Como é ser noiva do Daesh? Joana Bernardo é a nova promessa do Cinema português
Uma jovem de grandes e doces olhos azuis enche a grande tela do novo filme A Noiva de Sérgio Tréfaut, agora nas salas portuguesas. Já deu os primeiros passos no Teatro, esta é a sua estreia no Cinema e não para de fazer perguntas à sua arte. Fixe este nome porque ela vai começar a dar nas vistas.
O realizador visitou o Iraque várias vezes e resolveu fazer um filme sobre a inesperada radicalização, naquele país como na Síria, de muitos jovens europeus em nome do autoproclamado Estado Islâmico. Jovens que "não pertenciam apenas às segundas gerações da imigração muçulmana", pois alguns eram "cristãos, ou sem origem religiosa, que se tinham convertido a uma estranha forma de idealismo assassino." Portugal também teve os seus jovens mártires, "de origem africana, sobretudo provenientes da linha de Sintra, que tinham ido jogar futebol no UK Football Finder ou tentar a sorte, de outra maneira, no Reino Unido", explica Sérgio Tréfaut. "Tinham sido convertidos por extremistas paquistaneses em Londres", assim como "os filhos da imigração portuguesa, próximos das comunidades muçulmanas na Europa do Norte, marcadas por um forte sentimento de rejeição." Foi para as suas famílias que o realizador apontou a sua lente, "ver e ouvir as jovens que tinham deixado tudo para casar com combatentes do Daesh."

A Noiva é um filme silencioso e belo, o écran enche-se com os grandes e doces olhos azuis de Joana Bernardo. Tem sete peças de Teatro no currículo, só subiu ao palco profissionalmente, em 2017, no Teatro Experimental de Cascais, e Sérgio Tréfaut escolheu-a entre 150 candidatas. Bárbara, a sua personagem em A Noiva, é uma viúva da Jihad, com dois filhos e um a caminho, num Iraque devastado para onde fora clandestinamente com um guerrilheiro voluntário do Daesh. Francesa de descendência portuguesa, é uma presença espectral mas forte, sobre ela quase tudo se fecha, a começar pelo negro hijab que a cobre. Quando Joana Bernardo se senta à nossa frente, no Cinema Nimas, em Lisboa, tem a delicadeza ensolarada de um fresco de época, é uma menina-mulher cheia de luz, a voz como uma brisa, viva e inteligente. Na sua sweat shirt lilás lê-se make more art em letra pequeninas, mesmo do lado do coração.


Como foi esta tua estreia no Cinema e como correu esta aventura, gravaram durante a pandemia, em 2021?
Foi incrível, mesmo uma grande oportunidade, em termos profissionais, óbvio, ser protagonista num primeiro filme, mas em termos pessoais também porque fui para o Iraque, com 20 anos acabados de fazer, e dou de caras com uma cultura completamente diferente e distante. Já fazia uma ideia da história do Daesh, sempre tive um certo interesse, e depois quando vi o que era, foi: "Uau, que coincidência!" Lá fiz o casting e fiquei. O mais engraçado foi a experiência lá, no contacto com as pessoas. Assim que cheguei, comecei logo a passar umas horas com as crianças, durante a tarde, brincava, tudo isso, depois começámos a filmar as primeiras vezes e correu bem. Depois, houve um dia de gravações que foi quase impossível porque os bebés não paravam de chorar, tínhamos de ficar ali uns dias sem filmar e já tínhamos ido dois dias a Mossul. A solução foi ir para um campo de refugiados para criar uma relação com as crianças. Eu tinha sempre um bebé nos braços, o Basil, o Hassan era o mais velhinho.
Como foi essa experiência?
No meio da loucura que foi, pensei: "Aproveita que isto não acontece mais vezes na vida, é uma oportunidade única". A família dos bebés recebeu-me mesmo muito bem, estive com eles três dias, deixavam-me lá de manhã. Lembro-me que eles queriam muito cozinhar para mim comida de Portugália (risos), então fomos ao mercado, no campo, e eles só diziam: "Comida Portugália!" (risos) Eles não falam inglês, eu não falo curdo, comunicávamos por gestos, e depois dessa dinâmica comecei a aprender algumas palavrinhas: comer, beijar... Depois comecei a interagir com os bebés. Acho que é uma cultura muito bonita, fiquei muito fascinada: chegamos e tiramos os sapatos, faz-se tudo no chão, comemos e dormimos e convivemos no mesmo sítio. Estava sempre numa zona de observação: como é que estas mulheres funcionam? Como é a dinâmica entre elas, e com os maridos? É um universo, foi muita coisa, mas ensinaram-me muito. Depois são mulheres com rostos muito pesados, têm muita história, e os corpos também. Como é que eu poderia aproveitar isso para esta personagem? Sendo que é um ponto de vista diferente, eu estou ali a conviver com pessoas que estão num campo de refugiados, são curdos que vieram da Síria, e também sofreram na pele o que aconteceu por causa do Daesh, e eu estou a contar a história dos opressores, então, como é que crio esta dinâmica? Mas elas receberam-me muito bem e é interessante contar a história destas mulheres que depois ficam neste limbo.


Burka, hijab, niqab, como foi viver dentro de um véu islâmico? Para uma ocidental deve ser um saco que te fecha.
É uma coisa que oprime, que te esconde. A primeira vez que o vesti foi: "Ai que estranho!", mas, ao mesmo tempo, foi super interessante para o trabalho que tinha de desempenhar, porque depois fica só o rosto de fora ou, maioritariamente, só os olhos de fora. E como é que eu comunico só através do olhar, sem exagerar? Era uma linha que tinha de encontrar, com o Sérgio, de manter tudo aqui, mas sem ser over. O nosso corpo conta uma história, e, de certa forma, o corpo daquela mulher... Ela está dividida entre dois mundos, o ocidental está escondido, mas há, ao mesmo tempo, no que ela veste, uma espécie de força também, e eu decidi escolher este caminho. Como é que eu funciono aqui? E com uma barriga também... Acabou por ser um processo orgânico, com o passar do tempo, dois meses e meio, a usar todos os dias a mesma roupa, foi mesmo muito interessante. E com as outras mulheres, aprendi muito com elas, como é que é usar isto? No início estava sempre com muito cuidado: "Ah, como é que tiro o niqab, quando me pedem? Qual é o gesto e a intenção do gesto? Eu tinha um diário onde escrevia quais seriam os seus pensamentos [da personagem]. Numa cena específica em que os soldados pedem para remover o niqab é quase uma sensação de pedirem para me despir.
Como foi gerir o silêncio do filme? O silêncio é, muitas vezes, um desconforto natural.

Quando li este guião pela primeira vez foi a primeira coisa que me cativou: "Uau, este filme tem muito poucos diálogos, que desafio fazer tudo isto em silêncio, e o que é que estará por trás do silêncio?" Eu venho do teatro e venho de um sítio onde a concentração é para aquele momento: concentro-me, está tudo em silêncio e fazemos. Lembro-me que quando cheguei ao set, começámos a filmar e tínhamos de repetir muitas vezes, tentar distribuir a concentração e aguentar aquilo tudo. Ao mesmo tempo, as mulheres estavam ali, e não percebiam que era preciso convocar esse lugar de concentração. Também foi, na procura desse silêncio, um caos instalado (risos), e foi muito uma procura minha, de um espaço.

É curioso: nestas culturas, as mulheres são silenciosas socialmente, mas quando estão juntas falam alto, é uma festa.
Era uma festa! Foi tão giro, porque o tempo que eu passei com elas no campo foi passado assim... Lembro-me que, na primeira noite, elas vieram todas para a casa da Souad e do Abdul Said, que me receberam lá, e parecia que era uma atração. Falámos por gestos e lembro-me de mostrar fotografias da minha família, de tentar criar uma ligação. Começámos a filmar cada vez mais vezes juntas, e depois era sempre uma festa, quando eu ia começar, elas eram: "Joana, Joanaaaa!" (risos), (risos) Oh meu deus! (risos) Foi muito bom.

É inevitável perguntar-te se, nestes momentos, pensaste e sentiste o facto de seres mulher e no que isso significa em diferentes partes do mundo, ainda mais neste tempo de regressão, como aquela a que assistimos no Irão, ainda mais no Afeganistão.
Sim, naquele momento senti-me, e sinto-me, muito privilegiada. Nunca tive essa perceção aqui, era uma coisa que me passava ao lado. Sempre existiram estas questões das mulheres, sempre ouvi falar, mas, naquele momento, e a forma como está tudo organizado... Por exemplo, vamos a um restaurante, e há um piso para as mulheres e um piso para os homens e um piso para as famílias. Não vemos mulheres a sair à noite ou a beber, esses pequenos pormenores, só o facto de terem de usar o hijab e terem de esconder o cabelo... Eu agora voltei ao Iraque, no contexto do festival de Cinema, e nós íamos a umas festas e era proibido filmar porque havia mulheres do Irão então era impensável, elas tinham o hijab. Quando se juntam, estão livres. Tivemos numa festa só com mulheres, elas conversam, convivem, o normal. Aprendi também muito sobre respeito, são temas mesmo muito sensíveis, e esta liberdade que nós temos, e o privilégio, de perceber qual é o limite em que posso dizer: "Aaah, mas nós avançámos no tempo, nós já temos isto..." Mas sim, que senti, senti, e ainda bem.

Se calhar para ti o feminismo nunca foi uma urgência, já não sentiste a maior parte das discriminações subtis e veladas.
Não, não senti. Claro que sempre soube que acontece, mais em termos de salário real e tudo isso, mas na escola não senti nada, nunca.
Decidiste ser atriz porque sim ou porque tiveste alguém artista na família?
Sim, o meu primo é ator, o meu irmão também, mas sempre foi aquela coisa: adorava fazer teatrinhos e cantar. E toda a gente diz que eu tinha o bichinho (risos). Mas depois houve ali uma fase, acho que foi no 7º ano, em que descobri o Conservatório de Dança. Porque eu venho do Algarve, sou de uma aldeia, Paderne, e aos 10 anos os meus pais mudaram-se para Lisboa. E depois apareceu um cartaz, na escola, a dizer: "Conservatório, dança, audições". Eu queria ser bailarina. E depois percebi que ia tarde demais, já tinha de saber fazer pontas. Já tinha feito Dança em pequenina, mas deixei, então o meu pai tinha uma colega de trabalho que lhe disse: "Olha, existe uma escola de musicais, leva lá a tua filha." Então acabei por ir para a escola de musicais, e o Teatro era a disciplina que eu gostava menos, "Humm, isto é estranho, não gosto." (risos) Chegou a altura de escolher o que ia fazer, no 9ºano, ainda andei às voltas: "Bem, se calhar tento a escola de Teatro, porque não? Se entrar, entrei, se não entrar, pronto, continuo com outra coisa." Lá entrei para a Escola de Teatro de Cascais, e foi um percurso muito bonito, mas só no terceiro ano é que fez aquele clique: "É mesmo isto que eu quero!" Depois segui para a Escola Superior de Teatro e Cinema e, daí, meteu-se tudo isto.

Lembras-te do que te fez sentir que "era mesmo isto"?
Foi num exercício com a Fernanda Lapa, muito difícil. Acho que é uma escola que nos exige, muito novos, trabalhos em que precisamos de maturidade, e de estar num sítio em que muitas vezes não estamos. E houve ali uma necessidade de uma procura de qualquer coisa, de corresponder ao que o encenador nos está a pedir, a presença, tudo: E não sei, houve um dia em que fui para casa a pensar: "Vou batalhar nas coisas. Como posso surpreender-me a mim mesma? E jogar e brincar?" Nos ensaios isso começou a crescer, a crescer, chegámos à apresentação e aí aconteceu qualquer coisa e foi: "Que fixe! É mesmo isto, gosto desta sensação!"
Gostas de vestir a pele de outras pessoas, de outras vidas, gostas de interpretar o texto?
Contar a história: como é que contamos a história? Como é que fazemos o outro acreditar? É quase contada na primeira pessoa, não é? O encontrar desse sítio, quase que temos um advogado de defesa naquilo que estamos a fazer, é muito interessante. No momento em que estamos em palco, que é onde tenho mais experiência, é muito incrível porque é um momento de adrenalina em que parece que não temos tempo para pensar em nada, só para executar, então entramos num jogo na nossa cabeça e uau! É fixe. (risos) É muito giro jogar este jogo. E gostei muito do Cinema, mesmo. Gosto muito do Teatro, mas o tipo de linguagem do Cinema, o facto de ser mais pequenino, mais contido, porque há uma aproximação, parece assim um zoom. E, neste caso, contar uma história verídica, senti muito o peso dessa responsabilidade: "Tenho de tentar fazer isto o melhor possível e ser versátil e concreta naquilo que estou a fazer." E o processo de trabalho... foi muito difícil este filme e como foi o meu primeiro trabalho em Cinema, perceber que tenho de repetir imensas vezes a mesma sequência, chega a um ponto em que já não sei bem o que é que estou a fazer, se está bem, se não está. Às vezes é só porque se encontrou uma posição do corpo ou do olhar e é fascinante porque resulta. Gostei muito, interessa-me.

Tens ídolos?
Sim, tenho referências, a Beatriz Batarda, que foi minha professora, tenho assim um carinho e uma admiração muito especial; a Carla Galvão também é uma atriz que admiro muito. O diretor de fotografia com quem eu trabalhei no filme, o João Ribeiro, é uma pessoa com uma sensibilidade muito acima da média e tem um olhar sobre o mundo que é diferente e isso vê-se pela forma como ele depois coloca o olhar dele naquilo que faz... Na verdade, à medida que vou crescendo e conhecendo pessoas, e agora que tive esta grande oportunidade, percebo que conheci pessoas muito especiais, que me apoiaram muito, então estes homens que trabalharam comigo - o João Ribeiro, o Paulo Mil Homens, o Bruno Cabral, o Hugo Bentes, sempre com o Sérgio [Tréfaut] à cabeça - foram pessoas que me marcaram.
O que é que queres fazer a seguir?
Quero fazer muito Cinema, sendo que agora estou no Teatro (risos), mas gostava muito de fazer Cinema, queria muito continuar a aprender e a explorar como é que se faz.
Que peça estás a fazer agora, para sabermos onde te podemos ver?
O Teatro Nacional D. Maria II agora tem o programa Odisseia Nacional, são vários espetáculos que vão em digressão pelo país, eu estou a fazer O Misantropo do Molière, no caso é uma adaptação do Hugo van der Ding e do Martim Sousa Tavares, encenado pela Mónica Garnel, com um elenco muito giro, somos oito e vamos começar em março, dia 3, no Olga Cadaval, em Sintra, seguimos para Bragança e depois vamos seguindo para o sul.

Este filme convoca muito a questão da fé, obviamente, há mesmo um momento em que a Bárbara sussura que se colhe o que se semeia. Tens algum tipo de fé, mesmo não religiosa?
Eu fui educada pela religião católica, andei nos escuteiros, fui batizada, fiz a primeira comunhão, tudo isso, mas nunca fui praticante. Tenho a memória da minha avó, à noite, quando nos ia deitar, dizer: "Agora rezamos um Pai Nosso e uma Avé Maria e depois vamos dormir". E quando vim viver para Lisboa, não sei porquê, comecei a pensar: "Se calhar começava a rezar todas as noites." Isto numa de, não sei, de miúda, porque é que meti isto na cabeça? (Por acaso nunca contei isto a ninguém). Então, todas as noites: "Obrigada por isto, por aquilo, por favor ajudem-me naqueloutro." Sim, a fé é muito importante para nos guiar, de alguma forma.
Como olhas para o estado do mundo, o que te preocupa?
Fogo, que medo falar sobre isto! Parecemos estar a ganhar uma [grande] velocidade, é caótico, eu não sei o que é que vem a seguir. Já vivemos uma pandemia e parecia que era um "Parem e abrandem e pensem" e, ao mesmo tempo, não, continuamos e agora estamos a viver uma guerra. Depois de ter ido ao Iraque e a Mossul, depois de ter visto o estado em que aquilo estava, fiquei mesmo chocada, de uma maneira que nem sei organizar. Quando começou esta guerra, fiquei: "Ah, como é possível?" Só espero que não seja um ponto sem retorno. Mas preocupam-me as questões ambientais, de género, isso tudo, a situação da mulher no Irão... Algumas coisas estão a retroceder, se calhar precisam de ser novamente pensadas.

Acreditas que a (tua) arte ajuda?
Quero acreditar que sim. De que forma? Como é que podemos ter uma voz? Sendo que já há bastantes, e incríveis. Sensibilizam-me, de alguma forma, os documentários. Ainda no outro dia vi um que chama Angels of Sinjar, sobre o genocídio yazidi que aconteceu, em 2018, no Iraque (tenho uma amiga, que conheci no Iraque, e que é yazidi). Foi um documentário que me surpreendeu muito e acho que as pessoas terem acesso a este tipo de conteúdos, que não chegam de outras formas ou, pelo menos, com este tipo de linguagem, pode fazer-nos aprender qualquer coisa, espero que sim. E a ficção também. No caso deste filme, espero que as pessoas consigam entrar na ilusão de que estão numa realidade que lhes é distante, mas que, de alguma forma, não digo que a compreendam, mas que a percepcionem de forma diferente.

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