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Mariana Van Zeller: “Nenhuma história vale uma vida. Nem a nossa nem a dos traficantes.”

A curiosidade suplanta o medo e Mariana Van Zeller, mesmo perante um traficante armado, não vacila na hora de fazer perguntas. Com a primeira temporada de 'Na Rota do Tráfico' no ar, a jornalista radicada nos EUA filma agora uma segunda temporada – e sonha já com a terceira.

Foto: Trafficked
01 de abril de 2021 às 12:29 Joana Moreira

Acabou de chegar do Gana, no Golfo da Guiné, e prepara-se para descolar de novo, desta vez para o Brasil e para a Colômbia, em filmagens para a segunda temporada de Na Rota do Tráfico com Mariana Van Zeller. A série documental, emitida em Portugal todos os sábados, às 22h30, no National Geographic, é uma viagem única pelas economias subterrâneas que acontecem à margem da lei. São oito episódios que exploram o tráfico de animais, armas, cocaína, fentanil, esteroides ou ainda a falsificação de dinheiro, as burlas ou a exploração sexual.

Em entrevista à Máxima, por videochamada, a jornalista de Cascais, a primeira portuguesa a ter uma série em nome próprio no National Geographic, fala do método, dos conflitos de ética, da importância de fazer as perguntas no tempo certo e de como não há qualquer adrenalina no que faz, mas antes uma curiosidade e interesse profundos pelos temas em que mergulha.

Ao ver os episódios, há algo em que é recorrente pensar: porque é que estes criminosos se dispõem a contar as suas histórias?

Acho que é uma combinação de fatores. Muito é pelo ego. Muitas vezes estes são os melhores traficantes, os melhores químicos de drogas do cartel, os melhores pimps, os melhores no que fazem no mundo, muitas vezes as próprias famílias não sabem o que eles fazem. Nós damos-lhes a oportunidade de falar e de se vangloriarem um pouco do que fazem e do que gostam de fazer, das suas qualidades. Depois, há a impunidade. Muitos destes sítios onde nós filmamos, como na Sinaloa, no México, existe uma enorme impunidade, eles não têm grande desvantagem em falar para um canal tão conhecido e estabelecido como o National Geographic. Em terceiro lugar, e para mim o mais importante de todos, é esta vontade humana de querermos ser ouvidos e compreendidos. Eu abordo sempre qualquer indivíduo que faça parte dos nossos documentários dizendo que não estou aqui para julgar, estou aqui para tentar entender. Estou aqui com empatia para ouvir a história. Muitas vezes isso abre muitas portas.

Admitiu já que ser mulher a ajudou em determinadas situações, por não ser vista como "uma ameaça", disse. Há um episódio em que tomam umas cervejas antes de o traficante concordar com uma entrevista.

Em quase todos os primeiros encontros a cerveja faz parte.

Foto: Trafficked

São estes detalhes que ajudam a "desbloquear" respostas e conseguir entrevistados?

O mais possível. Isso e outra questão importante que é: para cada sim que recebemos, recebemos dezenas, às vezes centenas, de nãos. Portanto, o espectador pode achar que é fácil, que ela chega lá e consegue logo tudo o que quer, mas não é. São precisos meses, às vezes anos, de pré-produção e de tentar ganhar acesso a esses grupos e indivíduos. É muito trabalho. Mas para mim é muito importante tratar toda a gente com o mesmo nível de respeito. Se eles estão sentados no chão é sentar-me no chão ao lado deles. Se eles estão a fumar um cigarro é pedir um cigarro e fumar um cigarro com eles. Se eles estão a comer comida caseira e me oferecem é dizer sempre que sim.

É colocar-se ao mesmo nível.

Exatamente. Eu estou ali como ser humano, com curiosidade, respeito e um enorme interesse em saber porque é que eles fazem parte destes mundos e como é que chegaram ali.

Há um momento, no episódio sobre burlas, em que um dos contrabandistas diz "eu gosto de ti, Mariana". Como se gerem as relações com os entrevistados que partilham as suas histórias e depositam confiança em quem os entrevista?

Uma das coisas superimportantes para mim é obter essa humanidade, mas também tendo sempre em mente que estou ali como jornalista, portanto não me vou esquivar de perguntas que sejam difíceis e importantes para o meu trabalho. Mesmo que se sinta que eles se abrem e que há ali uma certa intimidade e predisposição para nos contarem histórias e nos darem acesso ao mundo deles, nunca não faço as perguntas que vou lá para fazer. E até em situações em que me dizem ‘não faças esta pergunta’, eu faço sempre essas perguntas. Não faço é logo no início. Não pergunto logo ‘de que cartel é que fazes parte?’. Faço-os sentir confortáveis e na altura certa faço então as perguntas mais difíceis e desconfortáveis. O meu papel ali é sempre como ser humano, mas em segundo é sempre como jornalista. Não me esqueço nunca. Embora possa gostar desta pessoa ou entender e compreender esta pessoa, o meu papel de jornalista é fazer perguntas. Faço sempre esta pergunta a quase todos os indivíduos que entrevisto, que é: ‘o que é que pensas em relação às pessoas que sabes que estás a magoar, ou em quem tens um impacto negativo?’ Acho que isso é muito importante. E dar-lhes tempo para pensar. Muitas vezes é muito interessante porque a maior parte das vezes eles têm muito sentimento de culpa, já pensaram sobre isso.

Ainda no episódio das burlas, há um momento em que uma matriarca revela como não teve dinheiro para pagar as despesas de saúde da família e foi isso que a motivou a entrar no crime. Como é que se chega a esse momento de vulnerabilidade?

Há uma coisa que se diz muito aqui nos Estados Unidos e que está na bíblia que é hate the sin, not the sinner (‘odeia o pecado, não o pecador’, em português). É o coração desta série. A ideia é isso, tentar descobrir a parte humana de todos eles, mesmo que o que eles façam seja crime ou ilegal. É colocarmo-nos no lugar do outro. É uma das ferramentas mais importantes do jornalismo e de documentários no geral. É não só termos tempo para passar tempo com as pessoas com quem estamos a fazer o documentário, mas também ao nível da disponibilidade que temos num documentário como este, que chega a uma hora e tal, e nos permite ir um bocadinho mais em profundidade.  

Foto: Trafficked

Esta série dedica-se a mercados negros e tudo aquilo que não está à vista. Quando é que percebeu que tinha esta preferência para olhar para o desconhecido, o que está na sombra?

Acho que começou com o 11 de setembro. Eu era a única correspondente que estava em Manhattan, na altura. Recebi um telefonema da SIC a pedir-me para fazer a cobertura e depois de ter feito o meu live, toda nervosa, olhei para as ruas e vi as pessoas com fotografias à procura dos seus entes queridos. Acho que foi nesse momento que entendi que o tipo de jornalismo que eu queria fazer era o de contextualizar, de ir atrás dos porquês. Porque é que isto aconteceu? Um ano depois mudei-me para a Síria, a guerra no Iraque estava a acontecer, e comecei a ouvir as primeiras historias dos jihadistas sírios a cruzar a fronteira para o Iraque para lutar contra os americanos. Era uma jornalista freelancer na altura e pensei logo: isto é uma reportagem que quero fazer. Foi ao passar tempo com este jihadistas sírios, a saber que eles eram considerados o inimigo do Ocidente, que eu me apercebi: há este mundo todo e estes mercados negros em que isto tudo acontece, muitas vezes de modo paralelo ao mercado legal e ao mundo legal. É muito parecido, aliás. Até dentro desse caos existe esta organização que nós não conhecemos e estes seres humanos. Mesmo que ao fim do dia, seja difícil para nós admitir, são muito parecidos connosco. Acho que foi aí que percebi que era este o meu chamamento e que era este o tipo de jornalismo que queria fazer.

Foto: Trafficked

Como é que encontra grande parte destas histórias?

Eu digo que os "heróis esquecidos" da nossa indústria são os produtores e jornalistas locais. Sem eles este tipo de jornalismo não existia. São pessoas que eu admiro imenso por se disponibilizarem a partilhar as histórias e os contactos, como jornalistas. Mas também tenho uma admiração enorme por contarem estas histórias, porque muitas vezes há um risco enorme. Nós temos o privilegio de voltarmos para a segurança da nossa casa e eles não têm. Se prometemos não mostrar a cara e depois mostramos, ou se nós prometemos que vamos alterar a voz, mas depois há uma parte em que se conhece, e se alguma coisa acontece quem vai sofrer sempre é o produtor e o jornalista locais. Por isso é que mostramos sempre ao jornalista e ao produtor local a reportagem antes. Temos de ter sempre o ‘ok’ deles, é superimportante para nós. Porque obviamente nenhuma história vale uma vida. Nem a nossa nem a dos próprios traficantes sobre os quais estamos a contar a história. Levamos isso muito a sério. São centenas de olhos a olhar para o documentário antes de ele ir para o ar para ter a certeza absoluta que estas pessoas não são reconhecidas e que não pomos em risco a nossa equipa.

Foto: Trafficked

Já disse que há determinadas coisas que não se pode perguntar como "qual é o cartel para que trabalham?". Como jornalista como é que sabe até onde é que pode ir nas perguntas - ou não há limites?

Até agora não houve limites, mas acho que é uma questão de instinto. Já trabalhei bastante no México, e sabe-se que nunca se pergunta qual é a filiação, nunca. Mas eu perguntei na praia, no episodio das armas [já exibido em Portugal]. É o meu episódio preferido e há um momento em que nós assistimos a uma transação de armas ao vivo, numa praia no México e começo a fazer perguntas sobre o tráfico de armas e no final perguntei-lhe qual era o cartel a que ele pertencia. Acho que é uma questão de instinto. A não ser em questões que possam pôr a pessoa em risco, como perguntar a morada ou o nome real, não há nada que eu não pergunte.

Há situações em que o medo se sobrepõe à curiosidade? Ou há alguma adrenalina também?

Não diria que é adrenalina. Acho que as pessoas se enganam aí. Há, claro, momentos em que eu estou à frente de uma pessoa que está armada e que eu sei que nada o impede de pegar na arma e de nos matar se não gosta da nossa presença ali. Sei que estou no limite das perguntas que posso fazer. Faço a pergunta e passo esse limite e o meu coração está a bater bastante forte, mas também sei, por experiência e instinto, que a posso fazer no momento. E que é o meu papel e a minha obrigação fazê-la.

Em entrevista à Máxima, em 2013, sobre a possibilidade de trabalhar em Portugal disse "o mercado de documentários em Portugal ainda é pequeno". Hoje ainda não há planos de fazer um projeto cá?

Nada me daria mais gosto do que dizer que o mercado de documentários em Portugal explodiu (risos) e que eu vou voltar a Portugal para fazer vários documentários. Infelizmente ainda não é o caso. Mas acho que está a mudar e que cada vez existe esse mercado. O que falta não são espetadores, pessoas que queiram ver. O que falta é investimento, pessoas que acreditem em documentários e pessoas que estejam disponíveis para pagar documentários, seja da parte do Governo seja de entidades privadas.

O podcast, que é uma extensão da série, com o mesmo nome, foi agora nomeado para os prémios Ambies da Podcast Academy. Este conceito de alargar a investigação a mais uma plataforma surgiu como?

Surgiu comigo a correr enquanto ouvia podcasts, sempre, e um dia pensar: ‘que estupidez, eu estou a ouvir estas histórias todas e eu tenho estas histórias todas’. Eu conheço estas pessoas todas, porque é que eu não faço um podcast? E ligámos nesse dia para a National Geographic e propusemos o podcast. Em cada episodio entrevistamos um ex-traficante, alguém que seja conhecido no mundo do tráfico. A entrada para cada episodio sou eu a contar alguma coisa que aconteceu no terreno, e depois trazemos uma entrevista longa com alguém que já pertenceu a este mundo e que tem uma história fascinante para contar. Começando cada história com o momento da captura ou em que são descobertos e depois indo para trás percebendo como é que eles começaram, etc.

Foto: Trafficked

Em que ponto está neste momento nas filmagens da segunda temporada da série?

A segunda temporada tem 10 episódios, estão filmados oito, faltam-nos dois.

A pandemia alterou de alguma forma o ritmo e o acesso a estes locais?

Tornou tudo mais difícil. Porque agora não existe apenas risco da nossa segurança nos locais onde fazemos estas reportagens, mas também o risco em relação à nossa saúde, da minha, da minha equipa e das pessoas com quem falamos. Por isso houve um aumento enorme de desafio que tivemos pela frente. Houve vários países para onde não pudemos viajar. Várias limitações. Mas uma coisa que reparámos desde o início das filmagens no ano passado foi que houve uma explosão gigante de mercados negros globais. Conseguimos entender isso logo. E por isso percebemos que era mais relevante e importante do que nunca fazer uma série deste tipo.

Conseguiram identificar novos mercados a explorar em futuros episódios?

Sim, e estamos com esperança que a terceira temporada comece neste verão também. Temos já varias histórias para esses também, existem muitos mercados negros. Acho que as pessoas não têm noção, mas metade da encomia mundial é esta economia informal, este mercado cinzento. Temos metade do mundo por explorar ainda.

Foto: Trafficked

Qual foi o momento mais desafiante na gravação da série?

Acho que um dos momentos mais difíceis foi no documentário do fentanil estar com a "mula" quando ela passou a fronteira do México com os Estados Unidos. Foi o momento em que eu estive mais nervosa e com um maior conflito dentro de mim, por saber que estas drogas iriam prejudicar e possivelmente matar pessoas nos Estados Unidos, norte-americanos, e, por outro lado, por saber que se ela fosse presa tinha filhos jovens em casa, estava de bebé até. Pensava em tudo o que poderia acontecer à família dela por causa disso. Houve sofrimento, nervos, pensei que ela só estava a passar àquela hora porque nós estávamos com ela. Pensava no impacto que nós tivemos se ela fosse presa, qual seria a nossa responsabilidade. Já fiz várias reportagens sobre opiáceos nos EUA e o tempo todo pensava nas mães com quem falei durante anos a fio que perderam filhos para a crise dos opiáceos. Pensava: ‘como é que elas me julgariam neste momento, a estar aqui a testemunhar isto, a ver as drogas a entrar nos Estados Unidos’. O que é que elas achariam de mim? Como é que elas me julgariam naquele momento? Isso foi um peso enorme. E foi engraçado porque depois cheguei as Los Angeles, já depois de filmar, ela passou, e eu cheguei e fui diretamente ver um jogo de futebol do meu filho. Essa questão de ser mãe continuava dentro de mim. Esse dia foi surreal e exaustivo.

As questões de ética são muito levantadas no campo do jornalismo, mas também do documentário. O filme do realizador Eric Stell, The Bridge (2006), por exemplo, que capta as imagens das pessoas que decidem pôr termo saltando de uma ponte, foi e é até hoje contestado e divide opiniões. Até que ponto é que o documentarista, e o jornalista também, pode ir?

É uma conversa contínua que nós temos como equipa. Uma das reportagens que temos para a segunda temporada é sobre o roubo de carros. Muitos dos carros americanos e europeus que são roubados acabam em África, ninguém sabe isso. Nós seguimos isso e numa das situações falámos em possivelmente filmar porque tínhamos acesso a um grupo que rouba carros aqui nos Estados Unidos. Falamos bastante sobre isso: ‘ok, então e o que é que vamos fazer, vamos sentar-nos no carro enquanto os vemos a roubar o carro à nossa frente em frente a uma casa?’ É a nossa responsabilidade de parar o que eles fazem? Nós não somos a polícia. Temos muito mais impacto em parar futuros casos destes ao mostrar o que acontece nestes mercados negros do que ao parar um caso de um carro a ser roubado. Mas com uma vida altera tudo. Até que ponto é que podíamos estar numa ponte a ver uma pessoa a atirar-se? É uma coisa sobre a qual pensamos, por exemplo, ao falar com os sicários, que são assassinos, que nos deram acesso à vida deles. O que é que nós faríamos se eles nos dissessem ‘agora vamos matar este à vossa frente’? Qual seria a nossa responsabilidade? Eu gosto muito mais de ser uma mosca, uma fly on the wall, como se diz aqui nos Estados Unidos, mais observadora, mas numa situação dessas acho que seria impossível não interferirmos, não pararmos e não sermos só espetadores.

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