iam lá tomar chá uma vez por semana… Eu recebia muitas cartas contendo os mais variados problemas. Sempre procurei ter dignidade, ser útil, sentir-me disponível. Para mim, o mais importante é [hoje] ver que as pessoas também me viam assim e com simplicidade.
Acabou por se cruzar com pessoas fascinantes e interessantes…
Foi um tempo [em Portugal] com muitas dificuldades económicas e políticas. Todos os dias havia manifestações e o meu marido evitou uma guerra civil com o Grupo dos Nove [referência ao golpe militar do 25 de Novembro de 1975]. Mas também foi um tempo de grande enriquecimento humano, cultural e social. Eu e o meu marido gostamos muito de pintura e de escultura, e sempre tivemos amigos artistas, como Vieira da Silva, Manuel Cargaleiro, Nadir Afonso, Noronha da Costa ou Lima de Freitas… E há duas pessoas que admiro por serem políticos com ética: Henrique de Barros e Francisco Salgado Zenha. Foram pessoas que encararam a política como um serviço à comunidade e que levaram o país a ficar melhor por causa deles. A nível internacional ficámos com uma relação muito bonita com a rainha Fabíola e o rei Balduíno. E também com a rainha Sofia, uma mulher extraordinária, o pilar da monarquia e da democracia em Espanha. Estive com a Madre Teresa de Calcutá quando veio a Portugal e com Irmã Lúcia. O meu marido criou uma relação muito especial com o chanceler [Helmut] Schmidt, da Alemanha, e também conhecemos o Jacques Delors no casamento da princesa Diana e do príncipe Carlos.
Em 1983 fundou o IAC. O que sentiu e quais eram as suas aspirações para este instituto?
É um projeto muito bonito. Havia um grupo de pessoas, entre outros, médicos, professores, magistrados e psicólogos, que tinha o sonho de ter uma associação que defendesse os direitos da criança. A nossa primeira prioridade foram as crianças maltratadas e abusadas sexualmente. Ninguém em Portugal, nem a comunicação social, falava sobre isso. Os vizinhos que sabiam [de casos] tinham medo de falar. Logo a seguir criámos o serviço SOS-Criança que permitia ligar de forma anónima e confidencial para confessar suspeitas. A nível internacional, só cinco anos depois é que as Nações Unidas aprovaram a Convenção dos Direitos da Criança. Quando se falava em crianças de rua pensava-se que era só em África ou no Brasil que isso acontecia. Nessa altura havia mais de 500 crianças em situações de marginalidade, roubo e droga na Baixa lisboeta. Avançámos com um projeto que foi inovador a nível europeu e que ainda existe, mas de outra maneira. Já mudámos leis com ajuda de outras instituições. O Instituto de Apoio à Criança é, assim, o meu grande projeto de vida, mas com grandes equipas.
O que é que os anos dedicados às crianças e às famílias lhe ensinaram?
Foi Mandela que disse que a criança é o projeto mais importante e mais belo da humanidade. É o ser mais vulnerável e mais querido que temos de acompanhar com o maior carinho. A criança é um sujeito de direito e é a partir de crianças mais felizes que existirão adultos mais felizes. Se uma criança sofre muito com maus-tratos e com fome poderá vir a ser um jovem e um adulto infeliz e revoltadíssimo. Temos obrigação moral de dar tudo para que aquela criança seja mais feliz, conversar muito com ela, dar-lhe carinho e condições de bem-estar e dignidade.
Acredita que o fator humanidade é imprescindível a tudo na vida?
Estamos num mundo desumanizado e indiferente (…) e é um mundo de grandes contrastes. Temos de pensar que não podemos mudar o mundo, mas que podemos mudar o ambiente para um ambiente de tolerância e de solidariedade com as pessoas que estão à nossa volta, seja na família, no trabalho ou na comunidade. Não se pode mudar o mundo, mas não vamos ficar de braços cruzados. Há um provérbio chinês que diz algo como isto: "Se quiseres um projeto para um ano arranja uma semente. Se quiseres um projeto de dez anos planta uma árvore. Se quiseres um projeto para uma vida aposta na educação." E assim é.

