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A culpa, esse sentimento tão feminino

Sentir culpa o tempo todo tornou-se um hábito feminino tão enraizado como o sentimento de culpa em relação a esse mesmo facto. Ser mulher passou de ser lindo, mágico e poderoso para ser também um cargo. Um cargo cheio de responsabilidades e de exigências. Obrigações, requisitos e condições. Um cargo tão pesado que é quase difícil suportar. Mas suporta-se. Por nossa culpa, nossa tão grande culpa.

Lost in Translation (2003)
Lost in Translation (2003) Foto: D.R.
01 de outubro de 2019 às 07:00 Pureza Fleming

O meu filho "chumbou" de ano. É um rapaz de 15 anos, inteligente e interessado naquilo que lhe interessa (passe a redundância), como escrever em russo e em japonês. É desatento e pouco focado, também. Eu passei o ano a ser chamada à escola para falar da "situação" dele. Com um trabalho de horários esquizofrénicos e um carimbo na identidade bem demarcado a assinalar "mãe solteira", disponibilidade é coisa que não abunda na minha vida. "Mas tem de estudar com ele." "Tem de fazer os TPC com ele." "Tem de mudar a estratégia, lá em casa, para que o Miguel consiga superar esta situação", sublinhava o professor. Eu não me lembro de, em pequena, a minha mãe ser chamada à escola para falar de mim. Sendo chamada, duvido que fosse. Eu fui sempre. De outra forma, sentir-me-ia culpada. Que é, aliás, como eu me sinto sempre que saio destas reuniões. Culpada porque não consigo estudar com ele (o suficiente), apoiá-lo na escola (o suficiente) ou porque não estou atenta (o suficiente). Importa referir que este sentimento de culpa já vem de trás. A primeira grande dose de culpa surgiu quando engravidei, aos 21 anos. A dose aumentou quando, por decisão minha, eu e o pai não ficámos juntos. Depois veio a culpa de, entretanto e com o passar dos anos, eu não ter dado ao meu filho uma família: mais irmãos, novos familiares. O chamado "lar". Mais culpa. E culpa, outra vez, porque se tivesse escolhido outra profissão eu poderia pagar a uma empregada doméstica que tratasse da casa e que permitiria que eu estudasse com o meu filho. Ou que pagasse a alguém para que estudasse com ele. E então talvez ele passasse de ano.

De acordo com um estudo levado a cabo pela NUK, uma marca de produtos para bebés, 87% das mães têm sentimentos de culpa invariavelmente, enquanto 21% os sentem permanentemente. E não precisam de ser mães solteiras. Na manhã em que escrevo este texto, já falei com duas amigas. Ambas com queixumes para fazer. Ambos relacionados com as mesmas coisas: em primeiro lugar, o trabalho, porque sentem que "não estão a dar tudo"; em segundo lugar, os filhos, porque estão cansadas e tiveram acessos de fúria que, inevitavelmente, deram lugar ao sentimento de culpa por "se terem ‘passado’" com eles; em terceiro lugar, porque não estão a cuidar delas próprias como deve ser. A Vanessa fez ontem uma festa de anos para o filho, António, que completou quatro anos. Teve o cuidado de ir a um supermercado biológico comprar ingredientes biológicos para fazer o bolo mais saudável das festas de anos espalhadas pelo Jardim da Estrela, em Lisboa. No final, estava desgostosa porque sentiu que o bolo "não tinha sido um sucesso". Foi porque eu provei-o e comprovei. Porém, para ela não era suficiente. Acontece que o sentimento de culpa não assola apenas a vida das mães. A Ana é das mulheres mais giras e inteligentes que eu conheço. Aos 37 anos está sozinha e definitivamente não é por falta de atributos. Há dois dias entrou-me casa adentro numa necessidade de desabafo enorme. Falava de uma não-relação em que se tinha envolvido e apontava o dedo a si mesma insistindo na tecla "Eu não acerto uma". E continuava a lamentar-se – "Porque é que eu escolho tão mal" e "O que é que há de errado comigo" –, entre um sem-número de culpas que a iam atingindo em formato de setas, as quais eu ia tentando arrancar do seu corpo porque, efetivamente, a culpa não é dela. Nem deles. Nem é de ninguém, senão das circunstâncias.

Para este mesmo artigo, falei com algumas amigas para saber o que é que mais as fazia sentirem-se culpadas. Há as mães com os dramas do costume e essas, sem espaço para dúvidas, abraçam as maiores doses de culpabilidade. Mas não só. Uma queixava-se porque já não ia ao ginásio há semanas; outra porque tinha as unhas num estado lastimável "e o Ricardo [o namorado] detesta ver-me assim"; outra, ainda, que se martiriza porque não consegue seguir a dieta e, confidenciava-me, "Passo a vida a comer chocolates às escondidas do Pedro [o marido]". Culpa, culpa, culpa. E a pior culpa de todas? A culpa de se ter sentimentos de culpa.

"Com a alteração dos papéis das mulheres na sociedade, resultado da Revolução Industrial, assim como da igualdade de direitos, passou a existir uma pressão da própria mulher que começa a tentar equiparar-se com aquilo que é imaginado ou descrito como sendo o papel do homem", explica o psicólogo António Tomás. "Começou-se a assistir a uma pressão para se corresponder a um ideal! As mulheres passaram a ter de estar focadas em vários campos de batalha, da casa aos filhos, passando pelo marido, pela aparência física e, claro, pela carreira. Existe uma mulher ideal, supostamente muito estabelecida em termos de padrões definidos pela ‘working woman’ dos anos 90. Acha-se que a mulher tem de ser quase um ser sobre-humano", continua o psicólogo. Contudo, a carga da culpa vem de trás. Mesmo quando as mulheres ficavam em casa, os níveis de exigência já eram abismais: a casa tinha de estar limpa e imaculada, as melhores e mais bem preparadas refeições deveriam ser servidas à família todos os dias, sobrando ainda espaço para alguma participação na vida comunitária e social da cidade em que se habitava. É como se a síndrome da mulher perfeita estivesse no ADN do sexo feminino. "Na prática, a mulher é multitasking e vai-se autotreinando para o fazer desde muito jovem. É uma valência altamente valorizada entre mulheres, esta do multitasking. Escusado seria dizer, muito mais solicitada às raparigas que aos rapazes", acrescenta António Tomás. O que se passa de seguida, conforme nos explica, é que este peso da culpa vem, muitas vezes, associado a um veredicto que as mulheres têm sobre elas próprias, onde se recriminam por não se acharem boas o suficiente. O pior, explica o psicólogo, "é que as grandes instigadoras destes sentimentos são as próprias mulheres". Mais do que a sociedade, mais do que os homens, é a competição feminina que leva aos maiores estados de culpabilidade do sexo feminino. "A comparação com as outras é o grande mal. Porque não conseguem ser tão rigorosas na dieta, porque não conseguem fazer a festa perfeita para os filhos… Porque aquela acabou de ter o bebé e já está em forma e eu tive o meu há mais de um ano e ainda tenho barriga. Porque a outra participa nos trabalhos da escola e eu mal tenho tempo para os ir lá deixar de manhã, etc." A competição entre mulheres, conforme clarifica o psicólogo, vem também e em grande parte daquilo que é ensinado de mães para filhas acerca do que deve ser o papel da mulher, esse ser perfeito capaz de tudo. Não menos importante na equação é o boom da indústria da cosmética que surge para aguçar a competição feminina, já de si renhida: quem se cuida melhor, quem tem o melhor corpo, a pele mais perfeita e o cabelo mais sedoso e brilhante. "Parte da culpa vem da comparação com a outra [mulher] que é uma outra imaginada/idealizada", esclarece. António Tomás elucida que por entre os queixumes mais comuns que ouve no seu consultório, a maioria das vezes trata-se de um veredicto fechado que a mulher encontrou e que se resume a: eu não sou boa o suficiente. E por "boa" leia-se ser mãe, mulher, filha, dona de casa e trabalhadora. Tudo numa só pessoa.

Já para a psicóloga Paula Trigo da Roza, culpa e culpabilidade são coisas distintas e se uma tem uma conotação puramente negativa e é algo destrutivo – a culpabilidade –, a culpa pode ser algo simultaneamente positivo e construtivo: "A culpabilidade é a falsa culpa. ‘Sinto-me assim, mas na realidade sou mais vítima do que culpada.’" Neste caso, especifica, "a pessoa sente-se em falta. Nada nunca chega. Está em constante falha". Ao contrário do psicólogo, que atribui parte da culpabilidade feminina à competitividade entre o sexo feminino, Paula Trigo da Roza considera que, primeiro, o sentimento de culpabilidade existe em ambos os sexos e depois considera que a competição entre sexos é natural e pode até ser saudável. Associa a competitividade pela negativa como um sinal de falta de maturidade: "Mulheres mais maduras são cúmplices, entreajudam-se, não competem entre si", complementa. No cerne da questão da culpabilidade e num patamar mais abrangente e menos focado no caso a caso, a psicóloga coloca, por um lado, um nível de exigência muito grande da pessoa consigo mesma que pode ser fruto de pais exigentes de forma direta (uma nota de 18 valores nunca será tão boa quanto um 20) ou indireta, cenário em que os pais são ausentes e/ou negligentes e a pessoa sente que se não fizer as coisas por ela, ninguém as faz por si. Por outro lado, Paula traz à superfície a questão judaico-cristã de um país situado num sul da Europa mais católico, como é Portugal: "Falamos de uma cultura-base católica promotora da culpa – ‘Minha culpa, minha tão grande culpa’ –, em que esta é fomentada, mas nunca num sentido construtivo."

 

Supermulheres? Só nas bandas desenhadas

Em todo o caso a psicóloga consente: vivemos numa sociedade que, de facto, criou esta personagem de supermulher e tem-na como exemplo a seguir. "É muito mais difícil, mas também sinal de inteligência, uma mulher dar um ‘murro na mesa’ e dizer ‘Basta, não sou capaz de tudo!’" A supermulher é uma personagem que dá uma falsa ilusão de ser superior. Enquanto as mulheres não se convencerem de que este conceito não existe, vão estar sempre em autossabotagem", esclarece. "A sociedade, em geral, põe esta fasquia do que é ser mulher de uma forma muito elevada. E esta é uma fasquia ilusória", comenta António Tomás. Quando questiono o psicólogo como é que a minha mãe teve quatro filhos, manteve empregos e uma casa onde nunca faltou nada, e eu mal consigo dar conta do recado com um filho, este apronta-se a tranquilizar-me (e a emagrecer o "elefante de culpa" que vive dentro de mim): "Hoje, a sociedade está muito mais exigente. Trabalha-se muito mais, recebe-se muito menos. Há uma competitividade que não existia há 20 anos. Antigamente não havia o ritmo que há hoje, entre solicitações, ritmo de trabalho, velocidade. Os modelos de antigamente não se podem comparar com os de hoje em dia!", defende. E remata: "Uma supermãe com uma supercarreira é uma combinação incompatível. Não pode acontecer!" Depois fala-se na perfeição e no estigma à volta dela. "É suposto as pessoas não serem perfeitas! Não somos perfeitos e não devemos querer ser. Deveremos, sim, querer ser felizes. A perfeição não existe em nada! Nem na natureza, nem no universo, nem em lado algum", complementa. Paula Trigo da Roza volta a referir a questão da maturidade, já que esta leva à aceitação de sermos quem somos. Em simultâneo, o autoconhecimento traz o reconhecimento dos próprios limites. Partindo desta aceitação e deste reconhecimento, conceitos como supermulheres e culpabilidade tendem a desaparecer: "Eu sou o que sou, faço o que está ao meu alcance e mais que isso não entra na equação." Dito em bom inglês (e numa linguagem sem culpa): we need to just stop giving a shit.

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