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Testemunho. "É chocante reconhecer que a retirada de preservativo sem consentimento é violação"

Quanto escrevi sobre a noite em que o meu parceiro retirou o preservativo, sem o meu consentimento (o chamado ‘stealth’), durante o ato sexual, muitas mulheres contaram-me que finalmente tinham encontrado as palavras certas para descrever como é que a falta de consentimento equivale a violação. Recordamos o testemunho, a propósito do caso Russell Brand.

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22 de setembro de 2023 Máxima

Na tarde do domingo de 27 de junho, olhei para o meu telemóvel e rompi num pranto. Havia 10 mensagens privadas no meu Instagram, todas elas de mulheres que me contavam que tinham sido violadas. Algumas das mensagens eram curtas, ao passo que outras era autênticos tratados, pormenorizando os impactos do trauma que tinham vivido. As histórias eram variadas, mas todas tinham uma coisa em comum: as mulheres que as estavam a partilhar comigo só tinham descoberto há pouco tempo que aquilo que lhes tinha acontecido era violação. Vou explicar-vos.

Na minha peça para a revista Style, do The Sunday Times, que tinha acabado de ser publicada, eu descrevia de que forma é que tinha sido alvo de abuso sexual há quatro anos e como é que só recentemente a tinha registado como uma violação. O homem, a quem chamei de Sam*, era uma pessoa que eu tinha conhecido quatro anos antes através de um amigo em comum.

Sam e eu já saíamos juntos há algumas semanas quando aconteceu. Foi a primeira vez que tivemos sexo e apesar de eu sempre ter partido do princípio de que iria ser fabuloso – a nossa química sexual parecia fantástica –, acabou por ser desconfortável e constrangedor. Eu não tomava qualquer contracetivo nessa altura, pelo que optámos pelo preservativo. Depois, Sam disse-me que talvez eu devesse tomar a pílula do dia seguinte. Três semanas mais tarde, descobri que estava grávida.

'Millenial Love', livro da autora Olivia Petter
'Millenial Love', livro da autora Olivia Petter Foto: D.R.

O que me aconteceu, e às outras mulheres que falaram comigo, é coloquialmente conhecido como stealthing [retirar o preservativo, durante o ato sexual, de forma propositada e sem o consentimento do parceiro]. Esta prática é considerada crime em Inglaterra e é reconhecida pela Procuradoria-Geral da Coroa [CPS, na sigla em inglês] como um caso de "consentimento condicional", o que significa que o consentimento está sujeito a determinadas condições – que foram desrespeitadas. [Em Portugal não existe uma lei específica para o ato de retirar o preservativo sem consentimento.] No meu caso, consenti ter sexo com o Sam na condição de usarmos um preservativo, mas não consenti ter sexo desprotegido com ele. E é isso que faz com que seja considerado violação.

Embora o CPS não tenha números específicos sobre os casos de stealthing no Reino Unido, é algo de que se fala mais junto dos jovens. E isto em grande parte graças à série da BBC I May Destroy You, de Michaela Coel. Na série, Arabella (papel desempenhado por Coel), tem sexo consensual com um homem chamado Zain (personagem protagonizada por Karan Gill) e depois descobre que ele retirou o preservativo em pleno ato sexual. Mais tarde, ela chama-o de violador; foi quando vi isso retratado no ecrã que me apercebi que o Sam também era um violador.

Devido ao êxito da série de Coel – recentemente conquistou dois prémios Bafta –, assumi que a maioria das pessoas sabia o que era stealthing. Isso e o facto de o assunto ter sido amplamente coberto pelos meios de comunicação social em 2017, quando um estudo da Universidade de Yale revelou a sua prevalência nos Estados Unidos. Acabei por perceber naquele domingo o quanto a minha suposição estava errada, quando fui inundada com mensagens de mulheres a agradecerem-me por dar um nome a uma coisa que elas nem sequer sabiam que era considerado crime.

"A única coisa que eu sabia era que o meu consentimento tinha sido desrespeitado", escreveu Sally*. As palavras são poderosas. Até ao último domingo, eu não tinha uma linguagem para falar sobre o que me tinha acontecido. Se, quando era mais nova, tivesse tido isso, talvez não tivesse passado por uma vida inteira de vergonha".

Olivia Petter
Olivia Petter Foto: @oliviapetter8

Uma outra sobrevivente, Jess*, também nunca tinha ouvido falar de stealthing. "Como a minha experiência não foi ostensivamente violenta, nunca senti que pudesse usar o termo ‘violação’", contou-me. Jess conheceu o perpetrador numa aplicação de encontros e já tinham saído três vezes quando o abuso aconteceu. "Recordo-me de ele me agarrar em posições que magoam. Sempre que lhe pedia para parar, ele dizia-me: ‘num instante vais sentir-te melhor’". Em seguida, disse-me que o preservativo que estava a usar se tinha rasgado, pelo que precisava de o tirar para pôr outro. "Dei-lhe um preservativo. Como estava escuro, presumi que ele o tinha colocado. Mas, na manhã seguinte, quando fui ao caixote do lixo vi o preservativo original, que não estava rasgado. E então vi o segundo preservativo; a embalagem tinha sido aberta mas o preservativo não tinha sido usado. Nunca mais tive notícias dele".

Jess continua a ter dificuldades em aceitar o abuso de que foi vítima. "Mesmo enquanto lhe escrevo estas palavras, sinto-me como se estivesse a reagir de forma exagerada", contou-me. Ela nunca falou com os seus amigos ou familiares sobre o que aconteceu. "Será que o entenderiam como violação? Não tenho a certeza se quero saber isso".

Uma outra mulher, Milly*, disse-me que se sentia "embaraçada" por não ter percebido que o preservativo tinha sido retirado: "os meus amigos acharam piada e disseram ‘a rapariga que não faz sexo casual fê-lo uma única vez e provavelmente apanhou uma infeção sexualmente transmissível’. Até mesmo a minha médica me disse para ‘ser mais cuidadosa’".

Recebi muitos outros relatos, cada um deles tão angustiante quanto o anterior. Mas as mensagens que recebi não foram só de mulheres. "Senti-me arrependido quando li o artigo", contou-me James*. "Acho que os homens conseguem ser incrivelmente ignorantes no que toca às suas atitudes, comportamentos e ações para com as mulheres, e falta-lhe a necessária consciência".

Um outro homem, Ian*, que tem duas sobrinhas com 20 e poucos anos, disse-me que o meu artigo o tinha feito sentir-se "um pouco enojado". "Também me fez refletir sobre as vezes em que não me portei decentemente e sobre a responsabilidade que tenho em ser um aliado", acrescentou.

O Conselho Nacional de Chefes da Polícia, no Reino Unido, aconselha as vítimas de stealthing a ligarem para o 101 ou a deslocarem-se a uma esquadra da polícia. Mas se escolher fazer isto (eu não o fiz), o que acontece a seguir pode ser complicado. "Apesar de já ter havido alguns réus que foram acusados de violação associada a casos de stealthing e de saber que já houve algumas condenações, é muito difícil constituir matéria probatória de modo a que a acusação seja bem sucedida", explica Nicholas Denty, advogado de defesa criminal especializado em crimes sexuais. "Isto acontece porque a acusação tem de provar, para lá da dúvida razoável, que o queixoso não consentiu e que o réu não teve uma convicção razoável desse consentimento".

No meu caso, isso significa que se eu tivesse denunciado o Sam, eu teria, de alguma forma, de provar que não tinha dado consentimento a sexo sem proteção e que não me tinha apercebido que ele tinha retirado o preservativo. Não só isto seria praticamente impossível como seria humilhante e, possivelmente, uma vez mais traumatizante. "Estes casos tendem a resumir-se aos seus próprios factos, como saber de que forma foram comunicadas as condições do consentimento e até que ponto é que o suspeito compreendeu claramente as condições", acrescenta Denty. "Os procuradores reconhecem que é difícil provar, em muitas circunstâncias, onde é que o início do ato sexual foi consensual. Consequentemente, relativamente poucos suspeitos acusados de stealthing são condenados".

A série da HBO 'I May Destroy You' (2020) aborda diferentes questões relacionadas com o consentimento
A série da HBO 'I May Destroy You' (2020) aborda diferentes questões relacionadas com o consentimento Foto: IMDB

Não há nada de ambíguo no abuso sexual – o consentimento ou é desrespeitado ou não é – mas descobri que tende a haver muita ambiguidade à volta disso. Há atualmente mais de 260 comentários online ao meu artigo e são sobretudo entre pessoas que estão a discutir o que é ou não uma violação. Uma mulher explicou que sentiu que considerar o stealthing uma violação é algo que "dilui" as experiências de outras pessoas que podem não ter consentido qualquer forma de contacto sexual. Outros disseram que isso "diminui" as experiências de violação de outras pessoas, ao passo que um comentou que o Sam merecia levar "uma valente sova" mas que chamar "violação" à atitude que teve desvalorizava a definição da palavra.

Este debate faz sobressair um dos principais problemas sobre a forma como falamos de abuso sexual: o de que existe um espectro de experiências com, por um lado, histórias "extremas", e, por outro lado, histórias que são, de certa forma, "menores". Isso perpetua a ideia de que alguns abusos são mais merecedores de atenção do que outros. Não só isto ignora o facto de o trauma sexual de qualquer tipo poder ter consequências permanentes para os sobreviventes como também é isso mesmo que impede pessoas, como a Jess, a Sally ou eu mesma, de se sentirem no direito de dizer que foram violadas quando, nos termos da legislação britânica, o foram de facto. E, como tão bem sei, debatermo-nos com esse sentimento, a par com o trauma sexual, pode ser imensamente isolador e, nalguns casos, isso significa que há mais probabilidade de o perpetrador ser desculpado, o que lhe permitirá abusar de outra pessoa.

Lamentavelmente, tal como percebi ao escrever sobre abuso sexual, o stealthing é apenas a ponta do iceberg. As histórias que me foram partilhadas para incluir no meu livro, o Millennial Love, eram chocantes e perturbadoras. Muitas eram de mulheres que foram abusadas por homens com quem já tinham tido sexo consensual. "Voltei lá [à casa de alguém com quem já tinha dormido algumas vezes] depois de uma saída à noite. Tivemos sexo, tal como já tínhamos tido antes", contou-me uma mulher. "Depois adormeci nua, de barriga para baixo, e acordei a meio da noite com ele a tentar penetrar-me. Queria que ele parasse mas não conseguia falar, por isso fiquei ali inerte, deitada".

Outras mulheres disseram ter sido abusadas por homens que tinham conhecido em aplicações de encontros, para depois descobrirem que esses homens tinham apagado os seus perfis para não poderem ser rastreados. "Tentei denunciar à polícia, mas eles disseram que as hipóteses de conseguir uma condenação eram ínfimas. Por isso, decidi deixar as coisas como estavam", contou-me uma amiga minha. Uma semana depois, ela viu o mesmo homem na aplicação de encontros, com um nome diferente.

Há também aqueles casos de pessoas que viram fotografias não autorizadas a serem partilhadas pelos amigos, com os seus corpos nus usados como pasto pornográfico. No meu livro, recordo quando – tinha eu 18 anos – um amigo fotografou os seus genitais na minha cara enquanto eu dormia. Eu nunca tinha tido sexo. Só agora é que reconheci essa experiência como violação. Naquela altura, senti-me sobretudo envergonhada e culpei-me por ter ficado tão ébria que me apaguei antes de todos os outros.

Olivia Petter
Olivia Petter Foto: @oliviapetter8

Mas essa é que é a questão. Nem eu nem praticamente nenhuma das sobreviventes com quem falei fomos capazes de considerar violência sexual aquilo que aconteceu, na altura em que aconteceu. Esse processo, que requer muita desaprendizagem [em relação à forma como vemos as coisas], demorou anos. Claro que muitas delas reconheceram o valor do #MeToo, mas poucas foram capazes de se ver como parte desse movimento pelo facto de as histórias contadas lhes parecerem já muito longínquas.

As estatísticas em torno das condenações por violação no Reino Unido não são promissoras: entre janeiro e março de 2020, apenas 1,4% dos casos de violação registados na política resultaram na intimação ou condenação dos suspeitos. Mas as coisas estão a mudar. A título de exemplo, o consentimento está agora incluído no programa de educação sexual, e a cultura da violação nas escolas tornou-se motivo de reflexão a nível nacional, com mais de 51.000 testemunhos de antigos e atuais alunos publicados no website Everyone’s Invited. As pessoas estão a falar sobre abusos de formas mais variadas do que nunca.

Tudo isto ajuda a educar as pessoas acerca do abuso sexual e da miríade de circunstâncias em que tal pode ocorrer. Mas também espero que isso capacite os sobreviventes no sentido de reconhecerem as suas experiências como elas foram, a perceberem que são importantes. Só nessa altura é que conseguirão processar os seus traumas. Podemos nunca conseguir pôr um ponto final em toda a violência sexual. Mas podemos continuar a falar sobre o assunto; o poder disso nunca deve ser subestimado.

* Os nomes foram alterados

Millennial Love, baseado no podcast do The Independent com o mesmo nome, de Olivia Petter, é editado pela 4th Estate

Olivia Petter/The Times/Atlântico Press

Tradução: Carla Pedro

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